Nacional

Enquanto o governo propõe a restrição do campo da política aos canais da democracia formal, as ONGs se firmam como importantes referências para a construção da cidadania e da democracia no país

É preciso fazer algumas projeções sobre o comportamento político do governo FHC para situar os desafios da oposição democrática e as tarefas dos atores coletivos comprometidos com a construção da cidadania, entre eles as ONGs.

Segundo Francisco de Oliveira, em exposição feita na Associação Brasileira de ONGs (Abong) em junho último, o projeto FHC segue seu curso sem nenhuma alteração substancial e sua estratégia pode ser identificada a partir do conjunto de reformas que o governo encaminhou ao Congresso: da previdência, administrativa, tributária e outras medidas como o processo de privatização e a proposta do contrato flexível de trabalho.

A principal consequência com a privatização é que o Estado brasileiro deixou de poder fazer uma política econômica autônoma. Desenha-se cada vez mais uma integração passiva da economia brasileira ao processo de globalização. Através das empresas públicas, um país periférico tem condições de manejar uma certa área da política econômica, uma vez que não pode fazê-lo pela via da moeda. O Brasil fez política industrial e fiscal a partir das suas empresas estatais; hoje não tem mais condições de fazer isso.

Outro importante elemento do projeto FHC é a destituição dos direitos sociais. A flexibilização e a precarização das relações de trabalho são elementos que, do ponto de vista do mercado, barateiam o custo da mão-de-obra, que já é dos mais baixos do mundo, pela suspensão dos direitos do trabalho. O colapso das políticas sociais universais e o desmonte da máquina pública, que garantia até hoje a cobertura de cerca de 50% da população, completam este quadro. Não se trata de discutir apenas uma redução orçamentária em rubricas de políticas sociais; trata-se de discutir uma redefinição do papel do Estado, que não assume mais como responsabilidade sua a garantia de direitos mínimos a todos os cidadãos.

O terceiro elemento que vale a pena considerar é o combate e o desmantelamento de organizações sociais que se mobilizam na defesa de direitos. Todas as iniciativas, desde a greve dos petroleiros, que expressam a vontade de setores da sociedade de intervir no campo da política têm sido sistematicamente combatidas. Todas as iniciativas que expressam autonomia e buscam se legitimar no campo das disputas em torno da formulação de políticas públicas têm sido esvaziadas e desrespeitadas. É o caso das câmaras setoriais, dos conselhos de gestão, dos espaços públicos de negociação de uma maneira geral.

No curto prazo, o governo está enfrentando dificuldades para aprovar projetos no Congresso dadas as contradições existentes em sua base política. Mas isso em questões menores, que tocam os interesses fisiológicos deste ou daquele grupo. No que é essencial, a base do governo continua intacta, firme e reafirma sua aposta na liderança de FHC.

Como a consolidação do projeto estratégico do governo FHC - que é liderado pelo PSDB - depende das reformas propostas ao Congresso, as tarefas da oposição democrática neste campo da política institucional são de dificultar que o núcleo duro desta política seja aprovado. Os partidos de oposição são minoria no Congresso e não poderão fazer muito mais que isso.

Já no plano da sociedade, o governo teve um enorme desgaste. A destituição de direitos no âmbito da previdência, das relações de trabalho, das políticas sociais influem no grau de aceitação deste governo, que vem caindo significativamente nas últimas pesquisas de opinião. O grande problema é que este descontentamento, esta inquietação, não passa para a esfera da política institucional.

Há uma forte crise de representação na relação dos partidos políticos com suas bases sociais. Os deputados eleitos, antes de pertencerem a este ou aquele partido, expressam sua fidelidade a grupos de interesse como o dos ruralistas, dos evangélicos etc. Isto torna muito difícil a repercussão da crise da sociedade no âmbito do Congresso.

A decorrência mais grave desta situação é a exclusão da sociedade civil da possibilidade de fazer política. O jogo político se restringe à relação entre o Executivo e o Congresso e, desta forma, o governo deslegitima a ação dos cidadãos organizados seja em torno do tema que for. Esta destituição de direitos que está em curso é a forma mais perversa do governo retirar dos cidadãos a possibilidade de participar da política. O governo propõe a restrição do campo da política aos canais da democracia formal.

Hoje, as formas de participação construídas pelas pressões da sociedade estão novamente bloqueadas. Pela crise de representação de um lado, pela oligarquização da política, de outro.

Os desafios da oposição democrática

O grande desafio da atual conjuntura é retomar a capacidade de iniciativa dos grupos e entidades da sociedade civil que se organizam e se mobilizam na defesa dos direitos de cidadania. Está em causa o direito a ter direitos, de acordo com a feliz expressão de Jorge Eduardo Saavedra Durão durante seminário citado da Abong. Está em causa a possibilidade de se fazer política a partir de iniciativas da sociedade civil.

O Brasil se diferenciou dos demais países da América Latina por ter construído, nos últimos vinte anos, uma extensa rede de organizações da sociedade civil que foi se articulando e hoje tem expressão nacional. A campanha das Diretas Já, o Movimento pela Ética na Política, o impeachment de Collor, a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, são exemplos desta capacidade da sociedade civil fazer política. A criação de novas formas de participação deu origem a um amplo conjunto de iniciativas que nos distintos níveis de governo - municipal, estadual e federal - criou espaços paritários e deliberativos onde combinam-se formas de representação com a participação direta da cidadania na gestão de políticas públicas. Os conselhos de defesa da criança e do adolescente, de assistência social e de saúde são exemplos que adquiriram dimensão nacional. A partir de iniciativas de governos municipais democráticos surgem também experiências como a do Orçamento Participativo, que transfere à sociedade uma capacidade de controle social sobre as ações de governo até hoje inexistente.

As tarefas da oposição democrática no campo da sociedade civil são reforçar as formas de organização e mobilização existentes, impulsionar novas formas de fazer política a partir da ação cidadã, vincular às questões do cotidiano as lutas em defesa dos interesses coletivos e das maiorias.

No campo da política institucional, as lutas pela ampliação e democratização da representação da cidadania nos espaços formais da ação política são fundamentais. A atual composição do Senado, da Câmara dos Deputados, das assembléias legislativas e das câmaras municipais é claramente insuficiente para abarcar a pluralidade e a diversidade dos atores coletivos que representam os interesses principalmente das classes populares. Também no âmbito dos Executivos, a descentralização e a participação são elementos necessários para aproximar da política os cidadãos.

A curto prazo, não é possível para as forças populares e democráticas reverter este quadro, mas é a intervenção contínua e pontual nas questões de defesa da cidadania que permitirá a retomada de mobilizações de maior envergadura. Nossa principal preocupação deve ser a de fazer política nos espaços em que este governo procura nos impedir, no campo da sociedade civil.

Um olhar sobre as ONGs
Existem muitos olhares que interpretam o que são e o que fazem as ONGS. E existem também ONGs muito diferentes entre si. Nossa referência são as ONGs criadas por grupos de cidadãos que lutam por seus direitos. As comprometidas com a construção da cidadania e da democracia. Uma parte importante destas ONGs criou sua associação, há quase cinco anos: a Abong.

Antes de serem identificadas como ONGS, estas entidades já eram respeitadas pelo trabalho que faziam e fazem: centros de defesa de direitos humanos, de capacitação sindical, associações de defesa do meio-ambiente, institutos de pesquisa social, assessorias a movimentos populares, entidades de defesa dos direitos da mulher, dos negros, das minorias. O rótulo de ONG veio para descaracterizar a identidade positiva destes trabalhos e destas instituições.

Em cada momento de nossa história recente coube às ONGs diferentes tarefas na luta democrática. Durante a ditadura, as ONGs se empenharam no apoio à organização das entidades e movimentos populares. Seu trabalho, além de oferecer infra-estrutura e apoio operacional, foi a construção da noção de direitos junto à população e de uma força coletiva para lutar por estes. Educação popular era, como é até hoje, uma educação para a cidadania. O Estado, braço executor da ditadura, era o principal inimigo.

Hoje, as ONGs continuam fiéis à sua identidade. Seu principal motivo de existir continua sendo a educação para a cidadania. No entanto, o cenário mudou e multiplicaram-se as suas oportunidades de atuação, o que por sua vez passou a exigir delas especialização e competência crescentes.

Nos últimos anos, as ONGs vem ganhando cada vez mais o reconhecimento da sociedade brasileira. Vem ganhando espaço para atuar em maior escala, vem atingindo grandes públicos. No Rio de Janeiro, por exemplo, o governador e o prefeito abrem, por intermédio dos jornais, um combate declarado às ONGS, como reação às denúncias e mobilizações em defesa da cidadania. No Recife, a imprensa procura sistematicamente as ONGs buscando suas avaliações das ações de governo. Em muitas prefeituras democráticas as ONGs são chamadas a participar de projetos conjuntos.

Essa nova realidade, em que se abrem espaços institucionais de participação, coloca uma nova proposta de relação com o Estado. Não se trata mais de uma sistemática oposição, mas da defesa de um novo projeto de sociedade que pode combinar ações a partir de órgãos públicos com as que nascem e se expressam no campo da sociedade civil. O que determina as possibilidades de trabalho conjunto é o sentido público das ações propostas. Como diz o Betinho em entrevista ao jornal O Globo de 27 de junho: "As ONGs vêm procurando influenciar diretamente a política do Estado, assim como qualquer ator social, instituição ou simples cidadão que trabalha poderia fazer. Influenciar a política do Estado faz parte do processo democrático. É preciso exercer a cidadania em todos os níveis e não ser simplesmente objeto passivo diante de qualquer tipo de poder. Essa busca de participação e o esforço para influenciar as políticas públicas é uma virtude e não um defeito".

Duas pesquisas recentes apontam as transformações por que passam as ONGs nesta nova conjuntura. A primeira delas foi realizada pelo ISER, em convênio com a Abong, tem como universo as ONGs associadas a esta última e teve como responsáveis Leilah Landim e Letícia Cotrim. Os dados são de 1994. A segunda foi concluída em maio de 1996 e traz o perfil das ONGs do Nordeste. Realizada pelo projeto Demo, sediado em Recife e patrocinado por várias organizações e pelo Sactes, sua amostra abrangeu mais de 500 ONGs do Nordeste. Seus autores são Clêide Souza, Hans (Pepi) Schweigert e Rosalina Oliveira.

Da primeira pesquisa destaca-se o fato de que 60% das entidades entrevistadas foram legalmente constituídas a partir de 1985. Seus temas prioritários de trabalho são: cidadania, educação, políticas públicas, movimentos sociais, direitos humanos, meio ambiente e gênero. As principais formas das ONGs definirem sua atuação são: assessoria e educação/capacitação.

"Essa pluralidade (de temas) indica tendências que se foram afirmando sobretudo através da segunda metade dos anos oitenta com o crescimento na sociedade brasileira de novos movimentos sociais e sujeitos coletivos. As ONGS, ao mesmo tempo em que refletem este processo, representam um papel, através de sua intervenção, na construção desses movimentos e grupos sociais diversificados".

A ampliação de seu campo de atuação é um dos traços importantes do atual processo de transformações no perfil das ONGs. Em 1987, em uma pesquisa anterior também realizada por Leilah Landim, 55% das ONGs afirmavam atuar apenas em nível local, em 1994 são 29%; em 1987, 31% afirmavam atuar em nível regional/estadual, em 94 são 38% que atuam em nível municipal e 47% em nível estadual; em 87, 13% afirmavam atuar em nível nacional, em 94 são 40%.

A segunda pesquisa, terminada agora, reforça as conclusões anteriores. "As ONGs deslocam o foco de sua intervenção dos trabalhos localizados e de pouca visibilidade para uma presença cada vez maior no espaço público, onde a comunicação é um elemento-chave".

Estas mudanças redefinem também sua identidade pois as ONGs "deixam de se pensar exclusivamente a partir de suas relações com os movimentos sociais para se perceberem como sujeitos sociais com posicionamentos políticos próprios e partes integrantes da sociedade civil brasileira".

Como conseqüência destas transformações é possível identificar que "os serviços de estudos e pesquisas e comunicação foram os que registraram os aumentos mais significativos, o que é coerente com a necessidade das ONGs atuarem de forma propositiva no espaço público".

Nesta mesma pesquisa pôde se reconhecer que as ONGs do Nordeste, por intermédio de seus programas de educação popular, "expressam com grande clareza a sua preocupação com a constituição de sujeitos sociais populares, representativos e capacitados para intervirem no espaço público". Sua constituição como atores públicos não altera seu compromisso com o fortalecimento dos sujeitos sociais populares, mas modifica, isto sim, sua forma de relação com estes sujeitos, o que tem gerado insatisfações e mesmo conflitos com vários importantes movimentos e entidades.

No que diz respeito às articulações no interior da sociedade civil, há uma intensa busca de intercâmbio que se realiza por um amplo e recente leque de redes e fóruns de ONGs ou nos quais participam também as ONGS. Interpretando este fenômeno, Augusto de Franco aponta a existência de uma esfera social-pública em expansão e reconhece a criação destas redes e fóruns como "formas de organização horizontais, negadoras da hierarquia" e precursoras de novos padrões de sociabilidade. Alguns dos resultados mais positivos deste trabalho têm sido a inclusão na agenda política nacional de temas essenciais como o combate à pobreza.

As oportunidades

Na última reunião do Conselho Diretor da Abong, realizada em junho passado, foi feita uma avaliação das possibilidades de intervenção das ONGs na atual conjuntura com o propósito de se construir uma agenda nacional comum. Desta discussão surgiram algumas indicações importantes.

A principal delas é contribuir para a superação da fragmentação do campo popular e democrático na sociedade civil. Para tanto, se faz necessário fortalecer e estimular a atuação das ONGs em redes e fóruns e buscar alianças com outros atores da sociedade civil. Isto só pode se dar a partir de um maior desenvolvimento das suas capacidades propositiva e de atuação na formulação de políticas públicas alternativas.

Mas, esta vocação para trabalhar com políticas públicas não pode significar um distanciamento das entidades e movimentos sociais que expressam as demandas populares. Ao contrário, superar a fragmentação do campo popular e democrático significa buscar um maior comprometimento com as lutas sociais, ainda que elas se expressem de maneira localizada e pontual.

Para enfrentar este desafio, numa conjuntura bastante adversa como a atual, é preciso um processo intenso de capacitação, seja para o desenvolvimento institucional na busca de um maior impacto nas suas ações, seja para fortalecer os espaços públicos de negociação e atuar neles disputando projetos alternativos de políticas públicas.

Estas não são tarefas que as ONGs podem enfrentar isoladas. Nem entre si, nem dos demais atores comprometidos com a luta democrática. Existe um consenso de que a Abong precisa ser fortalecida como representação coletiva de suas associadas e como promotora de iniciativas de capacitação coletiva de ONGS.

Identificar o perfil atual das ONGs e de suas práticas, construir identidades, espaços coletivos de reflexão, debate, formulação conjunta de objetivos e estratégias, tudo isso requer a construção das ONGs também como um ator coletivo, ou como atores coletivos em diversos âmbitos da política nacional.

Não serão todas as ONGs que valorizam a produção coletiva de referências e identidades, nem todas colocam como objetivos principais a construção da cidadania e da democracia em nosso país. Mas, seguramente, as ONGs associadas à Abong têm esta identidade e podem se constituir - na sua ação individual e coletiva - em uma importante referência para o conjunto das entidades sem fins lucrativos e para a sociedade brasileira de uma maneira geral.

Silvio Caccia Bava é diretor do Instituto Pólis e presidente da Associação Brasileira de ONGs (Abong).