Cultura

Um passeio por quatro interpretações diferentes da euforia revolucionária dos anos 60

"Assim é se lhe parece"

Pirandello

Houve um tempo, não distante, em que homens sisudos e compenetrados entendiam que a História se elaborava por descobertas, promovidas pela investigação e pela observação crítica de documentos escritos, fundamentalmente. Era preciso desenterrar o passado dos escombros do esquecimento. Os fatos estavam lá, à espera, ocultos pelos véus da ignorância, como diamantes nas trevas da terra, aguardando a luz do olhar arguto do garimpeiro.

O discurso destes homens foi tão persuasivo que a maioria das pessoas, ainda hoje, acredita que a História é isto mesmo: a procura incessante da verdade objetiva, única e definitiva. Segundo esta maneira de ver, em contraste com o futuro, vivo e irrequieto, sempre aberto à imaginação e à ação humanas, o passado, exatamente por já ter passado, estaria morto e quieto, prestando-se à análise calma dos cientistas, como um cadáver petrificado na morgue. Debruçados em torno dele, os profissionais da memória tratariam de determinar o quê, o como, o porquê, os acontecimentos aconteceram. Com muita isenção e objetividade, caberia a eles pesquisar, encontrar, selecionar, explicar e narrar. E promover alguns acontecimentos à condição de História.

Mas, o que fazer se o morto se levanta, e parece vivo, e foge ao controle, oferecendo cintilações imprevistas? E não é mais possível reconhecê-lo, como se não tivesse mais um rosto, mas uma sucessão de máscaras, alternadas, alternativas? Como um quebra-cabeça interminável, cada peça nova acrescentada modificando a percepção do conjunto? Onde o conforto e a segurança das ponderações objetivas?

Nos tempos da União Soviética, os russos diziam viver num país especial, onde era possível saber mais ou menos o que iria acontecer no futuro (agora, nem isto sabem mais), mas impossível conhecer o que acontecera no passado, totalmente imprevisível, porque sujeito aos ventos e às tempestades das mudanças abruptas do poder. Assim, acontecimentos e personagens apareciam, desapareciam e reapareciam nos textos e até mesmo nas fotografias e nos filmes, em variações inesperadas, ao sabor de versões cujos fundamentos nem sempre eram perceptíveis pelo comum dos mortais.

Os russos, como de hábito, talvez tenham extremado uma tendência. Mas ela existe desde os faraós, que não titubeavam em raspar inscrições para substituí-las por outras, mais afeitas ao gosto, às inclinações ou aos interesses do momento. E, assim, para o bem e/ou para o mal, a permanente e diversa reconstrução do passado, sobretudo de seus períodos mais relevantes, acompanha a trajetória das sociedades humanas desde que o mundo é mundo.

Com as esquerdas dos anos 60, não poderia ser diferente. Em nosso país, em todo o planeta, foram anos de movimentos subversivos, de promessas de transformação, de desafios, em que os sistemas estabelecidos foram postos à rude prova. Apropriar-se deste passado, monopolizar, se possível, a sua memória, passa a ser um objetivo crucial para os que vivem e estão em luta no presente. Inclusive porque, em larga medida, o controle do futuro passa, como se sabe, pelo poder sobre o passado, dado, por sua vez, aos que imprimem na memória coletiva a sua específica versão dos acontecimentos.

Papel social dos textos

A produção de histórias sobre os movimentos de esquerda brasileiros nos anos 60 já é relativamente considerável. Não seria possível, em curto artigo, passar em revista todos os autores relevantes. O que desejo, sem exaurir o assunto, é selecionar algumas versões emblemáticas, tentar encontrar o significado delas no contexto da luta pela apropriação da memória. O que menos importa são as intenções conscientes dos autores no momento em que elaboraram as versões. Os textos, desde que escritos e divulgados, distanciam-se dos autores, adquirem vida autônoma. São eles que me interessam. E, sobretudo, o papel social e histórico que desempenharam e seguem desempenhando.

A versão mais difundida apresenta a luta política dos 60 como uma grande aventura, no limite da irresponsabilidade, tremenda porralouquice. Boas intenções, claro, mas equivocadas. Uma fulguração, cheia de luz e de alegria, com contrapontos trágicos, muita ingenuidade, vontade pura, puros desejos, ilusões. Diante do profissionalismo da ditadura, que restava àqueles jovens? Ferraram-se. Mas demos todos boas risadas. Afinal, o importante é manter o bom humor.

Estamos falando, como é fácil supor, dos livros de Fernando Gabeira 1 e de Zuenir Ventura2. No texto de Ventura, o ano começa com uma festa de arromba, da sua tiurma, por coincidência. E o simpático bairro de lpanema transforma-se no umbigo do país; ali se desenrola a síntese dos acontecimentos. Gabeira faz girar a trairia de seu relato em torno de uma organização revolucionária também baseada no Rio de Janeiro, da qual fazia parte, como uma (auto) biografia coletiva. Dois relatos cariocas, talvez expressão do último canto de cisne de um período em que a cidade do Rio pretendia centralizar os acontecimentos políticos nacionais.

Tiveram excepcional acolhida. E viraram rapidamente best sellers. Seria fora de propósito imaginar que o resultado foi obtido apenas porque os autores, como jornalistas conhecidos, tinham relações especiais com os grandes órgãos de divulgação. Na verdade, as versões correspondiam a anseios difusos no país.

Com o recuo da ditadura militar e a abertura lenta, segura e gradual, vastos segmentos da sociedade queriam recuperar a história agitada dos anos 60, reconciliar-se com ela, mas na paz, na concórdia, sem revanchismos estéreis, como aconselhavam os militares e os homens de bom senso. No contexto da anistia recíproca, não seria possível avivar a memória sem despertar os demônios do ressentimento e das cobranças? Seria como recordar esquecendo a dor, não é para isto que temos o recurso do humor?

Gabeira e Ventura seriam mestres neste exercício. Amadurecidos e irônicos, condescendentes, oniscientes, por fora ou por cima do fluxo dos acontecimentos, levam pela mão seus personagens, simpáticos incompetentes, em busca da utopia inalcançável. Em Gabeira o procedimento é mais marcado: a visão crítica do período, amadurecida coletivamente no longo exílio, é retrospectivamente localizada no fogo mesmo dos acontecimentos, concentrando-se no autor, que ressurge descolado da ingenuidade ambiente, reescrito com uma superconsciência das tragédias que haveriam de vir. Esta atitude distanciada, crítica, irônica, a maioria dos leitores a desejava e assim foi possível dialogar com o passado sem se atormentar com ele.

Estes autores foram a expressão mais acabada de seu tempo. Daí, insisto, o sucesso alcançado. Que importa tenham cometido deslizes na narração das histórias? Confundido acontecimentos, trocando diálogos, atribuindo-se papéis não desempenhados? Detalhes... Os militares haviam se retirado e seria talvez incômodo refletir sobre porque a ditadura fora aturada tanto tempo num país tão democrático. Enfim, os exilados voltavam, todos estavam satisfeitos e curiosos em reencontrá-los. Um passado difícil, não seria possível lembrá-lo sem remorso? Gabeira e Ventura responderam afirmativamente, era possível elaborar esta síntese. Até hoje a maioria agradece penhorada o ter podido recordar uma história triste sem dor, e ainda com um sorriso nos lábios.

Avivar a memória para conciliar, todo um programa. Retomado recentemente, e de forma espetacular, pela Fundação Roberto Marinho e pelo jornal O Globo. O dono dos negócios, depois de se ter associado por longos anos ao mais virulento anticomunismo, assumiu a guarda do acervo/memória dos comunistas brasileiros e incentiva debates e pesquisas a respeito do assunto. O jornal se lança à procura dos mortos assassinados pelas forças armadas. E assim, fazendo lembrar os tempos de uma União Soviética que já não é mais, os terroristas convertem-se em guerrilheiros, os justiceiros, em assassinos, e o jornal, de caçador, transmuda-se em defensor dos caçados e cassados e faz coro a favor das indenizações aos mortos e desaparecidos, vítimas de um regime que ele sempre sustentou. As cartas se embaralham de vez, numa vertigem. De que se aproveita o responsável pelo filme do seqüestro do embaixador norte-americano para afirmar, sem sorrir, que não tem nenhum compromisso com a realidade, a não ser, é claro, com a realidade do dinheiro que pretende embolsar, afinal, nestes tempos neoliberais, não se trata de nenhum pecado.

Tempos de conciliação. Enquanto durarem, estará assegurada a hegemonia das versões de Gabeira & Ventura. Reforçadas pela metamorfose dos herdeiros do Dr. Roberto Marinho. E pelos filmes que haverão de vir.

Nesta sinfonia, os anos 60 terão sido vibrantes, mas loucos, e mesmo psicóticos, como chegou a afirmar um roteirista. Sobre eles deve cair um manto de compreensão e de boa vontade. Não é isto o que de melhor podemos dar aos meninos rebeldes daqueles anos? Quanto aos mortos, um cheque de 150 mil reais e temos a conversa resolvida: arquive-se. Anistia para esta dor.

Jacob Gorender e Marcelo Ridenti3, falando do mesmo assunto, oferecem uma outra versão. Um combate nas trevas, impostas pela ditadura, em busca de uma imagem fugidia, um fantasma, o da revolução.

A luta engaja-se sob pressão do Estado, que aperta o garrote, estreitando as margens de ação e de oposição políticas. E silencia e massacra os oponentes com sanha. Trata-se de recuperar o projeto dos vencidos, compreendê-lo. Resgatar uma memória perdida.