Política

A militância é um tema central para a esquerda que adentra o novo século

A militância vem sendo muito questionada. É visível, entre os socialistas, o ceticismo de parte dos ativistas quanto à efetividade de formas de engajamento prático antes dominantes. Há um sentimento de que muitas delas são inadequadas ou erradas. A militância é um tema central para a esquerda que adentra o novo século.

Sempre existiu e existirá o engajamento voluntário em uma causa ou luta, visando mudar as relações de poder. Essa atividade recebe o nome de política e vem sendo debatida desde os gregos. Porém, o que discutimos aqui é a atividade política voltada para realizar uma transformação profunda no mundo, partindo de um compromisso com a emancipação humana, orientando-se para o combate à exploração e à opressão, à injustiça e à violência.

A militância socialista tem três dimensões, que nem sempre se relacionam harmonicamente. A primeira é a atividade de negação do sistema, de rejeição da sociedade capitalista. A atuação socialista representa uma inserção contraditória na sociedade, conflituosa com a ordem burguesa, já que visa a sua subversão. A negação da ordem é decisiva para evitar o risco da integração e da cooptação.

Em segundo lugar, esta atividade tem que ser eficaz na construção de outro regime social, superior pelos critérios que defendemos. Isso remete à organização da prática socialista a partir do que, simplificadamente, chamaríamos de racionalidade instrumental, da eficiência no trato com as relações sociais e de poder estabelecidas. Quaisquer que sejam os perigos que nos espreitam na dialética entre meios e fins, temos que buscar a eficácia prática na afirmação de uma alternativa global, se queremos evitar o risco do isolamento.

A militância também tem uma terceira dimensão, a práxis. "Atividade livre, universal, criativa e autocriativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz) e transforma (conforma) seu mundo humano e histórico e a si mesmo" (segundo o Dicionário do Pensamento Marxista), a práxis remete aos objetivos mais nobres e libertários do projeto socialista. Atividade consciente que permitiria aos seres humanos se assenhorearem do controle de seu próprio destino, a práxis eliminaria as causas sociais das injustiças e sofrimentos e possibilitaria o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Esta compreensão foi enriquecida, nas últimas décadas, por movimentos que procuram alterar as relações de poder de gênero, raça e opção sexual.

A militância vem sendo muito questionada. É visível, entre os socialistas, o ceticismo de parte dos ativistas quanto à efetividade de formas de engajamento prático antes dominantes. Há um sentimento de que muitas delas são inadequadas ou erradas. A militância é um tema central para a esquerda que adentra o novo século.

Sempre existiu e existirá o engajamento voluntário em uma causa ou luta, visando mudar as relações de poder. Essa atividade recebe o nome de política e vem sendo debatida desde os gregos. Porém, o que discutimos aqui é a atividade política voltada para realizar uma transformação profunda no mundo, partindo de um compromisso com a emancipação humana, orientando-se para o combate à exploração e à opressão, à injustiça e à violência.

A militância socialista tem três dimensões, que nem sempre se relacionam harmonicamente. A primeira é a atividade de negação do sistema, de rejeição da sociedade capitalista. A atuação socialista representa uma inserção contraditória na sociedade, conflituosa com a ordem burguesa, já que visa a sua subversão. A negação da ordem é decisiva para evitar o risco da integração e da cooptação.

Em segundo lugar, esta atividade tem que ser eficaz na construção de outro regime social, superior pelos critérios que defendemos. Isso remete à organização da prática socialista a partir do que, simplificadamente, chamaríamos de racionalidade instrumental, da eficiência no trato com as relações sociais e de poder estabelecidas. Quaisquer que sejam os perigos que nos espreitam na dialética entre meios e fins, temos que buscar a eficácia prática na afirmação de uma alternativa global, se queremos evitar o risco do isolamento.

A militância também tem uma terceira dimensão, a práxis. "Atividade livre, universal, criativa e autocriativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz) e transforma (conforma) seu mundo humano e histórico e a si mesmo" (segundo o Dicionário do Pensamento Marxista), a práxis remete aos objetivos mais nobres e libertários do projeto socialista. Atividade consciente que permitiria aos seres humanos se assenhorearem do controle de seu próprio destino, a práxis eliminaria as causas sociais das injustiças e sofrimentos e possibilitaria o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Esta compreensão foi enriquecida, nas últimas décadas, por movimentos que procuram alterar as relações de poder de gênero, raça e opção sexual.

A combinação destas três dimensões da militância é variada. Porém, em todos os casos contribui para moldar identidades pessoais, articulando-se com outros papéis sociais, definindo os estilos e os compromissos de vida dos ativistas de esquerda. Estas dimensões variaram conforme os modelos de ação revolucionária adotados e as conjunturas: do militantismo exacerbado das situações de crise à atuação quase rotineira nos momentos de calmaria.

Tendo estes parâmetros, quero tratar de quatro desafios da militância socialista hoje.

Expressões das lutas sociais

A esquerda nasceu vinculada à luta de setores sociais excluídos do poder: pequenos proprietários rurais na Revolução Inglesa, pobres da cidade na Revolução Francesa, assalariados explorados pelo capital no século XIX. Foi como expressão das aspirações dos assalariados que o socialismo se desenvolveu. Foi a partir da idéia de que o proletariado seria uma classe universal e poderia unificar ao redor de si o conjunto dos explorados e oprimidos que o socialismo se constituiu num grande movimento político.

A militância socialista está, assim, estreitamente vinculada ao movimento dos explorados e oprimidos na defesa de seus interesses. É como atividade prática, fruto da mobilização e conscientização de amplas parcelas da população, que a atividade militante se expande. Ela é parte do aprendizado político de classes e setores que pretendem mudar sua situação na sociedade, dos operários às mulheres, dos negros aos camponeses.

Não podemos, à luz do debate contemporâneo, sustentar a existência de uma classe social universal, destinada a fazer a revolução em uma história dotada de sentido imanente. Além disso, o atual aumento da heterogeneidade do proletariado torna a unificação de seus interesses mais difícil. Os dois aspectos reforçam a importância de outros setores na luta socialista, mas sem a mobilização da maioria dos assalariados não podemos visualizar avanços decisivos na direção de algo que possa ser chamado de socialismo.

Porém, no atual contexto de crise do imaginário socialista, o movimento vivo de todos os setores capazes de desenvolverem lutas radicais contra o sistema constitui uma bússola insubstituível para a revitalização da esquerda. As energias aí gestadas alimentam o caráter contestador não apenas destes movimentos, mas também dos projetos políticos que buscam expressá-los e dar-lhes uma dimensão globalizadora, constituindo-se no contrapeso mais efetivo às tendências integradoras da democracia liberal e da economia de mercado.

A resistência ao neoliberalismo estabelece disputas em torno de questões de sociedade, em geral vinculadas à universalização das condições para o exercício da cidadania. Elas abarcam trabalhadores, mulheres, negros, jovens, sem-terra, homossexuais, aposentados, ecologistas, grupos de defesa dos direitos humanos e do consumidor e vinculados à luta antimanicomial. A esquerda necessita ter uma relação não-instrumental com estes setores, buscando incorporar suas perspectivas em um movimento e uma visão política de oposição ao capitalismo, desdobrando-as em ação partidária, solidariedade entre os vários movimentos e intervenção institucional.

Esta é a militância que tende a fornecer a energia crítica e o impulso radical decisivos para o questionamento da sociedade atual e a construção de uma alternativa estratégica socialista nos anos vindouros.

Atividade partidária

Os movimentos dos excluídos ou subordinados não ganha por si só um caráter anti-sistema, isto é, não leva à formulação de uma alternativa global de organização social, fora da luta pelo poder político.

A instituição pela qual os grupos sociais intervieram na esfera política e disputaram, nos últimos séculos, projetos parciais ou globais, recebeu o nome de partido. No cerne da disputa de poder na sociedade esteve a ação da militância de partidos políticos.

Há diferentes formas de poder e esferas do seu exercício, que se alteram e entrecruzam. As relações entre Estado, economia e ideologia se modificaram na história do capitalismo. Hoje, o poder da mídia cresce e a disputa de idéias na sociedade torna-se mais importante; a disputa política tem agora que ser travada com muito mais peso em marcos continentais e mundiais. Mas se a sociedade se torna mais complexa, isso aumenta e não diminui o papel objetivo da política. As mudanças nas relações do Estado com a mídia e a economia não vão no sentido de esvaziá-lo de seu papel na articulação das formações sociais e sim no de esvaziar os já limitados mecanismos de controle da sociedade sobre o pessoal dirigente do Estado.

A ruptura das relações de poder estabelecidas e a constituição de novas continua passando pela luta política, cuja catalização permanece função dos partidos e de sua militância.

Um parênteses sobre Lenin

Aqui cabe um parênteses sobre Lenin, que surge em qualquer debate sobre o tema. Ele está atualmente com muito má fama, apontado como pai do stalinismo ou mesmo como um pensador totalitário.

Mas quais são os traços distintivos da visão de ação política de Lenin face à tradição socialista anterior? Primeiro, o reconhecimento efetivo da autonomia e especificidade da esfera política. No centro de sua concepção estão idéias como as de acontecimento político, da necessidade de uma estratégia, de acumulação de forças na luta para disputar o poder e de atualidade da revolução. Segundo, que o partido deve ser claramente delimitado da classe, que a atividade política não decorre naturalmente da atividade social ou econômica.

A idéia da delimitação entre classe e partido é democrática e não totalitária. Ela não é clara em Marx ou Rosa Luxemburgo. Como poderiam os trabalhadores (ou os oprimidos) terem diferentes partidos, igualmente legítimos, sem que esta distinção se estabeleça? Como poderíamos, de outra forma, construir um bloco de forças sociais heterogêneas ao redor de um projeto revolucionário sem que nenhuma destas forças fosse intrinsecamente revolucionária?

Retomo esse tema não para idealizar Lenin, nem para minimizar os limites da visão de mundo que organizou sua leitura do marxismo, nem tampouco para secundarizar o papel que a substituição da atividade da classe trabalhadora pela ação do partido, depois de 1917, teve na burocratização da URSS e na formação do stalinismo, inclusive quando o próprio Lenin esteve à frente do poder. Retomo para destacar uma problemática, introduzida no pensamento socialista por Lenin, com a qual nossos objetivos emancipadores não podem ter uma relação fácil, sem contradições, mas da qual também não podemos fugir. Afinal, a crueza com que ele lidou com as dimensões da política como luta pelo poder só encontra paralelo nas reflexões de Maquiavel.

Todo partido socialista que almeja o poder - rechaçando o espontaneísmo, de um lado, e não reduzindo sua atividade à respeitosa atuação parlamentar, de outro - está se movendo num espaço onde a ação tem que levar em conta a lógica própria da esfera política. Lidar com a necessária unilateralidade da eficácia instrumental aí presente faz parte da luta pela mudança das relações de poder na nossa sociedade. As situações ideais de comunicação apontadas por Habermas, onde um interlocutor respeita o outro e o que vale são os argumentos levantados, não é um modelo para explicar o que se passa no mundo real da política; aí, infelizmente, estamos no universo instaurado pelas reflexões de Lenin, com todos os riscos que isso implica.

Se a obra de Lenin tem um alcance mais geral não é, pois, porque fornece um modelo de partido (qual? o legal e massivo ou o clandestino e conspirativo?) ou um modelo de militante (qual? o revolucionário profissional ou o tribuno do povo?). É por isso que a sua obra foi apropriada por doutrinas tão diferentes, da mesma forma que proliferaram diferentes marxismos. A forma como Lenin é normalmente invocado na discussão sobre partido e militância mais confunde que esclarece.

As questões que definem o sentido da militância partidária são muito concretas: a ação política se restringe ao parlamento ou tem aí o seu centro de gravidade? ou, pelo contrário, o centro de uma política transformadora está fora daí? O militante de um partido deve defender suas posições em um sindicato ou movimento? caso derrotado, deve respeitar as decisões democráticas destas entidades? A atuação dos dirigentes de um partido socialista deve ser submetida ao controle do conjunto dos membros do partido? Deve existir solidariedade coletiva no encaminhamento das decisões democráticas tomadas por um partido? As fronteiras que separam um partido dos demais e da sociedade devem ser abolidas?

São respostas a essas e outras questões que o PT debate desde sua formação, que delimitam um partido como uma instituição onde a militância tem sentido enquanto adesão a um programa e a um projeto político.

Livre expressão da subjetividade

Os modelos de militância que marcaram os setores mais radicais da esquerda no século XX se esgotaram. Eram figuras como o bolchevique, o agitador anarquista, o guerrilheiro (à imagem do Che), o comunista soldado do partido. As regras que permitiam o funcionamento de coletivos que constituíam estas figuras foram sendo corroídas. Uma explicação corrente é que foram derrubadas em nome da democracia e da defesa dos indivíduos, antes asfixiados por estruturas onde imperava a disciplina ou por ideais tão absorventes e grandiosos que hoje são vistos como religiosos.

Estes são aspectos do problema, mas como explicação isso é insuficiente. As personalidades, necessidades e comportamentos dos indivíduos são socialmente constituídas por relações que se alteram na história. As figuras acima eram possíveis no contexto de sociedades cuja reprodução ainda era, em grande parte, moldada pela tradição, onde a disciplina era um valor positivo compartilhado por diferentes camadas, o espaço para os indivíduos fazerem suas escolhas de vida muito reduzido, o sentimento de continuidade com a cultura do passado muito mais forte, a separação entre o público e o privado bastante rígida. Tudo isso propiciava a formação de subjetividades referenciadas num universalismo prometéico que mesclava ideais iluministas e românticos.

As transformações na constituição das personalidades foram profundas. Autores como Norbert Elias, Louis Dumont, Christopher Lasch, Anthony Giddens e outros já se detiveram sobre elas. Alguns vêem estas mudanças como negativas: individualismo exacerbado, narcisismo, crise do sujeito; outros como positivas: democratização da vida pessoal, possibilidade dos indivíduos moldarem cada vez mais aspectos de sua existência, terem um projeto reflexivo do eu. De qualquer forma, aquilo que para gerações passadas aparecia como normal, para nós surge como opressivo e inaceitável.

É a forma como se articulam hoje indivíduo e sociedade que faz com que o direito à diferença seja valorizado. Praticamente todos os aspectos que constituem os estilos de vida, da profissão à vida afetiva, da sexualidade às opções políticas, são encarados, por setores cada vez mais amplos, como decisões a serem autonomamente tomadas por cada pessoa.

Neste quadro, a militância só pode se desenvolver como a expressão de subjetividades mais autônomas, mais conscientes das forças sociais que atuam sobre elas. O peso de Foucault no pensamento social contemporâneo não é fortuito. As regras de convivência coletiva na militância têm que ser mais negociadas e flexíveis, aptas a lidarem com uma margem de liberdade individual muito maior. E a militância tem que ser integrada de forma mais coerente na definição do conjunto dos estilos de vida que conformam a identidade pessoal.

Luta por uma utopia

Nenhum movimento de mudança profunda avança sem um horizonte utópico e um discurso que o perfile. O marxismo, como interpretado pelo movimento socialista do início do século, funcionou como o discurso constitutivo da esquerda radical, como uma constelação básica de referências que se manteve bastante estável.

Este marxismo era marcado por um cientificismo positivista, onde se destacava uma concepção evolucionista da história, o determinismo econômico, a idéia do domínio da natureza pela sociedade, a razão igualada à consciência e expressa como técnica. Isso convivia com uma utopia: a promessa de uma adequação da existência humana com sua essência. Como ressalta Henri Maler em Cobiçar o impossível, "a emancipação humana deveria ser total; isto é, completa (superando a totalidade das alienações), universal (superando a alienação da totalidade dos homens) e integral (superando a totalidade das alienações de cada indivíduo) - a realização do homem total em cada indivíduo singular".

A política emancipadora na atualidade exige a revisão profunda destas concepções, a começar por reflexões do próprio Marx, embora ele não saia de foco - sua análise do capitalismo é mais atual do que nunca - e que ainda tenhamos que explorar diversas vias abertas por ele e até hoje pouco percorridas.

Mas a reestruturação da visão de mundo e a conformação de uma nova utopia socialistas independem de qualquer debate teórico sobre Marx e o marxismo. Os indivíduos procuram sempre dar forma às suas esperanças de um mundo melhor. Estas alterações já estão hoje se processando nos debates políticos e nas reflexões teóricas, reorganizando os horizontes de cada militante. Ecologia, feminismo, anti-racismo, internacionalismo, valorização da diferença e da democracia participativa são núcleos temáticos desta reestruturação. Na medida em que para novas gerações de militantes este repertório represente não uma ruptura com o passado, mas referências normais para organizar a ação política coletiva e sua inserção pessoal nelas, uma nova utopia emergirá dando forma a um amanhã pelo qual vale a pena lutar.

Todas estas faces da militância têm que se expressar numa compreensão comum dos acontecimentos, das tarefas presentes e de uma estratégia política, bem como no engajamento em instituições que propiciem a organização e ação política dos interessados em mudar a sociedade presente.

José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação de Teoria&Debate.