Cultura

Quero lembrar que as primeiras leituras causam um deslumbramento de iniciação que nunca mais acontece

Como sempre li muito e de maneira freqüentemente desordenada desde que aprendi a ler, acho difícil indicar os livros que me formaram; mas quero lembrar que as primeiras leituras causam um deslumbramento de iniciação que nunca mais acontece. No meu caso, foram alguns livros de histórias. Os da Biblioteca Infantil, por exemplo, dirigida por Arnaldo Barreto. Ou alguns de Monteiro Lobato, ainda não alterados pela mania didática que o acometeu mais tarde e, por vezes, tirou muito da poesia encantadora das versões iniciais de Narizinho arrebitado ou O saci. Além desses, os da condessa de Ségur ou o medíocre mas utilíssimo Tesouro da juventude, 18 volumes, que manuseei anos a fio a partir dos 9 anos. Mas também romances históricos brasileiros, que estavam em moda nos anos vinte, como os de Paulo Setúbal; ou as narrativas patrioteiras de Gustavo Barroso. Coroando tudo, Os três mosqueteiros e seguintes, que li aos 10 anos sem entender muita coisa. Por essa altura, devido a circunstâncias que não vêm ao caso, comecei de repente a ler coisa realmente adulta, sobretudo de literatura francesa. Mas não quero falar disso agora. Prefiro fazer uma verificação, aliás óbvia: frequentemente os livros que nos comovem ou alteram o nosso modo de ser são obras menores, se comparadas com outras da sua linha.

Como exemplo, tomo a leitura que talvez tenha decidido na adolescência a minha inclinação para o lado do socialismo e funcionou como faísca que ateia o fogo: a modesta e possivelmente hoje esquecida História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, dois volumes publicados em retradução do francês por Edições Cultura Contemporânea, editora de esquerda que difundia literatura radical nos anos de 1930. Isso foi em 1934, quando eu tinha 16 anos e estava no ginásio.

Esse livro era de grande utilidade para um mocinho pouco informado na matéria, porque apresentava a história, não apenas das idéias, mas também dos movimentos igualitários, desde as raízes na Antigüidade, mostrando em seguida a ocorrência na Idade Média do sentimento de justiça social em religiosos inconformados, como Joaquim de Flora e, no Renascimento, de utopias como Thomas Morus e Campanella, até chegar ao socialismo, no século XIX, com destaque para Marx, mas muita atenção às outras modalidades.

Isso me leva a uma segunda verificação: os livros que marcam a nossa inteligência e a nossa convicção funcionam não apenas como modificadores da visão das coisas e do mundo, mas interferem na compreensão de outros livros. O de Max Beer abriu para mim e alguns amigos uma nova maneira de encarar a vida social e a própria realidade: por isso, influiu na escolha e no entendimento de novas leituras. Por exemplo: aqueles anos do decênio de 1930 viram um grande surto da narrativa brasileira, inclusive a revelação dos romancistas do Nordeste, alguns dos quais marcados por forte tônica social e, todos, apresentando uma visão inconformada da realidade. Orientado mentalmente pela impregnação de Max Beer, passei a ler de maneira por assim dizer socialista romances como O quinze, de Rachel de Queiroz; Os Corumbas, de Amando Fontes; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Banguê e Moleque Ricardo, de José Lins do Rego. O resultado foi que a literatura se tornou estímulo para ver o mundo à luz da opressão de classe, da injustiça social, da legitimidade da revolução. Essa capacidade de contaminar me parece sinal da importância que determinado livro pode ter como formador da mentalidade.

E é claro que o livro de Max Beer incrementou o interesse pelas leituras de cunho socialista, que, tendo no começo reforçado a adesão puramente mental, acabaram favorecendo o engajamento político a partir de 1943.

Antonio Candido é professor e membro do Conselho Editorial de Teoria & Debate.