Em impressionante depoimento à T&D, o professor russo Kiva Maidanik relata as misérias e descaminhos de um pais que já foi símbolo da esperança
Em impressionante depoimento à T&D, o professor russo Kiva Maidanik relata as misérias e descaminhos de um pais que já foi símbolo da esperança
No último mês de junho, o professor Kiva Maidanik, do Instituto de Economia Mundial de Moscou, esteve no Brasil a convite do Instituto Cajamar, logo após a realização do primeiro turno das eleições russas. Quem conheceu Kiva anteriormente, quem leu sua entrevista concedida a T&D nº 16 de novembro de 1991, quando de sua primeira visita ao Brasil, facilmente constatará a mudança em seu estado de espírito. Não é para menos. Em impressionante depoimento à T&D, Kiva relata as misérias e descaminhos de um pais que já foi para milhões o símbolo da esperança.
Qual é a avaliação que o senhor faz do quadro político russo?
Na Rússia não existe democracia. As eleições não diferem muito das realizadas no Haiti quando da época de Duvalier. A maior parte dos observadores políticos, no início do ano, tinha absoluta certeza de que Yeltsin o tinha confirmado dizendo que psicologicamente não estava disposto a entregar o poder aos comunistas. Eu diria que psicologicamente ele não estava disposto a entregar o poder a qualquer outro que não fosse da sua camarilha. O presidente é o único poder no país. Todas as decisões estratégicas são tomadas por ele com seu círculo íntimo. Assim, fica muito difícil dar a este regime o nome de democrático. É uma autocracia, algo como uma monarquia pouco constitucional. Uma piada dizia que deveria se colocar como primeiro ponto da nova constituição que a Rússia é uma república democrática encabeçada pelo presidente Boris Yeltsin. Não temos na Rússia classes conscientes dos seus interesses, dos seus adversários, com as quais pode-se ter um compromisso. Não há nada que denote uma consciência política de classe. Nem na burguesia incipiente, nem na classe operária. Existe somente um verdadeiro partido, que é o Comunista, e outra força, que é o poder. Ambos, o PC e o poder, atuam dentro do sistema. Por este motivo, é o cúmulo da ingenuidade pensar que se Ziuganov tivesse ganho poderiam se operar mudanças no sistema. Ziuganov tem muito menos de comunista do que qualquer social-democrata do Ocidente. É um nacionalista com certos matizes fascistóides. Seu maior pecado é justamente se proclamar comunista e desta forma comprometer a doutrina. Basta dizer que, segundo Ziuganov, o maior erro dos comunistas na Rússia foi seu internacionalismo e que o partido, que se chama comunista, deveria sempre se basear na idéia de Rússia e não no internacionalismo. Se compararmos os programas de Yeltsin, do partido que se chama comunista e o dos Guardas Brancas, na época da guerra civil, vamos ver que os três se parecem muito. Como dizem os comunistas, Yeltsin roubou uns dois terços do seu programa. Toda a parte estatista, que constitui o núcleo do programa comunista, foi roubada por Yeltsin e inserida no seu próprio. Toda a propaganda nacionalista também é comum a Yeltsin e a Ziuganov. As eleições expressavam a disputa de diferentes elites dentro do establishment. O problema é que não existe um consenso a respeito de que regime é este. No momento em que a direita tomou o poder, em 91, se falava do capitalismo à ocidental. Hoje, está claro que não o temos. Alguns, como Yeltsin, dizem que não temos, mas que caminhamos rumo ao capitalismo ocidental. Outros dizem que não temos e não queremos. Os terceiros dizem que não o temos, porém que temos algo que não é uma fase transitória, mas algo acabado.
Quem é contra o capitalismo ocidental?
De um lado, os comunistas e os nacionalistas. Eles dizem que o regime deve ser derrotado porque é antinacional e não porque é capitalista. O fato de ser capitalista para eles não é nenhum pecado. Já a oposição democrática diz não se tratar de uma transição e sim de um regime já formado que tem tanto em comum com o capitalismo quanto o regime que vivemos até dez anos atrás teve com o socialismo. Ou seja, em ambos os casos, tratar-se-ia de um disfarce ideológico, no qual a realidade é bem diferente. Trata-se novamente do domínio da estadocracia, do pessoal do Estado. Na Rússia, hoje, 70% das elites são da autocracia e da estadocracia, os mesmos de há dez anos. É a mesma nomenclatura, só que é seu segundo escalão. Este pessoal está agora, por um lado, consolidando seu poder e por outro, e aqui temos a parte mais importante, está caminhando no processo de transformar definitivamente sua administração da economia numa propriedade semiprivada. Não querem a propriedade privada porque nela, quando há perdas, estas recaem também sobre o proprietário. Preferem a fórmula: o lucro é nosso, as perdas são do Estado. A privatização, como processo econômico, praticamente não se iniciou ainda. Há muito barulho, porém poucos resultados. Mas daqui a pouco vai começar e é isto que interessa na Rússia de hoje e tem muita mais importância para as elites do que as eleições. Estas devem formar um ambiente agradável para que, com toda tranqüilidade, sem qualquer participação popular, se comece a enfrentar o problema principal: a privatização. O que tivemos durante estes três anos foi um enorme butim, o maior do século. A Rússia tem riquezas naturais duas vezes mais que o Brasil, a África do Sul, a China e a índia juntas, além do criado em setenta anos pelo duro trabalho do povo. Tudo isto agora está para ser partilhado.
Seria o maior saque de toda a história?
O maior saque, porém pode se tirar de diferentes formas. Pode-se fazer de forma civilizada. Por exemplo, o que acontece na República Tcheca é uma privatização capitalista, na qual o povo fica com uma parte muito pequena, mas é uma privatização sem roubo e com a participação de todos os capitalistas. Na Rússia, a coisa é feita de outro modo: o mais forte toma tudo e dá um pouco para os menos fortes. O mais forte não é o mais rico, é quem tem mais acesso às influências do Estado. O proprietário é o funcionário. A grande maioria dos empresários é de funcionários. Receberam uma parte da propriedade do Estado para atuarem como pseudo-empresários. Então, até este momento, este banquete foi em grande parte monopolizado, pelo menos nos seus melhores pedaços, pelo funcionalismo, pela elite do Poder Executivo, pelo presidente e seu círculo próximo. Em segundo lugar, pelo grupo de banqueiros que operaram com o dinheiro do Estado, recebido com taxas de juros oficiais, porém, dado a outros com taxas de juros de bancos privados dez vezes maiores. E também pelos exportadores, principalmente de gás e petróleo. E finalmente, por outras forças menores, como os exportadores de metais não-ferrosos e os importadores de mercadorias. Assim se fizeram fortunas... Todas essas elites foram se entrelaçando. Temos uma associação chamada Organização de Veteranos do Esporte, encabeçada pelo ministro dos Esportes. Durante três anos, essa organização teve o monopólio de importar bebidas alcóolicas para a Rússia, conquistando a metade do mercado russo, que não é precisamente um país de abstêmios... Também tiveram o monopólio da importação de tabaco. Ou seja, tratava-se de dezenas de bilhões de dólares nas mãos de uma organização encabeçada pelo ministro que é o parceiro de Yeltsin no jogo de tênis!
E esse dinheiro vai todo para o círculo próximo a Yeltsin?
Em parte. Os exportadores de matéria-prima, por exemplo, são bastante independentes. A guerra de Tchetchênia é uma guerra do entorno de Yeltsin contra o clã dos combustíveis encabeçado pelo primeiro-ministro Tchernomirdin que, de acordo com a Constituição, é o sucessor de Yeltsin em caso de seu impedimento por qualquer motivo. Antes de ser nomeado primeiro-ministro ele foi presidente de uma companhia estatal de extração, exportação e produção de gás que está entre as cinco maiores do mundo. É maior que qualquer companhia petrolífera norte-americana. Ele se sente independente da camarilha em torno de Yeltsin que, para derrubá-lo, iniciou a guerra de Tchetchênia, que não tem nada a ver com petróleo nem com uma guerra imperialista russa. Foi uma continuação direta da briga entre os clãs em Moscou. Agora, outras elites, a do complexo industrial-militar, a do agrobusiness etc. reclamam sua participação. Assim, desde o ano de 94, com a primeira derrota eleitoral de Yeltsin, sempre se dão dois processos paralelos: por um lado, a briga entre as elites em torno do butim e, por outro, a tendência a uma certa consolidação destas elites às custas da participação do povo. Porque elas percebem que, nas brechas e rupturas criadas pelas brigas, pode surgir o descontentamento e até o protesto dos que têm perdido.Qual o significado das eleições neste quadro?
Do meu ponto de vista, estas eleições constituíram ao mesmo tempo a vitória e a duríssima derrota da democracia. As eleições de dezembro do ano passado se constituíram num êxito da democracia em todos os aspectos porque as forças do protesto social saíram vitoriosas e as do poder foram derrotadas. Agora, a situação é mais complexa. É positivo que as eleições tenham sido realizadas, porque Yeltsin as poderia ter cancelado. Pelo menos, vários membros do círculo mais próximo pressionaram neste sentido. Mas, a esta pressão se opôs a do Ocidente, que era a favor da sua realização. De qualquer forma, o fato de terem acontecido as eleições é um êxito, se não da democracia, porque democracia nós não temos, mas pelo menos foi um fracasso do autoritarismo cínico. Porém, considero os resultados ruins do ponto de vista da democracia. As duas forças que foram para o segundo turno são antidemocráticas. O poder de Yeltsin provou todo seu antidemocratismo na prática, inclusive com a guerra na Tchetchênia em que não foi consultado nem o Parlamento. Ou no que foi feito com a televisão, quando a oposição não teve acesso aos meios de comunicação e toda a campanha eleitoral foi só em favor de uma parte, a do poder.
Por que o senhor diz que Ziuganov não representa uma alternativa democrática?
Ziuganov nunca pronuncia a palavra democracia. Não tem se pronunciado sobre o stalinismo, porém tem se manifestado no sentido de que os lemas do czarismo do século XIX lhe parecem ótimos: ortodoxia como religião, patriotismo e estatismo. Tudo isso não permite vislumbrar pontos positivos caso Ziuganov tivesse ganho, ainda mais que o seu círculo mais próximo é altamente nacionalista e revanchista. Estas duas forças receberam dois terços dos votos. Têm se revelado antidemocráticas, uma por meio de suas ações e a outra por declarações. O general Lebed, que não rouba nem tem ladrões no seu círculo mais próximo, também não está de nenhuma forma associado com a democracia e recebeu 15% dos votos.
Que candidatos expressariam o campo democrático?
Todos os candidatos partidários da democracia fracassaram totalmente, como é o caso de Gorbatchev, Fiodorov e Iavlinski. Os três receberam, no conjunto, menos de 10% dos votos. A derrota dos candidatos democráticos é o primeiro fruto ruim das eleições. Se analisarmos o resultado do ponto de vista social, a situação é mais ambígua, porque tudo aquilo de muito ruim a que me referi diz respeito ao candidato Ziuganov, a seu entorno, mas não ao seu eleitorado. Quem votou pelo Partido Comunista é o eleitorado normal da esquerda. São os pobres, os que perderam com a reforma. Seu voto nos comunistas tem um caráter de protesto social que, infelizmente, mais uma vez, ficou totalmente separado do seu matiz democrático. Desse ponto de vista, pode-se dizer que os comunistas receberam todos os votos de protesto que, nas eleições de dezembro, foram obtidos pelos dois partidos comunistas e por outras forças da esquerda e da ultra-esquerda, sem contar a centro-esquerda. O eleitorado que votou nos comunistas manteve uma posição de protesto, mas eles não souberam ampliar este potencial de protesto social em direção ao centro democrático. E não souberam ampliá-lo para o eleitorado nacionalista, porque 6% dos votos que Jirinovski perdeu foram para o general Lebed. Os pouco mais de 12% de votos que teve Rutskoi, vice-presidente, em 95, também foram para Lebed. Os comunistas calcularam que todos esses votos iriam para eles, com a campanha nacionalista que realizaram, e não foi assim. Apesar de todas as suas idéias erradas sobre a Rússia e o internacionalismo, não souberam conquistar o voto nacionalista. Yeltsin soube fazer o que para o Ocidente parecia impossível. É evidente que houve fraude, mas ela não pode explicar nem ao menos a maior parte do voto yeltsinista.