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Luiz Felipe de Alencastro é considerado um dos mais brilhantes expoentes da nova safra de historiadores brasileiros. Entrevista à T&D

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Luiz Felipe de Alencastro é considerado um dos mais brilhantes expoentes da nova safra de historiadores brasileiros. Dando prosseguimento à série de entrevistas que estamos realizando com importantes intelectuais brasileiros, T&D aproveitou sua curta estadia no Brasil, durante o mês de abril, para uma conversa sobre seu trabalho. Além de nos expor sucintamente suas teses sobre a História do Brasil, Alencastro emite interessantes opiniões sobre o quadro político brasileiro e as perspectivas da esquerda no mundo em geral e do PT em particular.

Em primeiro lugar, dê um pequeno panorama de sua trajetória intelectual e do que esta fazendo atualmente.

Prestei vestibular na Universidade de Brasília em 64, algumas semanas antes do golpe, e quando este veio eu fazia parte da direção da Federação de Estudantes Universitários de Brasília e me vi envolvido na primeira onda da repressão, que naquela época não era violenta. Enfim, éramos só presos e em Brasília não havia casos de tortura. Em 66, graças à intervenção dos meus professores da Universidade e de algumas outras pessoas do governo Goulart, consegui uma bolsa de estudos na França, concedida pelo governo francês, onde graduei-me em Ciência Política e História, fiz doutorado e depois fui nomeado assistente-associado da Universidade de Rouen. Trabalhei também na Universidade de Vincennes em Paris. Fiquei lá até 86, durante quase vinte anos, quando voltei para o Brasil e passei a fazer parte do Cebrap e da Unicamp, onde dou aula no Instituto de Economia. Em seguida, fiz a minha livre-docência em História Econômica na Unicamp e agora estou concluindo um pós-doutorado na França, que é a transformação da tese de livre-docência em um livro, que acabei de concluir, a ser lançado no fim desse ano ou no começo do ano que vem.

No final do seu último seminário no Cebrap, você dizia que, como historiador, tinha interesse em desfazer três mal-entendidos da historiografia brasileira. Você poderia citá-los?

Existem realmente três mal-entendidos. Sobre o período colonial, o mal-entendido é que a descoberta do Brasil e o Governo Geral criaram o sistema colonial. Ou seja, como se tivesse bastado os portugueses chegarem, introduzirem a cana e os escravos africanos e a coisa engatasse num modelo triangular: os navios vêm da metrópole com manufaturados, pegam escravos na África e trazem para o Brasil, onde trocam por gêneros coloniais - açúcar, tabaco e depois café - e levam para Portugal. Não foi bem assim. Deve-se observar, em primeiro lugar, que o Brasil estava inserido num processo de formação de um mercado mundial e, a princípio, não era prioridade do império português. Quando finalmente a economia portuguesa tira seu foco de atenção do Oriente e o centra no Ocidente, ela se assenta num sistema em que rapidamente os interesses propriamente brasileiros, isto é, do colonato local, se afirmam quase que ao lado dos interesses metropolitanos, especificamente no que se refere ao tráfico negreiro. Há, desde o começo do século XVII, uma negociação bilateral entre Brasil e Angola que envolve a exportação de mercadorias brasileiras em troca de escravos africanos. Começa a haver uma certa autonomia nesse comércio Sul-Sul ou intercolonial. No final do século XVII, já há uma dupla administração desse espaço, uma co-gestão do Atlântico Sul, dividida entre os portugueses de Portugal e o colonato brasileiro.

E justamente isso que abre campo para outro mal-entendido: achar que tal como Cabral chegou e criou o sistema colonial, D. Pedro I deu o grito do Ipiranga e um novo Estado nacional se formou. Também não é assim, não só pelas razões internas que se apontam sempre - o problema das revoltas regenciais, do assentamento da autoridade do governo central nas diferentes províncias etc. -, mas também e sobretudo pelo papel que o Estado tem em nível externo. Porque, em conseqüência do que foi dito antes, o Brasil se independentiza mergulhado no tráfico negreiro que, a essa altura, era considerado pirataria. O Estado que nasce é, portanto, um estado-pirata. Isso não é um jogo de palavras, são exatamente os termos da legislação do direito internacional e dos tratados que o Brasil tinha assinado que entendiam o tráfico negreiro como ato de pirataria. Estando à margem do embrionário direito internacional existente, o país não só não compunha o rol das nações civilizadas como também estava sujeito a uma invasão por parte dos países europeus. O grande problema da história do século XIX é entender como o governo central se colocou num equilíbrio perverso entre a pressão externa, inglesa em particular, para acabar com o tráfico e a interna, dos escravistas, para não acabar com ele. E justamente graças a esse comércio de pilhagem da população africana que foi possível ao Brasil manter sua independência e se estruturar como Estado. Isso é o paradoxo da independência. O país consegue evitar se tornar imediatamente periférico à Inglaterra - como aconteceu com a maioria dos outros países da América Latina - porque é um braço do antigo sistema colonial e controla parte do negócio do qual as outras nações haviam se retirado, que era o tráfico negreiro.

Quando, finalmente, as classes dominante e dirigente, isto é, os fazendeiros e a burocracia imperial, decidem acabar com o tráfico, tentar trazer imigrantes e fazer estradas de ferro para abaixar o custo do transporte, há uma espécie de negociação global na qual os fazendeiros preferiram manter o latifúndio abrindo mão da escravidão. A legislação agrária de 1850 destina-se a manter a grande propriedade e trazer para o Brasil um proletariado agrícola. Não tem nada a ver com o tipo de colonização que os alemães de Santa Catarina estavam organizando, em que os colonos eram proprietários que produziam diretamente para o mercado. Vêm italianos, que são proletários, pobres, brancos, católicos. Mas, é justamente nessa fase que há uma espécie de problematização da questão da transição do trabalho escravo para o trabalho livre em cada região. É nesse processo que se vai elaborar uma legislação rural do trabalho bastante sofisticada, que se tentou implementar sem muito sucesso, embora os debates a respeito tenham se estendido por mais de meio século. E a meu ver é isso que está subjacente ao terceiro mal-entendido que é pensar que a legislação trabalhista "varguista", que fundou o Brasil moderno, saiu inteira da cabeça do Getúlio, toda feita depois de ele ler a Carta del Lavoro do Mussolini. Acho que a legislação varguista toma a herança de décadas de debate sobre a legislação rural e a questão do mercado de trabalho nacional propriamente dito e vai se aplicar aos trabalhadores urbanos, tendo em vista esse exército de reserva que existia no campo. Há, portanto, um eixo sobre a questão do trabalho, se você quiser, que atravessa quatro séculos de história do Brasil.

Pelos três mal-entendidos, pode-se depreender que há uma dificuldade adicional para o historiador ponderar de maneira rigorosa a importância dos elementos externos e internos no processo deformação e reprodução das nacionalidades periféricas?

O equívoco é fazer uma história territorial, quando no capitalismo ela não é territorial e nem mesmo nacional. Não havia nação nenhuma, embora existisse a idéia de que pernambucanos, paulistas, maranhenses, tinham algo em comum. Da mesma forma, há uma vertente de esquerda que quer que haja uma filiação de movimentos, desde a Confederação dos Tamoios, passando pelo Quilombo de Palmares, pela Inconfidência Mineira, até a Coluna Prestes. Eu não acredito nisso. Hoje, quem está fazendo uma história nacional para valer, quem a está organizando é o PT, que é, realmente, um partido nacional e que tem um nível de coordenação das lutas sociais no país. Não existia isso antes. As lutas nacionais populares no Brasil, no Império e na Colônia, eram sempre localistas, regionais, não tinham a dimensão do todo, do Estado.

E a elite?

A elite era quem tinha a dimensão e a experiência de Estado. A versão conservadora da história do Brasil é mais consistente até do que essa outra que prega uma continuidade das lutas do povo. Se se crê numa humanidade difusa, vítima do capitalismo, ela também escapa do território, ela não tem mais nada a ver com a história nacional. É necessário olhar também para o Paraguai e Angola, onde era a demanda brasileira que estava desencadeando um cataclisma sobre esses povos. O Brasil participou ativamente da pilhagem da África. Navios de bandeira brasileira foram pilhar aldeias africanas no começo do século XIX, depois da Independência. Nós temos uma responsabilidade diante dos estragos feitos à África portuguesa em particular. Uma visão humanista deveria levar em conta isso também.

Mas, para voltar à idéia das duas histórias nacionais, as conservadoras até têm mais consistência, mas têm um grande limite: a idéia equivocada de que os fenômenos só se resolviam internamente, não vendo os dois lados do problema. Essa coisa velha de ficar fazendo do barão de Mauá um sujeito com espírito empresarial, vítima da burocracia estatal do Império, é um verdadeiro absurdo. Na primeira revolução industrial era necessário ter carvão e ponto. Se não tinha carvão não havia indústria, pois não havia mercado mundial de carvão; não existia onde comprar. O Brasil não tinha carvão, então não tinha indústria. E ademais, um industrial não faz o capitalismo. Então, há uma espécie de mistificação grotesca que a burguesia faz dos seus próprios heróis.

Mas há o outro lado também...

Eu não sou tão entusiasta do Quilombo dos Palmares, que é uma coisa que o movimento negro procura destacar. Primeiramente, porque esse tipo de luta atraía a população afro-brasileira para um enfrentamento em que ela sempre perdia. Este tipo de luta não era o único e nem o mais eficaz. A forma de luta mais eficaz na escravidão foi a sabotagem difusa dos escravos na cadeia de produção. A palavra sabotagem vem do francês sabot que quer dizer tamanco, o objeto que os operários enfiavam na engrenagem das máquinas. No caso da escravidão, a sabotagem incluiu desde a atitude da mãe escrava que tinha o heroísmo de provocar um aborto para não ter um filho escravo até o sujeito que esfregava o pé no curral para pegar bicho-de-pé e não trabalhar, passando pelo que matava e fugia, como houve muito em São Paulo. Por outro lado, essa idéia de que Palmares pudesse ser uma democracia é um absurdo. Nenhuma sociedade guerreira é democrática. Se fosse, teria sido a primeira do mundo. Porque uma sociedade guerreira tem que ter organização hierarquizada para se defender dos ataques constantes. Nenhuma sociedade militar é aberta a debates, à co-gestão. Dessa perspectiva, é muito mais importante mostrar a truculência dos vencedores do que inventar uma consciência homogênea e nacional dos vencidos, que não existiu.

Nesse sentido, o historiador tem um papel importante nesse rastreamento do processo de consolidação das classes dominantes. Nesse livro que estou acabando, mostro como a pilhagem em Angola, na segunda metade do século XVII, foi feita por gente saída do Brasil. A destruição dos reinos africanos foi feita contra a vontade do próprio colonato angolano e da Coroa Portuguesa, que tinha ali uma política de feitorias e não queria encrenca com os reinos africanos. Essa gente saída do Rio, de Pernambuco, da Bahia os destruiu. Isso é importante para mostrar quanto é necessário fazer uma história extraterritorial, até do ponto de vista dos vencidos, porque estes não estavam todos aqui, não foram todos vencidos em território nacional.

Qual era o modo de produção a que estavam submetidos os negros na África?

Há um mal-entendido também sobre a economia africana. A África é sempre vista como um continente exportador de mercadoria viva, marfim, ouro, madeira, escravos. Mas ela era também um grande mercado importador. Havia sobretudo algo que não existia na América portuguesa, que é o comércio a longa distância. Uma ampla rede de trocas que percorria o continente por semanas e meses. Isso existia na África ocidental, na central, na oriental. Das minas de Moçambique se levava o ouro, pelo oceano Indico e pelo Oriente Médio, para a Ásia e Europa. Havia o ouro do golfo da Guiné que, durante séculos, chegou ao Mediterrâneo pela da rede de caravanas. Certas regiões da África, nos séculos XV e XVI, não eram mais atrasadas do que regiões da Europa. Mesmo antes disso, a arte africana, as estátuas dos séculos XII e XIII, por exemplo, são tão sofisticadas e avançadas quanto as gregas. Havia uma indústria siderúrgica já avançada, uma indústria têxtil... Tudo artesanal, como era na Europa aliás. Mas, por outro lado, não tinham marinha, pólvora, fábricas de armas de fogo.

Nesse contexto, o escravo já existia como elemento de troca. Mas o escravo doméstico africano não tinha nada a ver com o que era exportado para o Atlântico. Nas aldeias africanas não se vendiam os próprios cidadãos, os membros da comunidade. No Congo, por exemplo, até o século XVII, todos os escravos que saíam eram de outras regiões. Existia, portanto, um processo de escravidão doméstica, em que na segunda, terceira geração, o escravo era assimilado à família. Quando veio o mercado mundial e a demanda negreira, o processo se degradou de tal forma que se vendiam até os próprios filhos. Nesse ponto, volto a insistir, o Brasil, antes mesmo da Independência, teve uma participação importante no processo de degradação e, sob muitos aspectos, se beneficiou dele.

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Você parece sugerir que a idéia de desenvolvimento dependente e associado pode, de certa forma, ser estendida ao Período Colonial...

Eu acho que sim, mais do que em outras colônias de qualquer maneira. Essa política externa brasileira sobre a África é originária daí. No século XVII, por exemplo, os holandeses atacam o Nordeste, depois Angola e o contra-ataque brasileiro começa em Pernambuco, mas também em Angola. Sai uma expedição do Rio para expulsar os holandeses de Luanda. E a primeira expedição transcontinental que sai do novo mundo. Foi montada pelos fazendeiros, não para atender a uma demanda local, mas a de um grupo negreiro do Rio que enfiava escravos no rio da Prata para fazer contrabando e meter a mão na prata do Peru que por ali era exportada. É isso que financia essa empreitada para ocupar Luanda com uma tropa de 1.200 soldados do Rio e de Pernambuco.

De onde vem essa tradição de pilhagem, de desrespeito às leis internacionais?

Havia uma pilhagem internacional generalizada. A primeira guerra de narcotráfico no mundo, a do ópio, foi feita, em 1842, pela Inglaterra, que derrotou a China para obrigá-la a comprar o ópio. Portanto, a Inglaterra é a primeira grande potência narcotraficante do mundo. Por outro lado, houve massacres na África muito maiores do que os feitos pelos brasileiros. Todas as nações européias andavam metidas no tráfico.

Porém, no Brasil há uma dupla tradição perversa. A primeira é a da escravidão. Um país que viveu trezentos anos nela mergulhado, na violência doméstica e na administração da tortura e do terror. Havia uma situação de infracidadania generalizada para uma parte da população. Além disso, era um país que usava a tortura na frente dos outros e a mutilação como métodos exemplares para impedir a fuga de escravos. Todas essas coisas estavam banidas da maioria dos outros países de tradição ocidental. O Brasil carrega isso até o final do século XIX.

Por outro lado, outra perversidade era a Inquisição ibérica, que é uma reação da aristocracia contra a burguesia mercantil, procurando judeus em toda parte. Achava-se que todo comerciante era um judeu em potencial, o que estrangulou a emergência de uma burguesia interessada na ampliação de direitos civis, que foi o elemento de modernização da Europa, de destruição da aristocracia parasitária. A burguesia mercantil foi importante na modernização da Inglaterra e da Holanda. Nos países da península ibérica, justamente por causa da perseguição aos protestantes e aos judeus, ela teve travada sua ascensão e isso criou um viés muito importante na história ibérica e ibero-americana, com a não-generalização dos direitos civis. A Inquisição privilegiava a confissão obtida pela tortura, que era uma prática legalizada. Então, essa coisa de torturar, de humilhar o suspeito, de ocultar o denunciador é algo que atravessou Portugal moderno e ameaçou o colonato do Brasil durante algum tempo. O Brasil sai dessa dupla vertente. Nesse sentido, temos uma herança pesada, porque a idéia de que a confissão é a prova definitiva de culpa influenciou até o ensino de direito. A polícia científica existe há 120 anos e ainda não chegou ao Brasil. Não se faz prova material, não se recolhem impressões digitais quando há crime. A polícia brasileira é baseada no alcagüete, na tortura, na porrada e na confissão. Isso vem dessa dupla herança da escravidão e da Inquisição ibérica.

O que você pensa da declaração do FHC de que sua eleição representava o fim da era Getúlio?

A partir de 1970, houve uma urbanização da miséria. Os pobres do campo viraram miseráveis urbanos e isso sedimentou nas grandes cidades uma situação onde a população está absolutamente indefesa, sofrendo a criminalidade, o desemprego, a abdicação total do papel do Estado. Então, FHC diz que o getulismo acabou, que é fácil governar o Brasil, restringindo a idéia de governar a piruetas técnicas do tipo Plano Real, sem perceber que governar é não só assumir responsabilidades por toda a carência que o Estado criou, mas também fundar as condições da própria governabilidade, que foi o que Getúlio, a seu jeito, fez e FHC não faz. Ele parece prisioneiro de um certo materialismo vulgar. Ele pensa que, se completando a globalização, haverá uma reestruturação social e uma redefinição institucional que se fará pela dinâmica do mercado e da economia. Não é assim. Num primeiro momento, ele e o José Serra nos encheram a cabeça, dizendo que se não houvesse parlamentarismo o Brasil não seria viável. Quando tomam o poder, assumem o presidencialismo mais escrachado e desestabilizam o quadro institucional presidencialista que havia, porque essa coisa da federalização da dívida de São Paulo, por exemplo, nas circunstâncias em que ocorreu, é um elemento de desestruturação do federalismo. Amanhã chega outro prefeito, que não tem poder ou não quer fazer barganha com o governo federal, e fica pendurado com a dívida. Além do mais, essa dívida que o governo federal assumiu não tem valor social nenhum, é dívida de obras feitas pelo Maluf na parte rica da cidade.

Na década de 60, o debate sobre economia periférica apontava para duas alternativas: estagnação ou revolução. Fernando Henrique percebeu que havia um terceiro caminho que se provou historicamente verdadeiro: o do desenvolvimento dependente e associado. Não há a possibilidade de ele estar enxergando de novo o que poucos, na esquerda, vêem?

Veja bem. O cálculo do Fernando Henrique, de certa maneira, já está dando certo. Basta ler o noticiário da imprensa conservadora européia, que lhe é bastante favorável. Além disso, há uma insegurança muito grande com relação à Asia, porque a China tem pontos inegociáveis, como o da continuação do poder da burocracia do Partido Comunista e a recuperação de Taiwan. O fato da China ter ameaçado entrar em guerra fez aumentar o orçamento militar da Coréia do Sul, de Taiwan e do Japão num nível muito além do que eles queriam e assustou o capital estrangeiro que estava indo para lá. Esse nível de truculência pode gerar uma certa confusão que vai favorecer a América Latina ou eventualmente a índia. Mas o que me parece grave no cálculo do Fernando Henrique é que aparentemente não leva em conta o fato de que o país é forte quando tem uma coesão social forte. Um país inteiramente descosturado, como o Brasil de hoje, não é um interlocutor válido. Essas transições todas estão dependendo de indivíduos, de Yeltsin, Menem, Fujimori, Fernando Henrique, Zedillo, elas não estão embasadas em processos sociais, em burguesias hegemônicas independentes do Estado, em sociedades democráticas, como foi o caso da reconstrução da Europa depois do fim da Segunda Guerra Mundial. FHC está apostando no seu próprio prestígio. Como se estivesse na cabeça dele a articulação, sem que haja preocupação em criar condições de governabilidade, de estruturação dos agentes sociais. Ao contrário, a medida de punição dos petroleiros, por exemplo, é thatcheriana. É para demolir o pouco que há. Isso foi provocado pela dinâmica da sua eleição, independentemente da sua vontade. O fato dele ter sido eleito pela maior frente direitista jamais formada no Brasil criou um movimento devastador de desaprovação do movimento sindical e da esquerda.

Mas ele pode enfrentar problemas em função da desigualdade social e da crise permanente por que passa a sociedade brasileira. Nesse sentido, a situação do povo, de exploração e abandono, é um ponto fraco da negociação, que fragiliza a própria inserção do país no esquema internacional. Há um outro custo Brasil, que é o da não-democratização da sociedade. Num primeiro momento, pode até funcionar negativamente o fato de ter sindicato reivindicativo. Mas, a médio prazo, a integração consistente no processo de globalização se fará através de nações sólidas. As que não tiverem uma coesão social sólida vão virar mercado; não vão virar sociedades econômicas, nem sociedades democráticas. Elas vão se esgarçar.

Por que o governo não leva isso em consideração?

O Paulo Renato (ministro da Educação) diria que está perfeitamente lúcido sobre isso e que trabalha justamente para tampar esse buraco. Mas não é só a educação; é a questão de ter interlocutores políticos, sindicatos organizados, um debate estruturado, interesses definidos no Congresso. E isso, o método de governar do presidente e o tipo de aliança que ele fez, com o setor mais atrasado, levam-no a atropelar a relação que poderia ter com o Congresso, com os partidos, com os setores organizados da sociedade. Sua política acaba promovendo uma pelegada que não tem base nem engajamento definidos e leva a essa personalização do poder e a essa sobrevalorização de uma racionalidade intelectual que está depositada nele e não está fundamentada num mapeamento político. Esse é o mal-entendido. Antes, Fernando Henrique era um intelectual isolado, estava na galeria. Agora, ele é o chefe da orquestra. Ele está reduzido a sua própria reflexão e teria que ter um suporte social que a política dele justamente desmonta.

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Diante disso, qual seria o papel das oposições, do PT, em particular?

É preciso reconhecer que o PT, em geral, e o Lula, em particular, não souberam capitalizar a eleição presidencial. Na primeira eleição, contra o Collor, Lula foi eleito líder da oposição. Teve 31 milhões de votos, o que não é pouca coisa, e sumiu. Três meses depois ele deu aquela entrevista pífia para o Natali da Folha. Quando ele voltou, os 31 milhões de votos já tinham se evaporado. Os dois turnos têm uma dinâmica própria, o país não estava habituado a isso e ainda não está.

Eu morei na França de 66 a 86. Vi como o François Mitterrand ganhou em 1981. Quando eu lá cheguei, ele tinha perdido para o De Gaulle. Até então, ele era um advogado politiqueiro desconhecido. Perdeu de novo para Valéry Giscard d'Éstaing. Mas, à medida em que perdia, se estruturava como líder da oposição. No dia seguinte, ele estava em cima do governo, cobrando. Isso, num contexto em que a eleição seguinte só se daria dali a sete anos. Nesse sentido, na segunda eleição presidencial da qual o Lula participa, em que não houve nem segundo turno porque o Plano Real teve um efeito devastador e surpreendente a favor da candidatura do FHC, a reação do Lula, num certo sentido, foi até pior porque ele abandonou a política. Essa não-estruturação em torno do Lula leva a privilegiar uma outra via de chegar ao poder. No federalismo, se tem uma regra que só é furada em momentos excepcionais, como foram os da transição brasileira: elegeu-se o Collor, à beira de uma hiperinflação; elegeu-se o Fernando Henrique, que fez o truque. Mas, em geral, a regra é ser eleito governador de um estado forte e depois se ganha a Presidência. Quando não é assim, não funciona direito, nem nos EUA, onde o sistema é bipartidário e é uma velha democracia.

Hoje, o destino do PT está ligado a essa via longa de ascensão ao poder, de enraizamento nos municípios, de ganhar os governos dos estados e, em seguida, tentar a Presidência. Esse foi um ponto fraco da candidatura do Lula. Ele perdeu um ano antes da campanha começar quando, nos quatro estados principais, por causa da máquina do PT, foram escolhidos candidatos nulos, com 1% de votos, muito aquém da média nacional do Lula e que o empurraram para baixo. A articulação, pela primeira vez em quarenta anos, das eleições nacional e estadual exigia uma dinâmica própria do governador, que ajudaria a empurrar o candidato para presidente. O que aconteceu foi o inverso. O Lula tinha que ir nos estados fazer campanha para puxar as candidaturas a governador do PT que estavam lá no fundo do poço.

Você está falando de galgar os degraus do federalismo para chegar à Presidência. O PT nasceu, em parte, como uma crítica global à sociedade capitalista e como um partido socialista. O discurso do PT tem perdido esse caráter mais global e vem se particularizando em torno de questões específicas. Como você enxerga esse movimento?

A questão de pensar o socialismo e a continuidade do seu ideário nesse novo contexto da globalização é muito difícil, inclusive nos países europeus que têm partidos socialistas mais que centenários. Na Europa, agora, há um complicador suplementar, que é o fato de estar se criando um país novo, que é a União Européia. A frio, sem guerra, está se criando uma federação e os partidos ainda são nacionais. Claro que no Parlamento Europeu há uma bancada socialista e social-democrata, mas ele ainda não tem poder executivo. Além disso, há a questão da manutenção do estado de bem-estar, o que é difícil, inclusive do ponto de vista demográfico. As populações estão envelhecendo. Nos EUA há um outro componente diferente: a maioria da população americana, daqui a vinte ou trinta anos, será de hispânicos e negros. Essa maioria vai trabalhar para sustentar aposentados brancos, ou seja, gente de um grupo étnico trabalhando para sustentar um outro grupo. Mesmo que o sistema estivesse funcionando bem, há complicadores novos. Isso sem falar do desemprego estrutural, da automatização das fábricas etc. Então, isso não é uma carência do PT, é uma carência do socialismo e da reflexão hoje.

Especificamente sobre a situação brasileira há muito o que fazer. A população não está disposta a aceitar esse cálculo idiota que diz que a política de reforma agrária não tem mais sentido. Este é o cálculo besta que diz que finalmente a agricultura já se modernizou, não precisa mais de uma produção de pequenos proprietários, que é melhor fazer investimento e dar crédito rural para as grandes unidades e que quem está favelado na cidade não vai voltar mais para o campo. Então, deste ponto de vista, a reforma agrária não tem sentido. Nenhum brasileiro de bom senso engole isso. Porém, essa experiência acumulada na militância, no movimento dos sem-terra, e a dos intelectuais, da assessoria do PT na questão agrária, não tem sido articulada de maneira adequada para desencadear uma campanha sobre esse tema.

Também o trabalho com a questão da segurança pública e da violência policial, com o fato de que as primeiras vítimas são os pobres, é feito de maneira muito dispersa. A defesa dos serviços públicos também sensibilizaria grandemente a classe média. Hoje, uma escola primária de classe média no Brasil é tão cara quanto uma universidade de segundo time americana. A escola de São Paulo, para onde vai a classe média alta, é três vezes mais cara que uma escola em Paris, que tem curso integral. A classe média não agüenta mais essa idéia idiota de deixar desabar o serviço público e criar a rede privada. A gente paga segurança pública e não tem polícia. O Hospital das Clínicas desabou, a Previdência desabou e os que podem pagam um seguro de saúde caríssimo... A escola pública desabou, a gente põe numa escola privada... Uma campanha articulada em torno de uma reabilitação do serviço público, da escola, da saúde, da segurança, dos transportes públicos é outra coisa que teria um grande impacto. É lógico que o PT nunca vai conseguir ganhar eleição nenhuma se não atrair uma massa maior de gente de fora, com alianças. Ele pode fazer isso deixando de ser um partido de campanhas só sindicais, que aparecem hoje como corporativistas. Para isso é necessário ter uma plataforma política e consenso na direção.

É claro que há iniciativas isoladas, mas elas devem fazer parte de uma programação e de um ideário do partido. Há coisas setoriais importantes, que dão sentido para o país inteiro e que não são feitas.

Eu sempre fiquei chocado com o Governo Paralelo porque o acompanhava mais ou menos de perto - embora não seja filiado ao PT - por causa do Chico de Oliveira que era responsável pela questão regional. Fiquei sempre com um pé atrás pelo fato de não ter tido, no Governo Paralelo, um ministro da defesa. Esse é um elemento fundamental da transição: ter especialistas civis na questão militar, que não é só aumentar salários de militares, é redefinir o papel das Forças Armadas em outro contexto. Os grandes especialistas nas democracias, na questão da defesa, são todos civis e sabem se precisa ter porta-aviões e submarino atômico para a Marinha, tanque ou helicóptero blindado para as forças de infantaria etc. Como se vai profissionalizar o Exército, acabando com essa coisa de serviço militar obrigatório, um disparate que a França inventou na Revolução Francesa e agora abandonou? O serviço militar é um tributo, é a última renda in natura que o cidadão presta ao Estado. Isso não é debatido no Brasil. O PT poderia ter um papel pioneiro nisso. Porque a primeira preocupação de um governo de esquerda é ser "crível" na hora da conversa com os militares. E a idéia de ter um ministro civil tratando da questão militar é um sacrilégio no Brasil, o que faz parte do atraso.

Esse movimento da globalização e desmonte dos Estados Sociais não representa uma evidência da possibilidade de revigoramento do pensamento de esquerda clássico, inclusive marxista, ao inverso do que está se dizendo?

Um ponto que hoje parece evidente é que a centralidade do papel da classe operária, do proletariado, no processo de transformação social está em xeque. Os próprios neomarxistas na França, os chamados regulacionistas, reconhecem uma nova classe social que são os cadres, os intermediários entre o patronato e o proletariado, os técnicos que se constituem como classe nesse processo de fim do fordismo e do taylorismo e que têm um papel estratégico na empresa. Não há dúvida de que a coesão do proletariado e o papel privilegiado que ele teria na mudança social não se evidenciou. Mas, por outro lado, o que é impressionante é que há uma coesão social muito forte num país como a França e uma grande tradição de luta. Quando aconteceu a greve do setor público, houve um apoio grande da população que, apesar de estar sendo duramente sacrificada, continuou apoiando os grevistas durante um mês. Isso teve efeito nos outros países, que se assustaram com o ritmo das reformas. Houve até um certo recuo. Há uma coesão social herdada das lutas do passado e me lembro muito bem de grevistas dizerem: "os privilégios que eles dizem que temos foram arrancados por nossos pais, avós e bisavós, que lutaram muito para ter essas vantagens sociais. Não foram concebidos por um Estado paternalista, foram objeto de lutas sangrentas durante quase um século e queremos legá-los a nossos filhos".

Então, há uma tradição de luta que os sindicatos e os partidos políticos carregam. Na França não se aceita a pobreza. A gente não sabe qual efeito isso pode ter na própria União Européia, se vai atrasar essa política neoliberal que conservadores da Alemanha impõem à Europa, se vai enfraquecê-la perante a Ásia e a América, ou se isso vai dar numa sociedade de tipo diferente, mais pobre mas mais igualitária. Enfim, não estão definidas as condições. Há uma tendência no horizonte, mas há um movimento social que não se casa com isso. Há um potencial de luta ainda muito grande, não há desmobilização política. Pode haver uma dessindicalização, mas num país como a França isso não é uma boa notícia para o patronato, porque é o sinal do retorno a uma insurreição de trabalhadores, a um modo de protesto social difuso que é muito mais prejudicial para o capitalismo do que um sindicalismo organizado.

Nesse sentido, como você vê a possibilidade de retomada do marxismo enquanto crítica do sistema fetichista de produção de mercadorias?

Já houve o surgimento de uma segunda geração de autores com interpretações marxistas ou desdobradas de suas teses, ainda que às vezes isto não pareça evidente. Há uma tradição de luta social republicana, socialista, contemporânea ao surgimento do marxismo na França, e que às vezes o precede. Nessa perspectiva, se pode imaginar uma reunificação entre os partidos socialista e comunista, por exemplo. Isso é bem possível hoje. Há algumas questões sobre a Europa em que eles não estão de acordo, mas a direção geral do PC na França é bastante aberta. Isto também pode ser factível na Itália. Na Espanha é mais difícil. Na Inglaterra, o partido trabalhista se renovou bastante mas para a direita e tem possibilidades eleitorais. De repente, pode haver na Europa uma maioria socialista de novo, na Alemanha, na França etc. como houve em certos momentos. Na Inglaterra, a questão da reconstrução européia vai se colocar de outra maneira e isso influencia em vários lugares do mundo. Várias teses do marxismo estão de certa maneira na ordem do dia à medida em que este se despregou do leninismo. A tradição do socialismo europeu precede o comunismo e nunca se restringiu inteiramente a ele. É uma tradição socialista e social-democrata que tem sua própria cultura política e bases sólidas. Isto não acaba nunca. O partido social-democrata alemão enfrentou o nazismo, o comunismo e está lá...

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Você está falando de uma tradição de esquerda não-marxista e de outra marxista. Você acha que elas podem se reunificar?

Não se sabe ainda que rumo isso vai tomar, mas essas coisas podem se reunir adiante. A particularidade da vida política é que ela não está acoplada a debates intelectuais. A politização de um país se faz rapidamente pela luta política. O debate intelectual num certo sentido pega o trem em marcha. É uma ilusão dos intelectuais achar que o avanço da esquerda depende da sua reflexão. Ele depende da luta política. A emergência do Lula e do PT na esquerda brasileira acelerou o processo muito mais do que todos os debates que houve durante cem anos. Então, de repente uma maioria de governos socialistas e uma reunificação dos partidos comunistas e social-democratas na Europa podem trazer um componente novo a esse debate.

Fernando Haddad é membro do Conselho de Redação da Teoria & Debate.

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