Luiz Felipe de Alencastro é considerado um dos mais brilhantes expoentes da nova safra de historiadores brasileiros. Entrevista à T&D
Luiz Felipe de Alencastro é considerado um dos mais brilhantes expoentes da nova safra de historiadores brasileiros. Entrevista à T&D
Luiz Felipe de Alencastro é considerado um dos mais brilhantes expoentes da nova safra de historiadores brasileiros. Dando prosseguimento à série de entrevistas que estamos realizando com importantes intelectuais brasileiros, T&D aproveitou sua curta estadia no Brasil, durante o mês de abril, para uma conversa sobre seu trabalho. Além de nos expor sucintamente suas teses sobre a História do Brasil, Alencastro emite interessantes opiniões sobre o quadro político brasileiro e as perspectivas da esquerda no mundo em geral e do PT em particular.
Em primeiro lugar, dê um pequeno panorama de sua trajetória intelectual e do que esta fazendo atualmente.
Prestei vestibular na Universidade de Brasília em 64, algumas semanas antes do golpe, e quando este veio eu fazia parte da direção da Federação de Estudantes Universitários de Brasília e me vi envolvido na primeira onda da repressão, que naquela época não era violenta. Enfim, éramos só presos e em Brasília não havia casos de tortura. Em 66, graças à intervenção dos meus professores da Universidade e de algumas outras pessoas do governo Goulart, consegui uma bolsa de estudos na França, concedida pelo governo francês, onde graduei-me em Ciência Política e História, fiz doutorado e depois fui nomeado assistente-associado da Universidade de Rouen. Trabalhei também na Universidade de Vincennes em Paris. Fiquei lá até 86, durante quase vinte anos, quando voltei para o Brasil e passei a fazer parte do Cebrap e da Unicamp, onde dou aula no Instituto de Economia. Em seguida, fiz a minha livre-docência em História Econômica na Unicamp e agora estou concluindo um pós-doutorado na França, que é a transformação da tese de livre-docência em um livro, que acabei de concluir, a ser lançado no fim desse ano ou no começo do ano que vem.
No final do seu último seminário no Cebrap, você dizia que, como historiador, tinha interesse em desfazer três mal-entendidos da historiografia brasileira. Você poderia citá-los?
Existem realmente três mal-entendidos. Sobre o período colonial, o mal-entendido é que a descoberta do Brasil e o Governo Geral criaram o sistema colonial. Ou seja, como se tivesse bastado os portugueses chegarem, introduzirem a cana e os escravos africanos e a coisa engatasse num modelo triangular: os navios vêm da metrópole com manufaturados, pegam escravos na África e trazem para o Brasil, onde trocam por gêneros coloniais - açúcar, tabaco e depois café - e levam para Portugal. Não foi bem assim. Deve-se observar, em primeiro lugar, que o Brasil estava inserido num processo de formação de um mercado mundial e, a princípio, não era prioridade do império português. Quando finalmente a economia portuguesa tira seu foco de atenção do Oriente e o centra no Ocidente, ela se assenta num sistema em que rapidamente os interesses propriamente brasileiros, isto é, do colonato local, se afirmam quase que ao lado dos interesses metropolitanos, especificamente no que se refere ao tráfico negreiro. Há, desde o começo do século XVII, uma negociação bilateral entre Brasil e Angola que envolve a exportação de mercadorias brasileiras em troca de escravos africanos. Começa a haver uma certa autonomia nesse comércio Sul-Sul ou intercolonial. No final do século XVII, já há uma dupla administração desse espaço, uma co-gestão do Atlântico Sul, dividida entre os portugueses de Portugal e o colonato brasileiro.
E justamente isso que abre campo para outro mal-entendido: achar que tal como Cabral chegou e criou o sistema colonial, D. Pedro I deu o grito do Ipiranga e um novo Estado nacional se formou. Também não é assim, não só pelas razões internas que se apontam sempre - o problema das revoltas regenciais, do assentamento da autoridade do governo central nas diferentes províncias etc. -, mas também e sobretudo pelo papel que o Estado tem em nível externo. Porque, em conseqüência do que foi dito antes, o Brasil se independentiza mergulhado no tráfico negreiro que, a essa altura, era considerado pirataria. O Estado que nasce é, portanto, um estado-pirata. Isso não é um jogo de palavras, são exatamente os termos da legislação do direito internacional e dos tratados que o Brasil tinha assinado que entendiam o tráfico negreiro como ato de pirataria. Estando à margem do embrionário direito internacional existente, o país não só não compunha o rol das nações civilizadas como também estava sujeito a uma invasão por parte dos países europeus. O grande problema da história do século XIX é entender como o governo central se colocou num equilíbrio perverso entre a pressão externa, inglesa em particular, para acabar com o tráfico e a interna, dos escravistas, para não acabar com ele. E justamente graças a esse comércio de pilhagem da população africana que foi possível ao Brasil manter sua independência e se estruturar como Estado. Isso é o paradoxo da independência. O país consegue evitar se tornar imediatamente periférico à Inglaterra - como aconteceu com a maioria dos outros países da América Latina - porque é um braço do antigo sistema colonial e controla parte do negócio do qual as outras nações haviam se retirado, que era o tráfico negreiro.
Quando, finalmente, as classes dominante e dirigente, isto é, os fazendeiros e a burocracia imperial, decidem acabar com o tráfico, tentar trazer imigrantes e fazer estradas de ferro para abaixar o custo do transporte, há uma espécie de negociação global na qual os fazendeiros preferiram manter o latifúndio abrindo mão da escravidão. A legislação agrária de 1850 destina-se a manter a grande propriedade e trazer para o Brasil um proletariado agrícola. Não tem nada a ver com o tipo de colonização que os alemães de Santa Catarina estavam organizando, em que os colonos eram proprietários que produziam diretamente para o mercado. Vêm italianos, que são proletários, pobres, brancos, católicos. Mas, é justamente nessa fase que há uma espécie de problematização da questão da transição do trabalho escravo para o trabalho livre em cada região. É nesse processo que se vai elaborar uma legislação rural do trabalho bastante sofisticada, que se tentou implementar sem muito sucesso, embora os debates a respeito tenham se estendido por mais de meio século. E a meu ver é isso que está subjacente ao terceiro mal-entendido que é pensar que a legislação trabalhista "varguista", que fundou o Brasil moderno, saiu inteira da cabeça do Getúlio, toda feita depois de ele ler a Carta del Lavoro do Mussolini. Acho que a legislação varguista toma a herança de décadas de debate sobre a legislação rural e a questão do mercado de trabalho nacional propriamente dito e vai se aplicar aos trabalhadores urbanos, tendo em vista esse exército de reserva que existia no campo. Há, portanto, um eixo sobre a questão do trabalho, se você quiser, que atravessa quatro séculos de história do Brasil.
Pelos três mal-entendidos, pode-se depreender que há uma dificuldade adicional para o historiador ponderar de maneira rigorosa a importância dos elementos externos e internos no processo deformação e reprodução das nacionalidades periféricas?
O equívoco é fazer uma história territorial, quando no capitalismo ela não é territorial e nem mesmo nacional. Não havia nação nenhuma, embora existisse a idéia de que pernambucanos, paulistas, maranhenses, tinham algo em comum. Da mesma forma, há uma vertente de esquerda que quer que haja uma filiação de movimentos, desde a Confederação dos Tamoios, passando pelo Quilombo de Palmares, pela Inconfidência Mineira, até a Coluna Prestes. Eu não acredito nisso. Hoje, quem está fazendo uma história nacional para valer, quem a está organizando é o PT, que é, realmente, um partido nacional e que tem um nível de coordenação das lutas sociais no país. Não existia isso antes. As lutas nacionais populares no Brasil, no Império e na Colônia, eram sempre localistas, regionais, não tinham a dimensão do todo, do Estado.
E a elite?
A elite era quem tinha a dimensão e a experiência de Estado. A versão conservadora da história do Brasil é mais consistente até do que essa outra que prega uma continuidade das lutas do povo. Se se crê numa humanidade difusa, vítima do capitalismo, ela também escapa do território, ela não tem mais nada a ver com a história nacional. É necessário olhar também para o Paraguai e Angola, onde era a demanda brasileira que estava desencadeando um cataclisma sobre esses povos. O Brasil participou ativamente da pilhagem da África. Navios de bandeira brasileira foram pilhar aldeias africanas no começo do século XIX, depois da Independência. Nós temos uma responsabilidade diante dos estragos feitos à África portuguesa em particular. Uma visão humanista deveria levar em conta isso também.
Mas, para voltar à idéia das duas histórias nacionais, as conservadoras até têm mais consistência, mas têm um grande limite: a idéia equivocada de que os fenômenos só se resolviam internamente, não vendo os dois lados do problema. Essa coisa velha de ficar fazendo do barão de Mauá um sujeito com espírito empresarial, vítima da burocracia estatal do Império, é um verdadeiro absurdo. Na primeira revolução industrial era necessário ter carvão e ponto. Se não tinha carvão não havia indústria, pois não havia mercado mundial de carvão; não existia onde comprar. O Brasil não tinha carvão, então não tinha indústria. E ademais, um industrial não faz o capitalismo. Então, há uma espécie de mistificação grotesca que a burguesia faz dos seus próprios heróis.
Mas há o outro lado também...
Eu não sou tão entusiasta do Quilombo dos Palmares, que é uma coisa que o movimento negro procura destacar. Primeiramente, porque esse tipo de luta atraía a população afro-brasileira para um enfrentamento em que ela sempre perdia. Este tipo de luta não era o único e nem o mais eficaz. A forma de luta mais eficaz na escravidão foi a sabotagem difusa dos escravos na cadeia de produção. A palavra sabotagem vem do francês sabot que quer dizer tamanco, o objeto que os operários enfiavam na engrenagem das máquinas. No caso da escravidão, a sabotagem incluiu desde a atitude da mãe escrava que tinha o heroísmo de provocar um aborto para não ter um filho escravo até o sujeito que esfregava o pé no curral para pegar bicho-de-pé e não trabalhar, passando pelo que matava e fugia, como houve muito em São Paulo. Por outro lado, essa idéia de que Palmares pudesse ser uma democracia é um absurdo. Nenhuma sociedade guerreira é democrática. Se fosse, teria sido a primeira do mundo. Porque uma sociedade guerreira tem que ter organização hierarquizada para se defender dos ataques constantes. Nenhuma sociedade militar é aberta a debates, à co-gestão. Dessa perspectiva, é muito mais importante mostrar a truculência dos vencedores do que inventar uma consciência homogênea e nacional dos vencidos, que não existiu.
Nesse sentido, o historiador tem um papel importante nesse rastreamento do processo de consolidação das classes dominantes. Nesse livro que estou acabando, mostro como a pilhagem em Angola, na segunda metade do século XVII, foi feita por gente saída do Brasil. A destruição dos reinos africanos foi feita contra a vontade do próprio colonato angolano e da Coroa Portuguesa, que tinha ali uma política de feitorias e não queria encrenca com os reinos africanos. Essa gente saída do Rio, de Pernambuco, da Bahia os destruiu. Isso é importante para mostrar quanto é necessário fazer uma história extraterritorial, até do ponto de vista dos vencidos, porque estes não estavam todos aqui, não foram todos vencidos em território nacional.
Qual era o modo de produção a que estavam submetidos os negros na África?
Há um mal-entendido também sobre a economia africana. A África é sempre vista como um continente exportador de mercadoria viva, marfim, ouro, madeira, escravos. Mas ela era também um grande mercado importador. Havia sobretudo algo que não existia na América portuguesa, que é o comércio a longa distância. Uma ampla rede de trocas que percorria o continente por semanas e meses. Isso existia na África ocidental, na central, na oriental. Das minas de Moçambique se levava o ouro, pelo oceano Indico e pelo Oriente Médio, para a Ásia e Europa. Havia o ouro do golfo da Guiné que, durante séculos, chegou ao Mediterrâneo pela da rede de caravanas. Certas regiões da África, nos séculos XV e XVI, não eram mais atrasadas do que regiões da Europa. Mesmo antes disso, a arte africana, as estátuas dos séculos XII e XIII, por exemplo, são tão sofisticadas e avançadas quanto as gregas. Havia uma indústria siderúrgica já avançada, uma indústria têxtil... Tudo artesanal, como era na Europa aliás. Mas, por outro lado, não tinham marinha, pólvora, fábricas de armas de fogo.
Nesse contexto, o escravo já existia como elemento de troca. Mas o escravo doméstico africano não tinha nada a ver com o que era exportado para o Atlântico. Nas aldeias africanas não se vendiam os próprios cidadãos, os membros da comunidade. No Congo, por exemplo, até o século XVII, todos os escravos que saíam eram de outras regiões. Existia, portanto, um processo de escravidão doméstica, em que na segunda, terceira geração, o escravo era assimilado à família. Quando veio o mercado mundial e a demanda negreira, o processo se degradou de tal forma que se vendiam até os próprios filhos. Nesse ponto, volto a insistir, o Brasil, antes mesmo da Independência, teve uma participação importante no processo de degradação e, sob muitos aspectos, se beneficiou dele.