Cultura

Uma trajetória da brasilização do rock brasileiro de Rita Lee e Raul Seixas nos anos 60 a Sepultura e Os Raimundos

A MPB está morta, viva a MPopB. A geração noventa da música brasileira redescobriu o Brasil, mas só depois que fincou o pé no pop. Em todos os gêneros do rock e da música pop nacionais ouvem-se ecos de brasilidade. O Sepultura, a única banda brasileira que de fato furou o cerco do mercado internacional, grava com índios. Os Raimundos fazem sucesso com hardcore de sotaque e malícia decalcadas do forró. Até bandas como Angra e Viper, que praticamente só existem no circuito heavy metal internacional, estão trocando as letras em inglês pelo português. Num movimento estranho, de cobra mordendo o próprio rabo, as bandas dos anos 90 voltam para casa.

MPopB, o mais preciso rótulo inventado (pela revista Bizz) nos últimos anos para descrever o estado atual das coisas na música brasileira (ou, pelo menos, em boa parte dela) carrega em si um traço pesado de ironia. A referência imediata é MPB, acrossemia de música popular brasileira, criada nos festivais dos anos 60, e utilizada posteriormente como quase um sinônimo de toda a música brasileira. O mais importante, entretanto, é a alteração do adjetivo popular para a palavra pop, alocada aí no sentido adjetivo e substantivo. Para ser popular, parecem dizer os meninos, é preciso ser pop. E para o ser pop poder ser brasileiro, é fundamental marcar uma distância em relação à MPB.

É nessa substituição que reside toda a diferença entre os anos 60 e os 90. Enquanto nos 60 tratava-se de assegurar que, embora maculada por guitarras e ritmos emprestados da música anglo-americana (que já era pop), ainda se tratava de música brasileira, nos anos 90, a palavra pop garante uma certa ascendência internacionalizante (ou globalizada, para usar um termo recorrente), ao mesmo tempo em que a contigüidade com o adjetivo brasileira tem por função reconectá-la com alguma ou várias histórias locais. Outras tentativas e categorização, como RockBrasil ou BRock, ensaiadas pela imprensa, fracassaram pela estreiteza. E pela falta óbvia de humor.

Mais afortunadas que a geração anterior, dos anos 80, que tinha que garantir que, de alguma forma, era possível estar sintonizado com o rock (o que equivalia, de certa forma, a romper com o longo e aparentemente intocável reinado da MPB) e com o pop mesmo estando no Brasil, as bandas do anos 90 já não sofrem de crises de auto-afirmação. Sem precisar reforçar sua identidade com o rock, porque foi dele que vieram em primeiro lugar, elas, podem deixar florescer as raízes.

Nada de novo, mas tudo de novo

Se hoje o rock e o pop nacionais se brasilizam, por assim dizer, e porque a música brasileira vem se relacionando de longa data com a música popular internacional, o que produziu pelo menos dois dos maiores momentos/ movimentos musicais dos últimos quarenta anos. Embora Bossa Nova e Tropicália, elas tiveram sua origem na ousadia de procurar lá fora o que faltava aqui. Antes do rock, foi o jazz. O samba-canção, nos anos 50, se encontrou com o jazz e deu na Bossa Nova. Os músicos olhavam para os morros cariocas almejando o cool do jazz norte-americano. Cariocas de classe média, em sua maioria, queriam a tradição do samba despojada de sua temática mais popular, por um lado, e da dramaticidade da dor-de-cotovelo, por outro. Descobriram na melodia sofisticada do jazz dos anos 50, cada vez mais cerebral e complexo, um caminho para a depuração estética.

Caetano Veloso e Gilberto Gil, por sua vez, fãs da bossa baiana e nova de João Gilberto, criaram a Tropicália com o auxilio luxuoso do oposto de um pandeiro. A Tropicália encontrou sua veia pop nos Mutantes, três meninos paulistanos que sabiam o repertório dos Beatles de cor e salteado, eram mestres dos instrumentos elétricos (guitarra e baixo) e já entendiam a essência do espetáculo pop. A aproximação da música pop não foi apenas musical, no caso do movimento liderado pelos dois baianos. O grupo tropicalista apreendeu do pop também a atitude, que nos anos 60, mesmo num grupo de sucesso de massas e de aceitação quase unânime como os Beatles, era essencialmente provocativa e iconoclasta. Depois da revolução silenciosa da Bossa Nova, o establishment musical do fim dos anos 60 era uma bossa, já não tão nova e diluída por um certo engajamento nacional-popular, cheia de metáforas fáceis e um fascínio CPCiano pelo povo. Contra esse estado de coisas, capaz de defender a pureza da música brasileira com passeata contra a guitarra elétrica, usadas pelos músicos da Jovem Guarda e pelas bandas que acompanhavam os tropicalistas, a resposta era "tomar um sorvete, na lanchonete" (em Baby, Caetano Veloso, 1968). O mais curioso é que Gil, por exemplo, nem tocava guitarra, o grande vilão, o "instrumento do imperialismo ianque": ele só foi aprender o instrumento durante seu exílio em Londres, no início dos anos 70.

Nos anos 60, entretanto, há um músico cuja trajetória coincide, pelo menos em parte, com parte da geração noventa - e não será por acaso que ele foi amplamente cultuado pelas bandas e recuperado pelo mercado nos últimos cinco anos. Jorge, antes Ben, depois Benjor e, agora Ben Jor, não fez uma escolha estética, como a Bossa Nova, menos ainda uma ideológica, como os tropicalistas. Criado no morro carioca, embalado pela avó filha de escravos com cantos africanos e primo de um marinheiro, fornecedor de discos de jazz, blues e rock comprados nas viagens que fazia aos EUA, Ben foi forjado em um cadinho de ritmos. Quando estréia em disco, com Samba Esquema Novo (1964), ele já traz em seu samba personalíssimo a marca do pop e do popular. E é Jorge Ben quem ensina à MPB, mais do que a Jovem Guarda, que os acordes dissonantes podem ser produzidos também pela guitarra. É Ben quem retoma a percussão de linhagem africana.

Tanto a Bossa Nova quanto a Tropicália, entretanto, partem de uma identidade sólida e inequívoca com a música brasileira. O que acontece nos anos 80 e 90 (e alguns casos isolados nos anos 70) é o avesso do avesso.

Let me sing my rock'n'roll

O pai do rock brasileiro, Raul Seixas, ao contrário de Caetano e Gil, não tinha nenhum projeto estético ou ideológico. Ele queria fazer rock'n'roll, exatamente como seus ídolos Elvis Presley, Buddy Holy e Jerry Lee Lewis. Só que em vez de nascer em Memphis, Tennessee, ele nasceu em Salvador, Bahia. Assim como Jorge Ben descobriu a guitarra, Raul Seixas inventou como cantar rock em português. Não como faziam Celly Campelo e os roqueiros dos anos 50. Raul adaptou a métrica, a temática e a forma de cantar rock para o português - e isso em sua forma mais primitiva e básica. Raul, assim como os Mutantes, reivindicava sua filiação à grande fraternidade do rock. Sua relação com a música brasileira era acidental: além da língua, aqui e ali se ouvem ecos tênues de alguma brasilidade. Entretanto, sua atitude radicalmente roqueira influenciou de forma definitiva as gerações que o sucederam.

Raul foi a exceção à regra nos anos 70. A regra, para um público mais sofisticado culturalmente e identificado com a esquerda, era a geração surgida na década anterior, em sua face mais hedonista e poética (ainda Gil e Caetano), ou em sua face mais engajada (Chico). Para a juventude em geral, lixopop norte-americano. Nas frestas é que acontecia algo mais interessante. A cena mais roqueira era capitaneada por Rita Lee, a ex-Mutante, e por seu grupo, o Tutti Frutti, seguida de perto por bandas de extração progressiva, como o Terço. Nomes como Tim Maia e Luiz Melodia gestavam, cada um a seu modo, um pop negro de inspiração funk e bluesística. Na onda regionalista nordestina, Alceu Valença e seu forró eletrificado desafinavam o tom lamentoso do resto. Caricaturas mais (Secos e Molhados) ou menos (Frenéticas) bem feitas buscavam apelo em fenômenos como o glam rock e a discothèque.

Enquanto isso, na periferia de São Paulo, algo de novo e muito, muito estranho estava acontecendo. Por volta de 77/78 eles começaram a surgir. Eram meninos de origem operária e de classe média baixa que compravam instrumentos de segunda mão e formavam suas próprias bandas para tocar uma música suja, pesada e raivosa. Exatamente como havia acontecido na Inglaterra em 75/76, o movimento punk foi um traço de ruptura com absolutamente tudo o que vinha antes dele e, no caso do Brasil, isso incluía a MPB. Sua identificação era única e exclusivamente com as bandas européias e norte-americanas. Uma famosa frase de Clemente, um punk de primeira hora, vocalista dos Inocentes, sintetizava o espírito: "Nós viemos para pisar nas flores do Geraldo Vandré e fazer de Amélia uma mulher qualquer." E, nesse caso, não se mimetizava como nos anos 50, nem se transcriava como os tropicalistas. Como o punk é pura atitude (a música é quase um acidente) e a postura dizia simplesmente "faça você mesmo", pela primeira vez o rock brasileiro estava sintonizado de fato com o cenário internacional.

Na Inglaterra, o momento seguinte ao da explosão punk foi a diversificação estética e a formação de um mercado independente das grandes multinacionais do disco. Algo semelhante se passou no Brasil dos anos 80. Em primeiro lugar, pipocaram bandas de rock pelo território nacional. Com algumas diferenças, a identidade de todas elas se situava em algum lugar da cena pós punk inglesa. O Legião Urbana com a angústia de Joy Division e Smiths, os Paralamas, com o pop reggae do Police, os Titãs, a cada disco com uma ou outra vertente da new wave, o RPM, com o technopop do Duran Duran. A negação de qualquer aproximação com a MPB estava presente, pelo menos no início e com graus variados de consciência, em todas elas. O RPM, a única banda que se atreveu a fazer uma versão de um monstro sagrado da música brasileira, escolheu justamente uma canção em inglês: London, London, de Caetano Veloso. Bandas, por afinidades estéticas e ideológicas, e mercado, porque farejavam aí possibilidades de lucro, estavam empenhadas conjuntamente em afirmar a existência do rock brasileiro. Se o sotaque era um tanto canhestro ou se o mercado descobriu logo depois filões mais lucrativos, como a música sertaneja, pouco importa. O que essa geração criou foi uma categoria distinta de música produzida no Brasil. Roqueiro brasileiro, para citar a tia de todos, Rita Lee, deixou de ter cara de bandido.

MPopB: um balaio de gatos

Se os anos 80 foram pródigos em quantidade, os 90 estão sendo em diversidade. E parece justamente ser isso que a MPopB procura quando se brasiliza: uma dicção diferenciada. Os caminhos são os mais diversos e tortuosos. Um deles, o do Sepultura, passa por um dos gêneros mais fechados de todo o espectro do rock, o heavy metal, e vai dar no Xingu. Vai atrás das raízes lá na ponta, no Brasil indígena, mas chama o seu disco de Roots. Outro, o mangue beat de Chico Science e Mundo Livre, transita por uma regionalização calculada: maracatu, tambor de crioula e samplers; Recife, África e rock. Um terceiro, o do Skank e Cidade Negra, pela Jamaica (e esse, até agora, é o mais bem-sucedido em termos numéricos: juntas, as duas bandas venderam mais de 3 milhões de discos no ano passado).

É claro que o que estamos chamando de brasilização do rock brasileiro tem lá suas diferenças, divergências e efeitos num espectro amplo de bandas com origens e histórias para lá de distintas. Uma banda com a trajetória do Sepultura, que está, digamos, no Olimpo do rock internacional, ganha uma atenção inaudita da mídia. É um caso de exotismo às avessas, pois o que causa espécie, o que vira notícia aqui no Brasil, é o fato de o Sepultura estar num extremo da experiência de internacionalização e, ao mesmo tempo, ir buscar nos tambores africanos e indígenas o mesmo tipo de intensidade que ia antes buscar única e exclusivamente nas guitarras do heavy metal.

No caso do mangue beat (ou mangue bit) de Chico Science e Mundo Livre, estamos em outro terreno. Os mangueboys nunca, como os seus antecessores do rock independente paulista, sonharam que estavam em Londres (ou Seattle, ou Manchester ou Liverpool, tanto faz). O mangue impõe sua presença ("o modo mais fácil de infartar e esvaziar uma cidade como Recife é matar seus rios e aterrar seus estuários", do Manifesto Caranguejos com Cérebro) e seus elementos (a lama, os caranguejos, o lixo) inundam o imaginários dos letristas. O sotaque do maracatu, do forró, do coco, da embolada estão na guitarra e no cavaquinho eletrificado. Os pernambucanos enfiaram suas parabólicas globalizadoras na lama do mangue, seu pop é, a um tempo, impossível sem o rock mas só possível no Brasil. Não por acaso, Gilberto Gil pega carona na afrociberdelia de Chico Science, não por acaso, o primeiro disco do Mundo Livre homenageia Jorge ainda Ben, Samba Esquema Novo vira Samba Esquema Noise.

Se Sepultura e mangue beat podem ser considerados dois extremos estéticos, inúmeras outras bandas deixaram de fechar os ouvidos à música ou ao jeito brasileiro. Os Raimundos ganharam os roqueiros com hardcore arretado encharcado de trocadilhos e referências sexuais decalcadas da picardia das letras de forró. Até o reggae, que, de certa forma, foi uma jamaicanização do rock, já tem um formato próprio no Brasil. Seja via Baixada Fluminense, chegando no Cidade Negra, seja via Belo Horizonte, desaguando no Skank, o ritmo solar do reggae se adaptou muito bem ao romantismo meio safado e ao futebol.

O fato é que a MPopB dessacralizou (até para poder, depois, reverenciar se for o caso) a relação com a música brasileira. Músicos como Marisa Monte, Chico César, a MPB dos anos noventa (que, na verdade, só está morta para efeito retórico) mantém uma relação quase que de filiação com a velha guarda (aquela dos anos 60) e ambiciona sua herança. Até seus flertes coma as formas do pop são da mesma extração que a dos velhos baianos.

Enquanto a geração oitenta do rock brasileiro sofreu olhares enviesados, duvidosos da possibilidade de a música brasileira sintonizar com o pop internacional, a MPopB engendra o pop e o rock impensáveis fora do Brasil.

Bia Abramo é jornalista.