Filmes sobre problemas de mulheres são raros e costumam incomodar.
Filmes sobre problemas de mulheres são raros e costumam incomodar.
Filmes sobre problemas de mulheres são raros e costumam incomodar. Talvez porque quase sempre evidenciam o enorme desequilíbrio de forças nas relações entre os gêneros.
Sabemos que a força de uma corrente é igual à de seu elo mais fraco. Por isso, no fundo de nossos corações sabemos que a qualidade de nossa vida em sociedade é igual à qualidade de vida das mulheres. Se há mulheres sendo estupradas por parentes e conhecidos, esse é o nível de vida que levamos. Nivelado por baixo. É isso que incomoda nos filmes sobre mulheres.
E depois, tem o sangue. Espectadores que tiram de letra a sangueira desatada dos filmes de a de guerra têm dificuldade de suportar a pequena mancha de sangue da menstruação na calcinha da adolescente ou os lençóis encharcados durante abortos e partos. Ai, que duro que é ter consciência tão aguda de que nascemos de mulher, no meio da sangueira.
Essas reflexões vêm a propósito de dois filmes: Os Silêncios do Palácio, da tunisiana Moufida Tlatli, e A Excêntrica Família de Antônia, da feminista holandesa Marleen Gorris, primeira mulher a ganhar um Oscar de direção (na categoria melhor filme estrangeiro).
São diferentes as ocupações femininas no interior do palácio-prisão tunisiano ou na amplitude dos campos cultivados ao redor da aldeia no pós-guerra. No palácio, as mulheres vivem numa roda-viva de fazer vastas comidas, lavar a roupa e o chão, servir a mesa, cantar e dançar para os patrões. São escravas vendidas aos patrões quando crianças. Sofrer caladas estupros, abusos e violências sexuais faz parte da vida ali, para essas que não têm para onde ir.
A grande casa camponesa de Antônia é um palácio de contos de fadas. As mulheres plantam, colhem, dedicam-se ao ensino, à música e à pintura, e podem viver como escolhem: ali se pode ser mãe sem ter um companheiro, abortar ou não, ter uma vida amorosa lésbica, casar-se, juntar-se, ter companheiros eventuais, ter um filho atrás do outro.
Mas nem tudo são flores na história de Antônia. Como diz Marleen, nos contos de fadas acontecem as piores coisas. Nos cenários dos dois filmes há horror e morte. Em ambos há estupro, abuso e violência sexual dentro de casa, por parte de parentes ou conhecidos. E há mortes de mulheres causadas por aborto e parto. A amizade e a solidariedade marcam as ações de proteção das mulheres umas às outras. Diante do estupro e da violência, elas reúnem calma e eficiência para acolher, tratar e confortar a vítima. Em casa de Antônia, há também espaço para a ira.
Esses filmes questionam a nossa indiferença diante da violência e da opressão no cotidiano. O que estamos fazendo que ainda não conseguimos criar uma assistência eficiente ao aborto e ao parto? Como vamos construir no dia-a-dia uma nova humanidade, sem mulheres e crianças oprimidas e sem homens abusadores e estupradores? A reação irada e destrutiva, como já vimos em Thelma e Louise, tem o efeito imediato de impedir a reincidência daquele dado agressor e pode até desencorajar um ou outro, mas não constitui estratégia para a construção de uma sociedade sem estupradores.
A violência dos fortes contra os fracos, se vivida como regra na infância e sem a exemplaridade de uma punição social, pode cristalizar-se como direito natural na vida adulta. Se Os Silêncios do Palácio nos impõe a luta contra toda escravidão, Antônia exemplifica como se pode viver e educar as crianças num ambiente que acolhe positivamente toda a diversidade de interesses, necessidades, desejos, amizades, afetos e amores humanos. E exercitando a expressão dos desejos e necessidades, cultivando o amor-próprio e a franqueza.
Quando um viúvo pede Antônia em casamento, alegando, entre outras coisas, que seus filhos precisam de uma mãe, ela responde: "Mas eu não preciso de seus filhos". Oferece a ele uma opção muito mais rica: sua amizade. Uma relação humana obscura e pouco valorizada e, no entanto, é essa relação especialmente igualitária, a fonte da força solidária das mulheres nos dois filmes.
Maria Otilia Bocchini é professora na ECA da USP e editora de Mulher e Saúde, da SOF.