Economia

O economista italiano trabalha numa reinterpretação da história a partir da noção de sistema mundial

O economista italiano Giovanni Arrighi vem trabalhando numa reinterpretação da história a partir da noção de sistema mundial. Em meados de 1996, Arrighi esteve no Brasil para o lançamento de seu livro O Longo Século XX e conversou sobre sua trajetória com T&D

Como você começou a fazer estudos sobre história econômica?
Eu me formei como economista neoclássico em Milão. Somente depois passei a fazer estudos de economia política. Quando fui à África, em 1963, parei de analisar modelos abstratos, matemáticos, para estudar modelos de desenvolvimento econômico para a África.

Quando retorna à Itália, o que muda em seus planos?
Voltei em 1969 à Itália e comecei então a me interessar pelos problemas do movimento operário, que dominam grande parte dos meus estudos dos anos 70. Em 1978-79 fui para os Estados Unidos e já aí meus estudos se centravam sobre o caráter da crise mundial, integrando as análises na perspectiva dos períodos, para saber como ficavam as economias nacionais no novo marco internacional e também quais as perspectivas da economia-mundo.

Você se considera marxista?
Minhas relações com o marxismo são um pouco estranhas. Por um lado, meus primeiros escritos sobre a África remetiam a Baran, Sweezy, Dobb e Oskar Lange e, neste sentido, eram explicitamente marxistas. Depois disso, quando comecei a escrever sobre a crise nos anos 70, a influência de Marx era muito forte. Na Itália, eu militava num grupo chamado Grupo Gramsci, da esquerda extraparlamentar. Vivíamos uma situação um pouco diferente da dos outros grupos. Os outros se negavam a trabalhar com os sindicatos, enquanto nós estávamos abertos a trabalhar com eles, quando estes tinham disponibilidade para tanto, dado que o Partido Comunista Italiano fechava-se quase que totalmente em relação à esquerda extraparlamentar. Trabalhávamos então com os sindicatos católicos, que não tinham uma ideologia particular. Éramos muito mais influentes nas fábricas do que nas escolas. Não pretendíamos formar um partido político mas, na tradição gramsciana, grupos operários de vanguarda interna à classe. Quando o grupo se dissolveu em 1973, uma parte se fundiu com o grupo de Toni Negri, que havia saído de Pottere Operaio, nascendo dali a Autonomia Operaia.

Foi a partir daí que você passou a se interessar pelos novos movimentos sociais?
Originariamente, éramos um grupo bastante obreirista. Colocávamos o acento no fato de que o desenvolvimento capitalista tendia a reforçar a classe operária. Contrapúnhamo-nos à teoria leninista da vanguarda externa. Achávamos que a classe operária tinha necessidade de elementos intelectuais, mas internos à própria classe. O que estava na base disso era a idéia presente no artigo de Tronti, Marx em Detroit, de que o elemento de força máxima da classe operária não eram a URSS e os países que se haviam tornado comunistas, mas os Estados Unidos, que era em Detroit, nos anos 30, onde se via o máximo de força operária. E víamos a força operária na Fiat como uma continuação daquela linha de desenvolvimento que antes estivera presente em Detroit. Era a idéia de Marx da classe operária como um sujeito para o qual os intelectuais podiam contribuir.

O 68 parisiense e o verão quente de 69 na Itália reforçaram essa ideia?
Sim e não, porque em Paris, quando a classe operária entrou em cena, 68 estava terminando. Na realidade, a classe operária se beneficiou das mobilizações e ao mesmo tempo terminou com 68. E essa tensão também existiu de maneira muito forte na Itália, entre a esquerda extraparlamentar e o PC, com este tendendo a desfrutar o espírito de luta da classe para reforçar-se como partido externo.

Meu interesse era o de captar o que estava mudando no início dos anos 70. Havia um debate na esquerda italiana sobre se havia crise e de que tipo. Ali, comecei a desenvolver minha teoria que, depois, desembocou no livro O Longo Século XX. A idéia básica era que havia uma crise. Por outro lado, diferentemente de Il Manifesto e outros, que teorizavam a repetição da crise dos anos 30, com todos seus desdobramentos: fascismo, imperialismo etc., eu achava que era uma crise diferente, que tinha mais paralelo com a do final do século XIX. Eu dizia que se tratava mais de uma crise que fechava um ciclo do que da abertura de um novo. Comecei então a pensar a crise atual na perspectiva de um período de um século.

Aí você começou a teorizar sobre o surgimento dos novos movimentos sociais no espaço deixado pela crise do movimento operário?
No próprio grupo Gramsci já se teorizava que a crise do capitalismo era também a crise das formas de socialismo que se haviam desenvolvido em relação com um capitalismo que se estava transformando. Portanto, que a crise do capitalismo era também uma crise do comunismo, o que significava uma relação contraditória com o marxismo, na forma pela qual ele se havia desenvolvido até aquele momento.

Os novos movimentos sociais estavam ligados à transformação da própria classe operária. Dentre essas transformações, estava a presença de um componente feminino muito maior. Por outro lado, a internacionalização do capital levava também a dar um peso maior ao componente não-branco dentro da classe operária. Tudo isto introduzia relações contraditórias dentro da própria classe, na sua relação com os movimentos feministas e anti-racistas.

Os novos movimentos sociais seriam expressões dessas transformações no interior da classe operária?
Não exatamente, porque eles se desenvolveram externamente a ela, paralelamente às transformações que apontei. De acordo com a teorização clássica, havia as classes e as divisões internas às classes, intermediadas por um cérebro político que era o partido. Daí decorria que o partido representava a classe e era ele quem abordava as questões juvenil, feminina, nacional. Na verdade, é a própria classe que, dentro de si, tem todos estes elementos e se relaciona diretamente com eles, sem necessidade mais da mediação do partido. Estão emergindo relações mais sociais que políticas. Toda essa enorme quantidade de movimentos dos mais diversos tipos prefiguram um novo movimento de luta e de unidade, que não é mais intermediado pelo partido. É menos claro saber que tipo de partido pode se tomar a expressão desses movimentos.

Já se pode falar hoje de um descenso dos movimentos sociais?
Não. Temos que olhar esses movimentos da forma como víamos o movimento operário tradicionalmente. Quando este estava em decadência em um lado - como em Detroit -, reaparecia em outro - como na Fiat, em Turim, ou na Espanha ou no Brasil ou na Coréia.

Os outros movimentos também estão em processo de reestruturação. O movimento feminista, por exemplo, provavelmente está em crise do ponto de vista da militância, das aparições mais espetaculares, mas do ponto de vista da difusão de elementos fundamentais, ele se expande mais do que nunca. A reunião de Pequim, por exemplo, é expressão de um notável grau de organização internacional, mesmo se institucionalizada. E é preciso notar que os momentos de grandes reestruturações do capital são também de grandes desestruturações sociais.

Emir Sader é membro do Conselho de Redação de Teoria & Debate.