Cultura

Eu fora roubado e não soubera. Um homem tem direito a tudo, mesmo à infelicidade.

Num sábado cinzento, fui ao cinema com minha filha, a mais moça, de 14 anos, no Espaço Cultural Itaú. Era dia da criança, e o espaço regurgitava de crianças e pais e mães e avós, para ver teatro infantil. Nós dois, mais um punhado de bravos, fomos ver O homem que virou suco. Na saída, foi inevitável falarmos um pouco sobre os tempos da ditadura, o embrutecimento, a violência, os sonhos desfeitos.

Tomamos o carro e enveredei pelas ruas lá no fim da Paulista. De repente dei na rua Tutóia. Parei o carro, estacionei, e disse à minha filha:

- Vou te mostrar uma coisa. Sabe o que foi o DOI-Codi, a Oban?

- O quê?

Expliquei. Rememorei. O DOI-Codi era um dos centros de tortura da ditadura de 64, e funcionava numa delegacia de polícia, naquele bairro. Ela ficou muito curiosa. Saímos do carro. Fiquei a andar pela rua, e nada. Na lembrança enevoada, lembrava de uma esquina, uma volta da rua logo adiante, uma padaria perto. Tantos Brasis haviam passado pela minha cabeça, tantos anos. Estava tudo muito confuso. E eu não achava o prédio. A padaria lá estava, com um ar plácido de sábado à tarde. A rua sem movimento, meio deserta, com ar de feriado. E eu perplexo, no lugar onde deveria estar a antiga delegacia, frente a um enorme edifício, com o porteiro já me olhando com ar desconfiado, lá da proteção da sua guarita.

- Demoliram tudo, sem avisar ninguém.

Foi o que pensei. Mais do que pensei, disse à minha filha.

Eu passara os meses anteriores na Europa, quatro deles em Berlim. Não era impossível, neste país desmemoriado, nesta cidade que não consegue parar.

Lembrei-me de uma visita que fizera em Berlim, e comecei a narrar o caso a ela. Berlim é o maior canteiro de obras da Europa, hoje. Coisa de fazer inveja à Prefeitura de São Paulo. Em torno da região onde havia o muro divisor das águas, dos sonhos e dos pesadelos, grandes companhias do capitalismo vencedor reconstroem o futuro. São centenas e centenas de graus que apontam para todos os lados, milhares e milhares de operários que trabalham e trabalham construindo a nova Berlim, sobre um areal imenso, que foi o que restou de tudo. No meio dessa ocupação tão espantosa como deve ter sido a construção das cidades na América, há 500 anos atrás, descobriram-se duas celas intactas da antiga Gestapo. Deu-se a descoberta no lugar onde antes fora o chamado Hotel do Príncipe Alberto, transformado em sede da polícia nazista a partir da tomada do poder por Hitler e seus fanáticos. A partir daí, ou concomitantemente, desvelaram-se os antigos alicerces do edifício, os remanescentes da cozinha, a entrada dos carros, e no lugar criou-se um museu do terror como nenhum parque de diversões poderá jamais possuir. O museu chama-se Topografia do Terror; através de uma série de mapas, fotos e textos, reconstitui-se detalhadamente toda a história daquele lugar sinistro, a partir de quando fora espaço de uma nova urbanização na Berlim antiga, orgulho de sua aristocracia. Depois, os nazis foram ocupando os espaços, até tomarem de assalto o antigo prédio, onde funcionara uma escola de artes. Não longe dali ficava o bunker do Führer, do qual nada mais resta. Vêem-se as fotos dos prisioneiros daquele lugar, dos ilustres e dos anônimos. Refaz-se o caminho dos vários extermínios, dos judeus, dos ciganos, dos comunistas, dos homossexuais, depois dos prisioneiros, no fim da guerra, apenas para que não houvesse testemunhas. É pungente, e impiedoso. Sou em parte descendente de alemães, e pude imaginar um pouco - muito pouco - do terror que deve ser para um alemão visitar o local. E eles visitam. Lembrei-me do Museu Histórico Alemão, na Avenida das Tílias - Unter den Linden. Ali, a parte referente ao nazismo é exemplar, completa, total. Lembrei-me ainda do Túmulo do Soldado Desconhecido, ao lado do Museu Histórico, transformado em mausoléu dedicado às vítimas do nazismo e de todas as ditaduras - inclusive hoje às do regime comunista oriental.

As múltiplas lembranças brotavam de todos os lados: a singela placa dedicada a Rosa Luxemburgo, às margens do rio onde ela fora jogada, provavelmente ainda viva. A outra, a Liebknecht, junto ao lago que vela seu corpo. A praça em Munique, cheia de jovens, dedicada aos estudantes e professores do grupo Rosa Branca, que organizaram uma campanha contra os nazistas em plena guerra.

- Queria que encarássemos assim a nossa história. Um museu, ainda que pequeno, dedicado a todas as nossas ditaduras, à guerra do Paraguai, a Canudos, coisas assim.

Minha filha concordou. Confessei-lhe que me sentia perplexo, esmagado. O lugar - na rua Tutóia - só me trazia más lembranças. Nem a de sair dali era boa. Mas eu me sentia roubado. Alguém havia arrancado um pedaço de mim sem me consultar. Como se um dentista tivesse me anestesiado e arrancado um dente da minha boca sem eu saber, e só me desse conta do resultado depois. Sai vociferando barbaridades contra o descaso para com a história.

Contei o caso para alguns e à Iole, que lá ficava comigo. A perplexidade era geral. Uns acreditavam, outros não. Ninguém ouvira falar de nada. Alguns achavam que era necessária uma investigação em regra, quem fora responsável, quem não fora. Contei o caso para outra das minhas filhas. Sua resposta me surpreendeu:

-Ainda bem que destruíram aquela merda. Existem outras maneiras de preservar a história.

Não era assim que eu me sentia. Tudo bem, podia-se demolir. Mas era necessário algo, um plebiscito, uma invasão, um ato, um gesto. Comecei a padecer de insônia. Eu fora roubado e não soubera. Um homem tem direito a tudo, mesmo à infelicidade.

Tomei uma decisão. Voltei ao local, com máquina fotográfica, disposto a tudo. Até a enfrentar aquele porteiro da guarita, a exigir que o cara da padaria me contasse o que acontecera. Entrei na rua pela outra banda, pela Avenida 23 de Maio. Lá estava ela: a delegacia, o antigo prédio, aquela cor azul desmaiada na parede. Era o velho DOI-Codi de guerra, da guerra. E a delegacia estava em funcionamento, como sempre, gente entrava e saía, carros estacionavam, papéis eram carimbados, delegados, investigadores, escrivães iam à padaria. Tudo igual. Por uma dessas artimanhas do destino e dos neurônios, eu me enganara por uma quadra, e vira a padaria errada. Fiquei pensando no que me impedira de caminhar na rua, naquele outro dia cinzento, com minha filha, a quadra que faltava.

Desfiz o meu engano para quem dera a falsa notícia. Entretanto, um estranho alívio se apossara de mim. O passado lá estava. Aquela coisa, aquele prédio, aquelas celas, continuavam em funcionamento, indiferentes. Tão indiferentes, pelo menos na aparência, quanto o bairro. Como se nada houvesse acontecido, ou acontecesse agora. Hoje sei que houve um filme generoso e corajoso lá feito, um documentário, provando que de fato há outras maneiras de se preservar a história. Aprendi uma lição. Voltei a dormir com a tranqüilidade que é possível ter em São Paulo. Mas não voltei mais ao local para mostrá-lo a qualquer das minhas filhas. Algo rompera em mim, definitivamente, sem que eu saiba, até hoje, o que foi.

Flávio Aguiar é professor na Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e membro do Conselho Editorial de T&D.