Cultura

Almir Chediak conta a história da editora Lumiar e comenta as particularidades da nossa música.

Almir Chediak, carioca, 46 anos, é um tipo de músico diferente, que só passou a existir no Brasil dos anos 80 para cá. Tornou-se conhecido não devido a músicas que tenha composto, mas pelos songbooks que vem lançando pela sua editora, a Lumiar. Já produziu as obras de doze dos nossos melhores criadores, além de cinco volumes dedicados à bossa nova, em livros e CDs.

Almir é portanto, como ele mesmo diz, uma espécie de organizador da música popular brasileira. Passo a passo vai reunindo e colocando à nossa disposição tesouros de obras que estavam dispersas, por editar ou editadas de maneira errada e mesmo relegadas ao esquecimento. A este respeito Tom Jobim escreverá: "Para falar a verdade, considero o trabalho de Almir Chediak uma coisa patriótica, pois tem a ver com a memória brasileira".

Além disso, ao proceder segundo critérios técnicos, Almir vai sistematizando a própria gramática da nossa música popular. Esforço de codificação que pode ser identificado também nos trabalhos teóricos que escreveu. Obras que foram recomendadas para estudantes e profissionais por mestres como Tom Jobim e Hermeto Paschoal, Paulo Moura e Jaques Morelembaum, Egberto Gismonti e Edu Lobo, Paulinho Nogueira e Rafael Rabelo.

É um sinal dos tempos que existam atualmente inúmeros músicos com as características do Chediak no Brasil. Tudo indica que algo de novo, e muito especial, está acontecendo com a nossa cultura musical. O próprio catálogo da Lumiar é uma uma comprovação desse fato: pode-se encontrar nele, além dos songbooks, desde livros de harmonia para música popular até uma obra em seis idiomas que codifica e ensina a tocar os vários instrumentos de uma Escola de Samba. Conversamos com Almir depois do expediente em que dera os últimos retoques numa edição completa da obra de Djavan.

Como você chegou ao projeto dos songbooks?

Eu lecionei durante vinte anos. Desde garoto tive escola de música e cheguei a dar aula para muitos artistas, como Carlos Lyra, Tim Maia, Gal Costa, Elba Ramalho, Marina, Nara Leão, Moraes Moreira, o grande guitarrista Ricardo Silveira, Toni Costa etc. João Gilberto me mandava muito aluno, inclusive antes de me conhecer. Criei métodos e fui tentando resolver problemas. Foi assim que padronizei a cifra no Brasil, talvez um dos poucos países do mundo que tem sistema de cifra padronizado, num livro que editei em 1984, o Dicionário de Acordes Cifrados. Depois veio Harmonia e Improvisação, dois volumes, um livro que escrevi já com a experiência do Dicionário. Curiosamente, são os dois livros que mais vendem, mais do que qualquer songbook. Uma vez, o Carlinhos Lyra falou: "você é um fenômeno, porque num país onde as pessoas não lêem, consegue fazer um livro de harmonia que vende...". Na época, eu tinha lançado o livro e a primeira edição se esgotara em poucos dias. Isso me estimulava porque mostrava o interesse das pessoas.

Tudo isso já acontecia na Lumiar Editora?

Não, a minha decisão de criar a Lumiar foi posterior ao Dicionário de Acordes Cifrados. O Dicionário, que hoje deve estar na sétima edição, foi o único livro meu editado pela Vitale. Eu dei esse livro pronto para a Vitale, com a produção gráfica e tudo. Eles só imprimiram e distribuíram. Aí, comecei a ver que o mais difícil eu tinha feito. Então, criei um pouquinho mais de experiência, de saber quem diagramava, onde fazer composição etc. Eu sabia de alguns colegas que tinham livros já escritos e estavam com muita dificuldade de editar. Na época, o Henrique Cazes estava com um livro de cavaquinho pronto, o Escola Moderna do Cavaquinho. Havia procurado algumas editoras e elas nem se interessaram em editar um livro que, diziam, não ia ter quem lesse. Aí, abri a Lumiar, editei o Harmonia e Improvisação, e depois a Escola Moderna do Cavaquinho. Algumas pessoas me diziam: "você está louco, rapaz, não existem nem mil cavaquinhos em todo o Brasil, você vai entrar pelo cano...". Hoje, o livro do Henrique está na 3º edição, já vendeu mais ou menos 9 mil exemplares.

E a idéia dos songbooks, como surgiu?

Quando eu era estudante de música e um amigo nosso ia na casa de um compositor e conseguia pegar uma harmonia original, era uma festa! Era uma emoção poder tocar Insensatez com a harmonia do Tom. Porque era muito difícil ter acesso a essa informação naquela época. O Tom me disse que havia uns vinte livros tipo songbook dele no mundo e todos com melodia, ritmo e letra errados, com introduções que ele nunca aprovaria, que os editores colocavam por conta própria, sem consultá-lo. Ele só via quando o livro já estava pronto.

No Real Book americano as músicas estão editadas segundo os critérios da linguagem jazzística. Lá estão Dindi, Chega de Saudade, Triste e Desafinado armonizadas, divididas de outra maneira e todas em compasso 4 por 4...

Se fosse só o 4 por 4, até que não seria tão grave. Para se ter uma idéia, em todos esses songbooks que fiz não aproveitei uma só partitura dessas que ficam prontas nas editoras. Todas tiveram que ser escritas. No do Caetano, que foi o primeiro e eu não sabia ainda direito isso, fui nas editoras e peguei todas as músicas. Comecei a conferir e não batia nada, tinha música que era outra composição, não batia nem harmonia, nem ritmo, nem melodia. Não tinha como aproveitar. Por isso, passei a fazer o trabalho junto com o Caetano, de acordo com a idéia, que para mim é fundamental, de fazer com o próprio autor. Agora mesmo acabei de fazer todas as músicas com o Djavan, nota por nota, acorde por acorde, divisão por divisão, exatamente como ele quer. Acabou ficando um livro diferenciado, porque a interpretação do Djavan é a própria música como ela tem que ser. Ele é capaz de cantar dez vezes a mesma divisão rítmica. Geralmente, o compositor faz a música, mas na hora em que vai cantar ou tocar tem a sua interpretação, altera a divisão, um aspecto ou outro. O Djavan não. Com o Tom Jobim também, todas as músicas foram revistas ou escritas por ele. Ele mesmo dizia: "se não tivesse feito esse trabalho, depois que eu morresse nada poderia ser feito".

Estabelecer no papel o que é o repertório da nossa música popular já era uma idéia básica na origem Lumiar?

Sim, além disso, com a Escola Moderna do Cavaquinho comecei a ver que a Lumiar poderia ser um grande instrumento para organizar a música popular brasileira, que é uma das coisas mais importantes que o Brasil criou. Na abertura do CD-ROM da Bossa Nova, eu disse que ela tinha sido a maior invenção do brasileiro desde Cabral, mas estendo isso para a música popular brasileira como um todo, sem dúvida a nossa grande invenção, mundialmente reconhecida. Temos uma infinidade de ritmos, não tem comparação com nenhum país a variedade de células rítmicas, produto de uma criatividade muito grande. Mas tudo isso não está disponível para as pessoas.

Você coloca o seu trabalho no exterior?

Já há um número muito grande de músicos lá fora que têm os nossos songbooks. No ano passado, viajei para a Europa e vi meus livros nas lojas, inclusive na Itália. Numa loja da Ricordi perguntei que outros livros brasileiros eles tinham e disseram que só os songbooks. Os livros têm uma saída média porque são muito caros, quase 50 dólares. E lá um songbook comum custa na faixa de 23 dólares. Aí são os intermediários, os custos de exportação...Nos EuA há uma colocação limitada, talvez 10 ou 15 lojas grandes no país inteiro. Não se pode dizer que seja uma distribuição.

Qual é a programação para os próximos songbooks?

Continuo trabalhando duro nesse projeto. Agora mesmo está saindo o do Djavan. E tem o outro projeto do Tom Jobim, a música para piano, que o Paulinho, filho dele, está fazendo. É uma coisa grande, tem partituras com 12, 15 ou mais páginas, porque vem introdução, intermezzo, final, tudo.

Uma obra mais completa e mais dirigida, em torno de noventa músicas, o que dá uns três livros, que devo estar editando no ano que vem. A música popular brasileira tem compositores para eu fazer songbook até o fim da vida. Estou fazendo um trabalho grande, com as quinhentas músicas do século, uma antologia da MPB. Já estou com mais de duzentas escritas. É interessante esse trabalho porque para fazer um songbook de todos os compositores demoraria duzentos anos. Vamos tomar como exemplo o Bororó, autor da Cor do Pecado, que é um compositor genial, mas não tem uma quantidade de obras suficiente para se fazer um songbook. Mas como tem algumas músicas maravilhosas é importante editá-las. Essa antologia vai incluir esses autores que têm poucas músicas, mas músicas excelentes. Vão ser uns dez volumes, para sair dentro de dois a três anos, de uma vez, como prefiro. Há ainda um projeto de fazer um songbook do choro.

Com a bossa nova, a nossa música se sofisticou, com autores com formação técnica, que trouxeram o elemento da erudição. Como você trata este problema? Você rearmonizou o Noel Rosa com a harmonia da bossa nova?

No Noel, procurei colocar a harmonia que se usava naquela época, das gravações a que tive acesso, que foram as primeiras. Não eram necessariamente as harmonias do Noel, mas dos arranjadores, que ao gravar davam uma roupagem diferente, às vezes até mudavam a ótica do compositor. Eles usavam bastante os acordes invertidos, o som dos baixos conduzindo. Não tinham o recurso dos acordes dissonantes, acordes de quinta aumentada. Mas, na época já se percebe conhecimentos mais avançados de harmonia, por exemplo, em músicos como Garoto e Vadico, este parceiro de Noel. Eles talvez já tivessem estudado as harmonias americanas.

Você evitou, portanto, incorporar as realizações técnicas da bossa nova na música anterior a ela?

Não é assim. Eu resolvi pedir para os compositores e alguns músicos criarem harmonias com essa ótica mais moderna, com essa visão dos acordes, para o songbook do Noel em CD. Três Apitos, com Tom Jobim, é uma aula de harmonia. Valorizou a música de uma maneira fantástica... Ao juntar - e isso é maravilhoso! - a melodia do Noel e a harmonia do Tom, como se eles estivessem fazendo uma parceria, ficou genial. Percebi que a idéia do songbook em disco era de uma importância absoluta, porque da obra de Noel as únicas coisas que tínhamos eram aquelas gravações de 1930 e regravações em que a qualidade do som é muito ruim. Então, vieram 22 músicas do Noel, com novas harmonias e um padrão de FM, para serem tocadas e divulgadas e, juntamente com isso, veio o songbook em livro, com 120 músicas. Uma das conseqüências disso é que depois dos songbooks as iniciativas de gravação daquelas músicas aumentaram consideravelmente. Hoje, é difícil um produtor que não tenha a coleção de songbooks para pesquisar quando vai fazer um disco.

A sua geração estudava de maneira assistemática ou através da metodotogia da música européia. Só agora é que a nossa música está sendo codificada, tendo a sua teoria e a sua metodologia estabelecidas, e você é uma figura de proa dessa realização. Como você conseguiu se formar e chegar a essa condição?

Eu comecei a ver a enorme carência que existia. Eu nunca estudei em escola tradicional. Estudei sempre com professores particulares, desde pequeno. Talvez, se tivesse tido uma formação mais tradicional não teria escrito nenhum desses trabalhos e estivesse falando a mesma coisa que sempre se falou. Vim do popular, a minha necessidade era a de um músico popular. Mas não tinha como estudar música popular com meus professores. Estudei música clássica durante mais de dez anos, toquei os prelúdios todos de Villa-Lobos, Bach, porque queria estudar e não existia outra maneira. Se bem que estudei com Dino 7 Cordas, que me dava umas seqüências de acordes maravilhosas que, há 30 e poucos anos, eram o máximo. Mas ele não dizia o porquê, os nomes, no que consistiam do ponto de vista da harmonia. Isso foi um estudo que comecei a avançar nos meus livros, na análise harmônica funcional. Por que o diminuto entrava ali? Por que era substituído? Mas pelo menos o Dino dava as seqüências e era uma emoção muito grande quando a gente começava a ver que elas serviam em outras músicas. Mas era uma coisa ainda muito intuitiva.

Como você superou este impasse?

Estudei todas as apostilas da Berklee (Berklee College of Music, Boston, EUA), que me abriram os horizontes, porque elas ensinavam o pulo do gato, o porquê daquelas coisas todas que a gente fazia intuitivamente e de ouvido. Aí, achei que tinha que passar aquilo para o maior número possível de pessoas. Tive então a idéia do Dicionário de Acordes, que comecei a escrever em 1980.

Um professor da USP, o Lorenzo Mammi, escreveu na revista do Cebrap que a bossa nova não se presta à improvisação, é diferente do jazz. Neste, a intuição privilegia o acorde, estrutura harmônica capaz de infinitas variações metódicas. Já na bossa nova a harmonia teria uma função diferente, a intuição seria lírica, a melodia não poderia ser variada. As improvisações dessas melodias produziriam sempre uma sensação de inutilidade. O que você acha dessa tese?

Não concordo, até pelo que vejo improvisadores fantásticos fazerem. Não falo do improviso só baseado em escala, mas do improviso melódico. Esse é o grande barato do improviso! Se você se Emita à escala, passa o dedo ali, faz um desenho ou outro, enquanto que no improviso melódico podem entrar as doze notas. Qualquer que seja o acorde, você pode usar as doze notas, desde que saiba fazer, porque tem um tempo forte, um tempo fraco etc. Só que é muito difícil se encontrar esses grandes improvisadores. De fato, a grande novidade da bossa nova não foi a harmonia, que os americanos já sabiam há muito tempo. O que os deixou impressionados foram a beleza e a riqueza melódica das músicas do Tom, do Menescal, do Carlos Lyra, e a batida do João Gilberto, que revolucionou totalmente. Com ela, a música passou a ser outra coisa. Agora, põe um Hermeto Paschoal improvisando em cima de qualquer coisa, veja o que acontece! O Hermeto gravou agora comigo Chovendo na Roseira, é de chorar de emoção de tanta beleza, de tanta criatividade, de tanta sensibilidade. Pode haver algum tipo de dificuldade relacionada com a linguagem, pelo menos em certas músicas. Por exemplo, Chega de Saudade pode ser considerada mais sugestiva para se improvisar do que Sabiá, mas tudo depende da qualidade de quem improvisa. A partir do momento em que passei a trabalhar com Hermeto Paschoal, percebi que ele faz qualquer música. Uma cantiga de roda se transforma em outra coisa, mais bela do que já é.

Há algum tempo, li uma entrevista do Antônio Adolfo na qual ele se referia aos músicos brasileiros que iam estudar em Berklee e depois passariam a fazer aquilo mecanicamente, sem ligar a técnica do jazz às particularidades da nossa música. Existe mesmo esse problema?

O estudo é importante. Agora, depois de aprender, deixe tudo isso e faça aquilo que seu coração mandar, deixe que as coisas fluam por outros canais, não só o da técnica. Porque senão ficam cem músicos tocando igual, improvisando sem criatividade.

Você procurou adaptar as técnicas de Berklee às particularidades da nossa linguagem musical. Fez o Dicionário baseado no violão e tanto neste como em Harmonia e Improvisação fez a análise harmônica de várias obras da nossa música popular...

Exatamente, e tem situações que eu nunca vi em música americana. As harmonias do Tom Jobim, por exemplo, aquelas criações fantásticas...

Os processos de modernização da nossa música, como na bossa nova, se deram pela ação dos criadores. Mas, a partir dos anos 80, apareceram também os sistematizadores, como você. Será que uma coisa puxou a outra, até pela necessidade que alguns músicos sentiam de entender aquelas harmonias complicadas?

Com certeza. O primeiro disco que comprei foi do João Gilberto: O Amor, o Sorriso e a Flor. Eu ficava horas tentando tirar aquelas harmonias. Comprei um gravador que, acelerando-se a rotação, o som ia para uma oitava acima, era fantástico. E tendo a melodia e o baixo, com um pouco de conhecimento de acorde, vai se fazendo a harmonia. Então, eu regulava a velocidade do gravador até ouvir os baixos uma oitava acima, ficando um som próximo do violão, e aí ia tirando baixo por baixo e formando assim a harmonia. A música não ficava igual à do João Gilberto, mas bem parecida. Às vezes tinha um detalhe ou outro que não dava para pegar, mas a função correta estava ali. Isso me permitiu formar um songbook particular, que tinha perto de quinhentas músicas, bolero, samba-canção, tudo, com as cifras e também com as letras, que eu datilografava. Cifra para mim, quando comecei, era a coisa mais louca do mundo e não tinha ninguém que me ensinasse. Consegui um professor, o Newton, antes do Dino, que não sabia me explicar o porquê daquelas dissonâncias todas. O único método que havia era o do Bandeirantes, que depois eu vi que trazia coisas que não batiam, até nomes de acordes errados, mas que, como não havia outro, até ajudou.

Sabe-se que os mestres do passado não tinham essa preocupação de entender, escrever, sistematizar. Por exemplo, Pixinguinha, Jacó do Bandolim não deixaram nada escrito, nenhuma codificação daquilo que faziam. Olhando para o trabalho seu e de outros músicos, pode-se dizer que houve uma mudança de mentalidade?

Eu escrevi meu primeiro método de ensino, que não foi editado, antes do Dicionário de Acordes Cifrados, com cerca de 18 anos de idade. Na época eu falava para o Dino: "estou escrevendo um método e você, com 40 e poucos anos, sabendo o que sabe, nem se preocupa com isso!" E ele dizia que isso era complicado. Enfim, ele era de outra época, outra cabeça, queria mais era tocar. Nem mesmo o ensino técnico de como fazer aquelas coisas no instrumento, esses macetes, eles se preocupavam em passar. Em 1969, levei o Regional do Canhoto a Volta Redonda para fazer um show e, na viagem, batendo papo com o Dino, ele achava que não iria ter mais violonista virtuoso de sete cordas, porque não havia mais pessoas interessadas. Era a época em que o iê, iê, iê e os Beatles tomavam conta da juventude. Depois, veio o Rafael Rabelo, aquele gênio maravilhoso. Mas, havia muito, nesta geração, esse negócio de esconder o jogo, de não mostrar o pulo do gato. Quando era garoto, às vezes ia em reunião onde estava um violonista mais famoso, que tinha uma harmonia e, quando ele sentia que a gente estava olhando muito, virava um pouquinho o violão, fazia o acorde e, na segunda vez, em lugar de fazer assim, já fazia com uma pestana ... E eu pensava: "pó, o cara tá querendo me enrolar..." Eu não tive esse espírito, pelo contrário, quando aprendia alguma coisa, sempre queria passar para o maior número possível de pessoas, para que aquilo ficasse.

A Lumiar dá muita força para esta mentalidade nova, publica livros de teoria, material voltado para o ensino...

Estamos publicando o método de arranjo do Ian Guest, em três volumes, acompanhado por uma fita com mais de cem exemplos gravados ao vivo com os músicos, sem nada de sintetizador. Este é o primeiro método de arranjo que sai no Brasil, e usando uma linguagem brasileira. Os exemplos, quase todos, são com músicas do Toninho Horta, do Tom Jobim, do Marcos Vale e outros. Hoje, já existem escolas ensinando arranjo, mas antes só havia as escolas que ensinavam harmonia tradicional, não aplicada à música popular. O aluno saía de uma escola formado, mas sem condições de trabalhar com música popular, porque estudava uma outra linguagem, como se tivesse que falar uma língua diferente da que conhecia.

Como você vê o ensino de música atualmente?

Evoluiu muito nesses últimos vinte anos, principalmente na área da música popular, na qual vêm se realizando muitos trabalhos para que se possa estudá-la de uma forma séria: arranjo, harmonia, improvisação. Hoje, temos um grande mestre que é o Ian Guest. Tem também o Antônio Adolfo, que está com uma escola. Ele está preparando um livro de arranjo, mas diferente deste do Ian Guest, uma coisa muito prática, de músico que entra no estúdio e vai criando frases, definindo o papel de cada instrumento, tudo aquilo que é muito usado pelos músicos. Tem o pessoal do Clam em São Paulo; a Escola Livre de Música que o Roberto Gnattali, sobrinho do Radamés, dirige em Curitiba; a Uni-Rio, que já usa este sistema desde quando eu estava escrevendo o Dicionário de Acordes Cifrados. Na época, eles recolheram as apostilas e, de acordo com o dicionário, já padronizaram a cifra.

Enfim, começa a existir uma prática nova. É claro, o que predomina ainda é o Conservatório, o ensino tradicional, no qual a música popular é só um ingrediente, estudo de instrumento, coisas assim. É isso que teria que mudar radicalmente no Brasil. Quando falo em prática nova, estou falando de algo que ainda é minoria, vanguarda. Mas, a médio e longo prazos, a tendência é que Tom Jobim, Hermeto Paschoal, Milton Nascimento, enfim, todos os nossos compositores sejam ensinados nas escolas de música, porque esta é a nossa realidade.

O que você acha da proposta de que se coloque a música de novo no currículo das escolas de 2º grau?

Seria ótimo, mas os professores teriam que ser treinados, eles aprendem na escola tradicional, que é a escola reconhecida pelo MEC, e ali só se observa as exigência da música clássica, uma realidade diferente.

Já não haveria massa crítica (conhecimentos, material didático, consciência nos profissionais etc) para se propor uma reforma global no sistema de ensino?

Com certeza! Se eu tivesse meios seria o primeiro a propor. Teria que mudar muita coisa, por exemplo, solfejo relativo para todo mundo. Há um número grande de professores de música que nem está preparado. Eu tenho um amigo que andou dando cursos para professores de solfejo e constatou que a grande maioria não sabia solfejar. Hoje, está se ensinando bastante o solfejo relativo, o método do compositor húngaro Zoltán Kodály, que é o Dó móvel, porque o solfejo absoluto é uma imposição. O nosso ouvido não é absoluto, mas relativo. É claro, as escolas tradicionais ainda trabalham com o solfejo absoluto, mas, nos EUA, talvez 80% das escolas já usem o solfejo relativo. É mais um exemplo de que é preciso mudar!

Hoje, a música brasileira enfrenta uma competição muito mais forte com a de outros países, uma pressão maior das influências internacionais. As realizações técnicas que você e outros vêm sistematizando podem ajudá-la nessa concorrência?

Claro, quando aprende você se torna mais forte. Eu mesmo, pessoalmente, me senti muito mais seguro quando aprendi harmonia. A gente vai se sentindo mais com os pés no chão, com mais força e mais determinação. A bossa nova ficou muito elitizada, era difícil inclusive se ter acesso às harmonias, conhecimento que ficou restrito a poucas pessoas. As coisas agora podem ser estudadas, o material está aí, qualquer um pode usar. Um dia desses, o Tim Maia me falou em tom de brincadeira: "a gente não conseguia saber essas harmonias, não tinha como, e hoje tem os songbooks; e tendo as harmonias corretas, nem precisa ser um grande arranjador, pode entrar num estúdio e junto com os músicos fazer as coisas ..." O Tim Maia não deixa de ter uma certa razão, não é mesmo?

Ozeas Duarte é membro do Conselho Editorial de T&D

Paulo Baía é economista e professor na PUC-SP