Economia

Entrevista com o sociólogo Francisco de Oliveira

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O sociólogo Francisco de Oliveira, pernambucano do Recife, começou a se destacar ainda antes de 1964 quando, junto com Celso Furtado, trabalhava na Sudene. Depois do golpe, Chico passa um tempo no exterior, trabalhando para a Cepal no México e na Guatemala. Retornando ao Brasil em 1968, estabeleceu-se em São Paulo e a partir de 70 se engaja no Cebrap, organismo que naquela época era um centro aglutinador da intelectualidade de oposição ao regime militar. Lá permaneceu até 95, tendo inclusive exercido o cargo de presidente daquela instituição. Deu aula na PUC de 75 a 88, quando ingressa na USP, onde leciona até agora no departamento de sociologia. É autor de Crítica da Razão Dualista, A Economia da Dependência Imperfeita, A Falsificação da Ira, Elegia para uma Re(li)gião e O Elo Perdido. Destaca-se ainda o importante artigo "O surgimento do antivalor" publicado na revista Novos Estudos, do Cebrap.

Sua formulação teórica mais importante é a ideia de que a partir dos anos 30 o capitalismo teria sofrido uma tal avalanche de transformações radicais que fizeram com que você, provocativamente, sugerisse que se tratava de um modo social-democrata de produção. Como seria esse modo de produção partindo da idéia, presente em seus textos, de antivalor?

O uso provocativo de modo de produção não tinha a pretensão de ser um conceito acabado, nem mesmo de ser fiel ao conceito de modo de produção. Era uma tentativa de provocar a discussão. Eu percebia algo de inédito no sistema capitalista, desde os anos, 30, que me levava a fazer a provocação. Toda a literatura marxista preocupou-se muito em estudar as transformações ocorridas do lado do capital. Ficaram muito conhecidas nos anos 60 as tentativas - que na verdade remontam há muito tempo antes - de medir as transformações no capital, de verificar empiricamente a famosa tendência à queda da taxa de lucro, de medir as proporções diferentes de capital constante e variável. Parecia-me que esse caminho era infrutífero porque esquecia uma noção essencial em Marx, a de que o capital é uma relação social. Então, fui ver o outro lado dessa relação social que era a mercadoria como conceito (trabalho). Dirigi meus esforços para o estudo da exploração da força de trabalho e descobri que, através de uma série de processos, havia mudado bastante o estatuto da força de trabalho nos países capitalistas líderes. Mudado no sentido do que chamei de produção de antimercadorias, aquilo que os economistas chamam de salário indireto, composto geralmente de gastos sociais, que vão desde os elementares, como educação e saúde públicas, até os gastos com lazer, diversão, que com põem a cesta de consumo de qualquer trabalhador.

Como resultado de um conjunto de processos políticos, para os quais concorreu de maneira importante a intervenção da classe trabalhadora e dos partidos social-democratas e comunistas, constituiu-se, desde o fim do século passado, mas sobretudo a partir dos anos 30, um quadro daquilo que os liberais chamam de intervenção do Estado na economia, formando essa cesta de produtos, mercadorias e serviços. A isso, que mudou o estatuto da mercadoria força de trabalho, chamei de antivalor. É algo que, na verdade, funciona dentro do sistema capitalista mas negando-o e já anunciando um dos limites da forma mercadoria. Isso evidentemente é um fenômeno histórico e não tentei transformá-lo numa lei de desenvolvimento. Esse fenômeno dependia exatamente da formação dos partidos operários, dos seus sindicatos, das suas instituições e de uma certa reação da burguesia e do próprio sistema capitalista para evitar o seu colapso, adotando, na sua reprodução, uma forma de socialização do excedente que, por realizar-se mediada pelo fundo público (e não pelo mercado), eu chamei de antivalor.

Você sugere que nesse período houve um deslocamento da luta de classes do setor da produção para o setor público, no sentido de uma disputa em torno do destino do orçamento. Nesse sentido, o conceito de classe também sofre um deslocamento. Como você entende a Luta de classes nesse período e em que medida pode-se ainda falar em classes sociais no sentido marxista?

As classes sociais podem ser entendidas tais como Marx as pensou, sob a condição de que se faça uma pesquisa empírica que atualize seu estudo. Quando Marx trabalhou os conceitos à base evidentemente de sua experiência histórica - o que não quer dizer que o que Marx teoriza seja algo que se possa reduzir à pura experiência empírica, senão não teria ganho o estatuto e a força explicativa que ganhou -, a relação entre as classes tinha muito a aparência de um conflito privado. A partir dos anos 30, o conflito extrapola os marcos daquilo que se poderia dizer que ficava restrito ao espaço da esfera burguesa, segundo uma abordagem habermasiana ou mesmo weberiana. O próprio conflito interburguês assumiu proporções tais que acarretaram o seu deslocamento do terreno do privado para o público. Portanto, não é propriamente uma transformação das classes, mas um fenômeno devido ao próprio conflito entre elas. A crise de 30 foi a evidência mais eloqüente desse deslocamento do terreno do privado para o público. Naquele momento, a esfera do privado revelou-se insuficiente para de alguma maneira processar o conflito na sociedade burguesa.

É por isso que, de certa forma, as classes aparecem como se não tivessem recortes, como - o que a sociologia americana disse de forma fácil e banal - se o operariado americano fosse classe média, medido pelos índices de consumo. Na verdade, é possível continuar a pensar que o conceito de classe é válido, à condição de fazer esse novo percurso que tentei fazer.

Como a tecnologia entra nesse esquema? A ciência como fator de produção tem algum estatuto?

Tem um estatuto, mas não autônomo. Na verdade, beneficiei-me de uma reflexão do Luís Gonzaga Belluzo. Na sua tese, ele fez uma reflexão sobre a autonomização do capital constante. O que quer dizer isso? Segundo uma posição antiga e forte em Marx, a burguesia, tentando superar continuamente os limites da exploração da força de trabalho, usa a ciência e tecnologia para baratear o custo da sua reprodução. Contudo, a partir dos anos 30, tomando-se em conta os países líderes do sistema, onde havia uma relativa homogeneização da previdência social, de seguro social, de outros antivalores em geral, o que se viu foi que esse processo, com o fundo público, havia ganho outra forma, tinha passado a ser relativamente indiferenciado no sentido de que não era mais o custo da força de trabalho que provocava a reação dialética da ciência e tecnologia a serviço do capital. Isso deu lugar àquilo que Belluzo chama de autonomização do capital constante.

Essa mediação seriam, por exemplo, os gastos militares com tecnologia, os gastos públicos com as universidades, em pesquisa e desenvolvimento etc.?

Exato. Se pesquisarmos, não encontraremos uma relação direta disso com o custo da força de trabalho. Ela se perde, mas não desaparece. O orçamento de uma grande universidade não está ligado diretamente a salário nenhum. Provém do conjunto da sociedade, do imposto que cada um paga. Portanto, a relação passa a ser mediada exatamente pelos fundos públicos e isso é uma enorme apropriação. É nesse sentido que eu falo de uma espécie de autonomização. Por exemplo, os Estados Unidos jogam força em pesquisa bélica e isso tem impacto na produção de bens de consumo mas não pode ser ligado diretamente ao custo de reprodução da força de trabalho dos setores industriais. Sem essa mediação fica difícil entender.

Que papel você atribui à emergência do sistema soviético na configuração desse modo de produção social-democrata?

Na própria social-democracia há uma enorme influência soviética. Há todo um grupo de planejadores social-democratas que tenta apreender dos soviéticos a possibilidade de fazer a passagem para o socialismo através de uma desmercantilização. É uma discussão bastante interessante. A social-democracia aprendeu muito com a experiência soviética.

Mas as instituições capitalistas se remodelaram mais em função de constrangimentos internos ou devido à ameaça externa que representava a União Soviética?

Fazendo um balanço, se essas coisas pudessem ser medidas em proporções, eu daria 60% de peso às condições internas dos países que hoje chamamos de desenvolvidos. Acredito muito mais num tipo de interpretação marxista que concede muito valor ao movimento das lutas de classes. Até porque sabemos historicamente que antecipações desse processo existiram na Alemanha e na Itália até como tentativa da burguesia de disputar a posse dos corações e das mentes da nova classe social. Tratando dessa forma esquemática, os outros 40% são devidos à revolução soviética, à medida em que havia uma forte sedução das massas trabalhadoras pela URSS. A Grande Depressão, que desempregou 30% da força de trabalho, é outro fator que mobilizava e atualizava a ameaça soviética no interior dos países ocidentais. Antes mesmo de Keynes tentar teorizar qualquer coisa, a maioria dos Países estava tateando e buscando formas de sair do nó, por intermédio do que depois veio a ser sistematizado como medidas de bem-estar social. Em alguns casos, de forma já bastante sistemática - como foi a Suécia nos anos 20 - e em outros já premidos pelas circunstâncias, como foi o caso da França já na grande crise, correndo para descontar o prejuízo. A Revolução Russa estava presente através das grandes massas desempregadas. Não acho, como muitas interpretações, que foram apenas concessões das classes dominantes. Estou mais numa linha de que o curso da luta de classes já anunciava um desenvolvimento nesse sentido. E, sobretudo porque - evidentemente sem nenhum eurocentrismo - isso surgiu nas relações de luta de classes mais avançadas, e não no tipo de luta de classes que se travava em relações ainda coloniais. Isto desagrada certos setores da esquerda que gostariam de pensar que toda revolução, toda transformação nos países capitalistas centrais foram feitas a partir da periferia.

Em que medida a débâcle soviética torna inviável, do ponto de vista político, a apresentação de propostas de transformação mais radical da sociedade?

Durante boa parte da minha juventude e mesmo da maturidade, eu vivi a experiência soviética - como quase todo mundo da esquerda -, como uma grande referência. Nunca fui membro do Partido Comunista, sempre tive bastante reservas a respeito da sua forma de militância mas sempre os encarei como companheiros de luta, principalmente na minha cidade, Recife, onde o partido tinha notável presença nas classes populares. Só vim a tomar conhecimento dos problemas mais graves da experiência soviética a partir da invasão da Tchecoslováquia, em 68. Nem mesmo quando do aparecimento do relatório Krutchev, ainda em 56, a URSS era posta em dúvida. Ninguém sabia muito bem o que era aquilo e a economia soviética parecia que ainda funcionava bem, ia ganhando a competição com os EUA e nós não sabíamos dos horrores dos campos de concentração. A partir da invasão da Tchecoslováquia minhas reservas em relação à União Soviética aumentaram muito, a ponto de eu não mais apoiá-la incondicionalmente. Quanto a experiências como a de Cuba, por exemplo, sempre fui francamente favorável, ainda que deteste a forma ditatorial que lá se exerce. A débâcle soviética é um golpe muito forte na moral socialista e é uma derrota de profundas conseqüências que continuará tendo repercussões por muitas décadas. É um golpe que deve ser sentido também do ponto de vista das milhares de vidas que se dedicaram a construir o socialismo e, portanto, exige de cada um de nós socialistas, marxistas ou não, a mais profunda condenação e a mais rigorosa reflexão a respeito de seu significado.

Essa profunda derrota moral colocou a esquerda em geral muito na defensiva e retirou nossa principal arma de combate, que era mostrar como se podia construir um mundo melhor. É nesse contexto que reafirmo minha posição socialista e o uso privilegiado que é possível fazer do marxismo, sem profissão de fé, sem nenhuma idolatria.

Você diria que a crise do Estado de bem-estar social tem mais a ver com problemas de gerenciamento interno?

As condições em que o sistema capitalista opera ainda não mudaram essencialmente do ponto de vista do chamado Estado do bem-estar. Se quiséssemos usar um termo, diria que o paradigma de sociabilidade presente no sistema capitalista ainda é o da segurança representada pelo Estado do bem-estar. O sistema tem uma espécie de sede de segurança que evidentemente o converte em algo que mostra o limite da forma mercadoria. Ele não consegue sustentar-se sem que instituições tentem segurar o risco. Apesar do que parece, o mundo da livre concorrência, aberta, não-regulamentada, não é nada disso. No mundo real, você pessoalmente segura a sua casa, a vida, a saúde, a viagem. Isso se repete no mundo da mercadoria. Portanto, não se saiu ainda dos marcos em que o capitalismo continua a se reproduzir dentro do paradigma do Estado do bem-estar e os problemas que ele tem não são de gerenciamento, nem devido ao desmoronamento da União Soviética e dos demais países do chamado socialismo real. Seus problemas advêm do limite da forma mercadoria, porque esse sistema desativa forças produtivas numa escala sem precedentes ao ter que passar pelo crivo do valor, e esse impõe limites, que se traduzem no desemprego e em exclusão. Esses são limites da forma mercadoria que o Estado do bem-estar não conseguiu superar. Parte do seu ocaso é devido também a uma transformação ocorrida nos sujeitos que o construíram. É muito evidente que mudou a constituição das classes sociais. Se antes havíamos assistido a um deslocamento das classes, eu diria de privadas para classes sociais públicas, no sentido da sua reprodução, hoje está havendo fortes transformações. Por que se surpreender com o fato da taxa de sindicalização cair nos países mais desenvolvidos? Exatamente porque o Estado do bem-estar universalizou-se, aquilo que dependia da sua filiação ao sindicato, de um certo partido que chegava ao poder, não depende mais disso. Qual o incentivo para ser sindicalizado hoje? Há uma erosão pela base naqueles sujeitos que construíram o próprio Estado do bem-estar e daí vem parte do seu ocaso. Mas, em grandes linhas, eu diria que esse ocaso é mais aparência do que realidade.

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No que diz respeito à disputa pelos fundos públicos, a classe trabalhadora está perdendo terreno em relação aos direitos que havia assegurado antes?

Não. Essa derrota não é tão grande como a gente pensa. Exatamente pelo fato de que essas coisas se universalizaram. O que está havendo de fato - e daí a erosão das bases sociais do Estado do bem-estar - é a desregulamentação do trabalho, a destituição de direitos sociais e trabalhistas. Aí sim vai afetar essas bases sociais.

O que você está dizendo é que, do ponto de vista dos fundos públicos, os direitos de saúde, educação etc. permanecem, mas no plano privado da produção ali sim estão sendo destruídas as bases sociais do Estado de bem-estar?

Sim. Mas, evidentemente, essa destruição no plano das relações privadas vai atingir o público...

Ainda não atingiu?

Ainda não. Os gastos sociais continuam até a crescer como parte do PIB nos principais países desenvolvidos e a direita e o capital tentam dar solução a isto através do corte desses gastos no plano da produção, como está sendo demonstrado nos países mais desenvolvidos.

Você resumiria sua reflexão na afirmação de que, por enquanto, está se perdendo mais salário direto do que salário indireto?

Por enquanto é isso. Mas uma coisa pode implicar a outra e, sobretudo, ao se retirar a base direta se solapa não somente o indireto como também direitos de cidadania. Há um problema mais sério e mais importante, teórica e praticamente, que é a destruição da esfera pública.

Como se dá essa destruição?

Poderíamos reconstituir uma musiquinha do Centro Popular de Cultura da UNE, nos anos 50, que contava o que era um brasileiro. Ela dizia que o sujeito acordava de manhã, escovava a boca com Colgate, fazia a barba com Gilette e por aí ia. Era a crítica básica do CPC ao imperialismo.

Se analisarmos hoje o cotidiano de um executivo da grande burguesia em São Paulo, por exemplo, que noção de público pode ter essa pessoa? Fazendo uma paródia com o brasileiro da musiquinha do CPC, o que está na experiência subjetiva radical da alta burguesia e da alta classe média de hoje é uma intensa privatização. Ele não toma nenhum transporte público, ele não tem contato com absolutamente nenhuma pessoa do povo. Sai de manhã, toma seu carro, que é seguido na frente e atrás por dois carros de segurança. Nos casos mais exagerados, o sujeito já viaja de helicóptero. Não tem nenhum contato por tanto com nada que seja comum, para não falar de público. Chega na sua empresa, mete-se num desses edifícios chamados inteligentes, onde nem existe ascensorista. Usa um crachá eletrônico, vai para o seu escritório e só fala com instrumentos eletrônicos. No máximo, ainda existe a secretária, que já está virando uma pessoa em desuso! Esse cidadão sai para almoçar geralmente num restaurante privé, freqüentado por gente igual a ele, quando não é no próprio restaurante da empresa. Termina o dia, se é um sujeito estilo Antônio Ermírio de Moraes, meio caipira e mão-de-vaca, vai para casa. Se não, tem obrigações sociais nas quais se encontra sempre com gente semelhante. Quando se trata de um tipo mais à última fase do Olacyr de Moraes, vai gastar o dinheiro nos grandes salões da alta burguesia. De público e comum com o resto da sociedade, esse cidadão não tem nenhuma experiência. Esse é o sentido radical da privatização. Esta é a ameaça mais radical à esfera pública. Daí entender, evidentemente discordando, essa fúria privatizante. Essa privatização não é só ideológica, é uma experiência radical de vida. O fato de o transporte ser ruim em nada comove um empresário desses. Antes, eles tinham que contracenar diariamente com experiências de subjetividade porque os operários iam reivindicar diretamente. Hoje, ele vive num mundo virtual, privado.

Do ponto de vista das relações internacionais, que tipo de transformações você vê?

Do ponto de, vista das relações intercapitalistas, não vejo nada de bom. De tanto desregulamentar, os países capitalistas vão se enfrentar brevemente com uma competição mortal e vão se preparar para isso. A China já acabou com a indústria de brinquedos no mundo inteiro, está acabando com a têxtil e acabará com a indústria eletrônica de pequenos aparelhos. Quando somar-se a isso a Rússia - com a mão-de-obra barata que tem - e o Brasil e a Índia se juntarem, chegará a hora da barbárie no comércio internacional. Eles desregulamentaram e os desregulamentados vão cobrar a fatura!

Os países desenvolvidos estão tentando se cercar das maiores garantias e constituir nas nações subdesenvolvidas - para usar um termo forte - uma espécie de sátrapas que governem em nome deles. Mas isso não vai resolver por muito tempo.

Dentro dessa lógica, não seriai irracional por parte dos países avançados estar praticando essa desregulamentação, uma vez que eles próprios estariam promovendo algo que brevemente irá prejudicá-los?

A China produz, por exemplo, gravadores pequenos, mas é investimento de uma firma inglesa ou sob licença de uma firma de Taiwan ou do Japão. É difícil no entanto pensar que a China vai ser eternamente uma província de produtos de exportação. Ela está fazendo isso para ganhar dinheiro.

Então, quem está forçando a desregulamentação é o capital privado e quem vai pagar a conta é a população?

Sim. A população dos dois lados pagará a conta: a dos países desregulamentados, que em parte já está pagando, e a dos países mais ricos que vão manter uma taxa de exclusão que tende a ser crescente. Como a Europa não conseguiu ainda sua unificação monetária, os Estados Unidos continuam fazendo do dólar a moeda hegemônica. Quando a Europa conseguir essa união monetária, em 1999, isso mudará, porque os Estados Unidos estão com 5% de desemprego - o que é um milagre quando a França tem 10% e a Espanha 24% - mas fazem isso porque têm uma grande margem de manobra por terem a moeda de emissão mundial.

Você não credita à desregulamentação do mercado de trabalho americano essa taxa de desemprego baixa?

Tem mais a ver com a hegemonia monetária do que com a desregulamentação, porque o mercado americano é desregulamentado há muito tempo do ponto de vista da importação. Os americanos pagam o preço de uma balança comercial deficitária que jamais poderão reverter, de uma dívida externa que jamais poderão pagar e que eles manejam.

As possibilidades de desenvolvimento do capitalismo no Brasil são grandes dentro deste contexto?

São grandes sim. O Brasil é e será um dos lugares de investimento privilegiado, não há nenhuma dúvida. O Brasil será desregulamentado evidentemente se as forças sociais que se opõem não conseguirem deter essa onda, e eu não acredito que consigam, pelo menos a curto prazo. Há hoje um bloco no poder que tem virtualidade hegemônica. Reverter esse processo é algo que vai demorar muito mais tempo.

O governo Fernando Henrique está explorando convenientemente as brechas no cenário internacional, de maneira a proporcionar a melhor taxa de desenvolvimento das forças produtivas internas?

Não. Acho que ele está aceitando a desregulamentação. Haveria outras alternativas de explorar de forma mais integrada, que produziriam inclusive taxas de crescimento muito mais altas. Ele as explora porcamente. Isso vai produzir, entretanto, em muitas regiões, um desenvolvimento grande e em outras produzirá desintegração. Todo esforço de cinqüenta anos vai começar a dar para trás. Esse governo tem uma estratégia que é de fazer do Brasil a cabeça de uma integração latino-americana, da qual evidentemente o país trata de tirar o melhor partido, mas é uma integração completamente desregulamentada e que, no interior dos países, não integra populações, não amplia o mercado interno. Há alternativas mais consistentes que dariam até melhores possibilidades de competir internacionalmente. Mas essas são opções de classe, político-ideológicas e eu não estou no lugar dele para propor.

Mas os economistas do governo afirmam que a estabilização monetária em si incluiu no mercado um contingente de consumidores que nenhuma política social strictu sensu conseguiria. Portanto, que ela traz conseqüências positivas do ponto de vista social...

Isso é ficção. Na verdade, o que houve com a estabilização é o que os economistas chamam de queda do denominado imposto inflacionário. A inflação retirava dos pobres porque eles não tinham mecanismos de defesa contra ela, não tinham como aplicar financeiramente ou no mercado de capitais. Com a estabilização, o imposto inflacionário deixa de funcionar e com isso os pobres passam a consumir. Isso ocorre em todos os momentos em que o fenômeno da imediata monetização é intensa como aconteceu depois do Plano Cruzado. Mas seu efeito já terminou. Quero ver daqui para frente!

A tendência é de queda do salário real a partir de agora?

A tendência do salário real é de cair ou crescer numa taxa muito pequena. Num país como este, com as enormes desigualdades, a taxa de crescimento que a Salomon Brothers está projetando - que é uma corretora e um banco de investimentos que segue de perto a economia brasileira porque tem altos interesses aqui - é de 2,2% para o ano de 97. Não é nada promissor. Um país como este tem de crescer, no mínimo, 5% a 6% ao ano com melhor distribuição de renda.

O que seria uma política de integração que contemplasse as suas preocupações?

É difícil precisar, mas creio no entanto que vigorosas políticas sociais ainda são a melhor forma de distribuição de renda. Evidentemente, se combinadas com uma boa taxa de crescimento econômico de 5% a 6% ao ano. Nós sabemos que a melhor educação não depende do mercado. Portanto, uma política social vigorosa é insubstituível como elemento de distribuição de renda, mesmo quando o salário real está crescendo. O mercado só realiza muito parcialmente a melhoria na distribuição de renda. Nos anos gloriosos do milagre, quando se pensava que só o crescimento do salário real era suficiente para redistribuir renda, a classe média abandonou o ensino público. Quando os salários da classe média se deterioraram, ela quis voltar para a escola pública, mas esta estava liquidada. Por isso, eu advogaria uma boa taxa de crescimento e vigorosas políticas sociais porque é por aí que passam educação, saúde, lazer e cultura de qualidade.

Falando nos seus próprios termos, o salário direto está mais sujeito ao ciclo dos negócios enquanto o salário indireto tem uma estabilidade que se sustenta no tempo e que serve de garantia inclusive para a cidadania?

Exatamente.

Qual o papel da esquerda hoje no Brasil e no mundo? Qual o papel do intelectual, do militante, dentro desse cenário?

Eu, sou um PT light. Acho que o PT não tem do que se envergonhar nesse curto período de existência, em que contribuiu enormemente para a democratização da vida brasileira. De imediato, a tarefa do PT é lutar bravamente para que a hegemonia de FHC - que é virtual - não se consolide, isto é, lutar para que este credo não se transforme em senso comum, o que e o mais perigoso. Tentar construir uma alternativa significa combater em todas as frentes possíveis essa virtualidade hegemônica muito forte que está se desenhando no Brasil, Evidentemente, enfrentar o governo é todas as formações adversas em todas as frentes possíveis - prefeituras, eleições, sindicatos - é um trabalho que não é de curto prazo. O que o PT não deve nunca tentar fazer é parecer bonzinho. Não no sentido de uma velha discussão bizantina que houve no PT, se nós vamos administrar o capitalismo ou não. Para mu dar o capitalismo é preciso primeiro saber administrá-lo. Não é essa a questão. O PT não deve ser bonzinho no sentido de tentar melhorar esse programa aqui, aquele programa acolá. Essa foi a tônica de certos discursos nas últimas eleições municipais. O que está aí é muito forte e o PT se assustou. Mas ele tem que continuar a dizer a esse país que ele precisa de reformas vigorosas, profundas. Não como a vanguarda iluminada que sabe mais do que o povo, mas como aquele que é na essência diferente do senso comum. O partido deve continuar essa batalha, a curto e, médio prazo, para criar a possibilidade de que a hegemonia virtual que se desenha não se instaure. O projeto hegemônico que temos que combater é talvez o mais consistente que os grupos, classes e blocos dominantes no Brasil jamais tiveram. E esse é um desafio que não pode ser subestimado.

Fernando Haddad é membro do Conselho de Redação de T&D.

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