Entrevista com o sociólogo Francisco de Oliveira
Entrevista com o sociólogo Francisco de Oliveira
O sociólogo Francisco de Oliveira, pernambucano do Recife, começou a se destacar ainda antes de 1964 quando, junto com Celso Furtado, trabalhava na Sudene. Depois do golpe, Chico passa um tempo no exterior, trabalhando para a Cepal no México e na Guatemala. Retornando ao Brasil em 1968, estabeleceu-se em São Paulo e a partir de 70 se engaja no Cebrap, organismo que naquela época era um centro aglutinador da intelectualidade de oposição ao regime militar. Lá permaneceu até 95, tendo inclusive exercido o cargo de presidente daquela instituição. Deu aula na PUC de 75 a 88, quando ingressa na USP, onde leciona até agora no departamento de sociologia. É autor de Crítica da Razão Dualista, A Economia da Dependência Imperfeita, A Falsificação da Ira, Elegia para uma Re(li)gião e O Elo Perdido. Destaca-se ainda o importante artigo "O surgimento do antivalor" publicado na revista Novos Estudos, do Cebrap.
Sua formulação teórica mais importante é a ideia de que a partir dos anos 30 o capitalismo teria sofrido uma tal avalanche de transformações radicais que fizeram com que você, provocativamente, sugerisse que se tratava de um modo social-democrata de produção. Como seria esse modo de produção partindo da idéia, presente em seus textos, de antivalor?
O uso provocativo de modo de produção não tinha a pretensão de ser um conceito acabado, nem mesmo de ser fiel ao conceito de modo de produção. Era uma tentativa de provocar a discussão. Eu percebia algo de inédito no sistema capitalista, desde os anos, 30, que me levava a fazer a provocação. Toda a literatura marxista preocupou-se muito em estudar as transformações ocorridas do lado do capital. Ficaram muito conhecidas nos anos 60 as tentativas - que na verdade remontam há muito tempo antes - de medir as transformações no capital, de verificar empiricamente a famosa tendência à queda da taxa de lucro, de medir as proporções diferentes de capital constante e variável. Parecia-me que esse caminho era infrutífero porque esquecia uma noção essencial em Marx, a de que o capital é uma relação social. Então, fui ver o outro lado dessa relação social que era a mercadoria como conceito (trabalho). Dirigi meus esforços para o estudo da exploração da força de trabalho e descobri que, através de uma série de processos, havia mudado bastante o estatuto da força de trabalho nos países capitalistas líderes. Mudado no sentido do que chamei de produção de antimercadorias, aquilo que os economistas chamam de salário indireto, composto geralmente de gastos sociais, que vão desde os elementares, como educação e saúde públicas, até os gastos com lazer, diversão, que com põem a cesta de consumo de qualquer trabalhador.
Como resultado de um conjunto de processos políticos, para os quais concorreu de maneira importante a intervenção da classe trabalhadora e dos partidos social-democratas e comunistas, constituiu-se, desde o fim do século passado, mas sobretudo a partir dos anos 30, um quadro daquilo que os liberais chamam de intervenção do Estado na economia, formando essa cesta de produtos, mercadorias e serviços. A isso, que mudou o estatuto da mercadoria força de trabalho, chamei de antivalor. É algo que, na verdade, funciona dentro do sistema capitalista mas negando-o e já anunciando um dos limites da forma mercadoria. Isso evidentemente é um fenômeno histórico e não tentei transformá-lo numa lei de desenvolvimento. Esse fenômeno dependia exatamente da formação dos partidos operários, dos seus sindicatos, das suas instituições e de uma certa reação da burguesia e do próprio sistema capitalista para evitar o seu colapso, adotando, na sua reprodução, uma forma de socialização do excedente que, por realizar-se mediada pelo fundo público (e não pelo mercado), eu chamei de antivalor.
Você sugere que nesse período houve um deslocamento da luta de classes do setor da produção para o setor público, no sentido de uma disputa em torno do destino do orçamento. Nesse sentido, o conceito de classe também sofre um deslocamento. Como você entende a Luta de classes nesse período e em que medida pode-se ainda falar em classes sociais no sentido marxista?
As classes sociais podem ser entendidas tais como Marx as pensou, sob a condição de que se faça uma pesquisa empírica que atualize seu estudo. Quando Marx trabalhou os conceitos à base evidentemente de sua experiência histórica - o que não quer dizer que o que Marx teoriza seja algo que se possa reduzir à pura experiência empírica, senão não teria ganho o estatuto e a força explicativa que ganhou -, a relação entre as classes tinha muito a aparência de um conflito privado. A partir dos anos 30, o conflito extrapola os marcos daquilo que se poderia dizer que ficava restrito ao espaço da esfera burguesa, segundo uma abordagem habermasiana ou mesmo weberiana. O próprio conflito interburguês assumiu proporções tais que acarretaram o seu deslocamento do terreno do privado para o público. Portanto, não é propriamente uma transformação das classes, mas um fenômeno devido ao próprio conflito entre elas. A crise de 30 foi a evidência mais eloqüente desse deslocamento do terreno do privado para o público. Naquele momento, a esfera do privado revelou-se insuficiente para de alguma maneira processar o conflito na sociedade burguesa.
É por isso que, de certa forma, as classes aparecem como se não tivessem recortes, como - o que a sociologia americana disse de forma fácil e banal - se o operariado americano fosse classe média, medido pelos índices de consumo. Na verdade, é possível continuar a pensar que o conceito de classe é válido, à condição de fazer esse novo percurso que tentei fazer.
Como a tecnologia entra nesse esquema? A ciência como fator de produção tem algum estatuto?
Tem um estatuto, mas não autônomo. Na verdade, beneficiei-me de uma reflexão do Luís Gonzaga Belluzo. Na sua tese, ele fez uma reflexão sobre a autonomização do capital constante. O que quer dizer isso? Segundo uma posição antiga e forte em Marx, a burguesia, tentando superar continuamente os limites da exploração da força de trabalho, usa a ciência e tecnologia para baratear o custo da sua reprodução. Contudo, a partir dos anos 30, tomando-se em conta os países líderes do sistema, onde havia uma relativa homogeneização da previdência social, de seguro social, de outros antivalores em geral, o que se viu foi que esse processo, com o fundo público, havia ganho outra forma, tinha passado a ser relativamente indiferenciado no sentido de que não era mais o custo da força de trabalho que provocava a reação dialética da ciência e tecnologia a serviço do capital. Isso deu lugar àquilo que Belluzo chama de autonomização do capital constante.
Essa mediação seriam, por exemplo, os gastos militares com tecnologia, os gastos públicos com as universidades, em pesquisa e desenvolvimento etc.?
Exato. Se pesquisarmos, não encontraremos uma relação direta disso com o custo da força de trabalho. Ela se perde, mas não desaparece. O orçamento de uma grande universidade não está ligado diretamente a salário nenhum. Provém do conjunto da sociedade, do imposto que cada um paga. Portanto, a relação passa a ser mediada exatamente pelos fundos públicos e isso é uma enorme apropriação. É nesse sentido que eu falo de uma espécie de autonomização. Por exemplo, os Estados Unidos jogam força em pesquisa bélica e isso tem impacto na produção de bens de consumo mas não pode ser ligado diretamente ao custo de reprodução da força de trabalho dos setores industriais. Sem essa mediação fica difícil entender.
Que papel você atribui à emergência do sistema soviético na configuração desse modo de produção social-democrata?
Na própria social-democracia há uma enorme influência soviética. Há todo um grupo de planejadores social-democratas que tenta apreender dos soviéticos a possibilidade de fazer a passagem para o socialismo através de uma desmercantilização. É uma discussão bastante interessante. A social-democracia aprendeu muito com a experiência soviética.
Mas as instituições capitalistas se remodelaram mais em função de constrangimentos internos ou devido à ameaça externa que representava a União Soviética?
Fazendo um balanço, se essas coisas pudessem ser medidas em proporções, eu daria 60% de peso às condições internas dos países que hoje chamamos de desenvolvidos. Acredito muito mais num tipo de interpretação marxista que concede muito valor ao movimento das lutas de classes. Até porque sabemos historicamente que antecipações desse processo existiram na Alemanha e na Itália até como tentativa da burguesia de disputar a posse dos corações e das mentes da nova classe social. Tratando dessa forma esquemática, os outros 40% são devidos à revolução soviética, à medida em que havia uma forte sedução das massas trabalhadoras pela URSS. A Grande Depressão, que desempregou 30% da força de trabalho, é outro fator que mobilizava e atualizava a ameaça soviética no interior dos países ocidentais. Antes mesmo de Keynes tentar teorizar qualquer coisa, a maioria dos Países estava tateando e buscando formas de sair do nó, por intermédio do que depois veio a ser sistematizado como medidas de bem-estar social. Em alguns casos, de forma já bastante sistemática - como foi a Suécia nos anos 20 - e em outros já premidos pelas circunstâncias, como foi o caso da França já na grande crise, correndo para descontar o prejuízo. A Revolução Russa estava presente através das grandes massas desempregadas. Não acho, como muitas interpretações, que foram apenas concessões das classes dominantes. Estou mais numa linha de que o curso da luta de classes já anunciava um desenvolvimento nesse sentido. E, sobretudo porque - evidentemente sem nenhum eurocentrismo - isso surgiu nas relações de luta de classes mais avançadas, e não no tipo de luta de classes que se travava em relações ainda coloniais. Isto desagrada certos setores da esquerda que gostariam de pensar que toda revolução, toda transformação nos países capitalistas centrais foram feitas a partir da periferia.
Em que medida a débâcle soviética torna inviável, do ponto de vista político, a apresentação de propostas de transformação mais radical da sociedade?
Durante boa parte da minha juventude e mesmo da maturidade, eu vivi a experiência soviética - como quase todo mundo da esquerda -, como uma grande referência. Nunca fui membro do Partido Comunista, sempre tive bastante reservas a respeito da sua forma de militância mas sempre os encarei como companheiros de luta, principalmente na minha cidade, Recife, onde o partido tinha notável presença nas classes populares. Só vim a tomar conhecimento dos problemas mais graves da experiência soviética a partir da invasão da Tchecoslováquia, em 68. Nem mesmo quando do aparecimento do relatório Krutchev, ainda em 56, a URSS era posta em dúvida. Ninguém sabia muito bem o que era aquilo e a economia soviética parecia que ainda funcionava bem, ia ganhando a competição com os EUA e nós não sabíamos dos horrores dos campos de concentração. A partir da invasão da Tchecoslováquia minhas reservas em relação à União Soviética aumentaram muito, a ponto de eu não mais apoiá-la incondicionalmente. Quanto a experiências como a de Cuba, por exemplo, sempre fui francamente favorável, ainda que deteste a forma ditatorial que lá se exerce. A débâcle soviética é um golpe muito forte na moral socialista e é uma derrota de profundas conseqüências que continuará tendo repercussões por muitas décadas. É um golpe que deve ser sentido também do ponto de vista das milhares de vidas que se dedicaram a construir o socialismo e, portanto, exige de cada um de nós socialistas, marxistas ou não, a mais profunda condenação e a mais rigorosa reflexão a respeito de seu significado.
Essa profunda derrota moral colocou a esquerda em geral muito na defensiva e retirou nossa principal arma de combate, que era mostrar como se podia construir um mundo melhor. É nesse contexto que reafirmo minha posição socialista e o uso privilegiado que é possível fazer do marxismo, sem profissão de fé, sem nenhuma idolatria.
Você diria que a crise do Estado de bem-estar social tem mais a ver com problemas de gerenciamento interno?
As condições em que o sistema capitalista opera ainda não mudaram essencialmente do ponto de vista do chamado Estado do bem-estar. Se quiséssemos usar um termo, diria que o paradigma de sociabilidade presente no sistema capitalista ainda é o da segurança representada pelo Estado do bem-estar. O sistema tem uma espécie de sede de segurança que evidentemente o converte em algo que mostra o limite da forma mercadoria. Ele não consegue sustentar-se sem que instituições tentem segurar o risco. Apesar do que parece, o mundo da livre concorrência, aberta, não-regulamentada, não é nada disso. No mundo real, você pessoalmente segura a sua casa, a vida, a saúde, a viagem. Isso se repete no mundo da mercadoria. Portanto, não se saiu ainda dos marcos em que o capitalismo continua a se reproduzir dentro do paradigma do Estado do bem-estar e os problemas que ele tem não são de gerenciamento, nem devido ao desmoronamento da União Soviética e dos demais países do chamado socialismo real. Seus problemas advêm do limite da forma mercadoria, porque esse sistema desativa forças produtivas numa escala sem precedentes ao ter que passar pelo crivo do valor, e esse impõe limites, que se traduzem no desemprego e em exclusão. Esses são limites da forma mercadoria que o Estado do bem-estar não conseguiu superar. Parte do seu ocaso é devido também a uma transformação ocorrida nos sujeitos que o construíram. É muito evidente que mudou a constituição das classes sociais. Se antes havíamos assistido a um deslocamento das classes, eu diria de privadas para classes sociais públicas, no sentido da sua reprodução, hoje está havendo fortes transformações. Por que se surpreender com o fato da taxa de sindicalização cair nos países mais desenvolvidos? Exatamente porque o Estado do bem-estar universalizou-se, aquilo que dependia da sua filiação ao sindicato, de um certo partido que chegava ao poder, não depende mais disso. Qual o incentivo para ser sindicalizado hoje? Há uma erosão pela base naqueles sujeitos que construíram o próprio Estado do bem-estar e daí vem parte do seu ocaso. Mas, em grandes linhas, eu diria que esse ocaso é mais aparência do que realidade.