Cultura

Destaco O Tesouro da Juventude, que foi importante não pelo que estava escrito, mas porque instigou a minha curiosidade em relação aos livro

Há uma história de um artesão que só aprendeu a ler aos 30 anos. Logo que descobriu a leitura, este artesão leu um livro. Falava da vida de um artesão que tinha aprendido a ler aos 30 anos. A partir daí, o novo leitor assumiu-se como aquele personagem, e viveu o resto de sua vida seguindo o que lá estava escrito. E, como o personagem, ele também só leu aquele. Para esse homem, não há dúvida de que o livro de sua vida foi mesmo o livro sobre sua vida.

Mas para mim, não há nenhum livro que sozinho tenha feito minha cabeça. Entretanto, destaco O Tesouro da Juventude, que foi importante não pelo que estava escrito, mas porque instigou a minha curiosidade em relação aos livros. Mais do que isso, me fez gostar de livros.

O Tesouro da Juventude não foi o livro que fez minha cabeça para o mundo, mas certamente fez minha cabeça para os livros. Por isso deve ser o livro da minha vida.

Meu pai me deu esta coleção enciclopédica quando fiz meu primeiro aniversário. Minha primeira infância se passou com aqueles livros na sala, fazendo-me lembrar do presente que tinha recebido. Durante anos, antes de aprender a ler, eu já brincava com eles, como objetos, por suas fotos, pelo papel.

É interessante que este primeiro presente, tão cedo, quase como uma indução ao gosto pela leitura, tenha partido de meu pai e de minha mãe, que não tinham concluído o curso primário. Ela era filha de uma mulher que morreu já velhinha e ainda analfabeta. Mas, se esse foi o livro com o qual brinquei antes de saber ler, os primeiros que li também estavam na estante que meu pai formava para ele - que lia sempre - e, sobretudo, para mim e meus irmãos. Daquela estante, posso citar outros, que além de me fazerem ver, descobrir e entender o mundo, me proporcionaram o que há de mais importante em um livro: gostar de ler.

Li quase tudo de José de Alencar, de uma coleção de capa verde, e daí vem meu gosto pela história do Brasil e pela história bem contada, pelo estilo. As Minas de Prata é um livro cujos personagens tenho guardados e lembrado até hoje, não apenas suas vidas, mas até mesmo suas feições.

Também li, ainda muito novo, um livro que tinha 15 volumes: Memórias de um Médico, de Dumas Filho, e não apenas uma, mas duas vezes, todos os 15 volumes que contam de forma romanceada e cheia de aventuras a história da Revolução Francesa.

E não parei mais. Foram todos de literatura os livros de minha vida. Mas, dos que me fizeram sair da novela para as análises e fizeram a minha consciência, lembro de Geografia da Fome, de Josué de Castro, que, em 1996, fez 50 anos de publicado.

Havia, no final dos anos 50, livros que formavam a consciência política da gente. Era o tempo em que os que pensavam e analisavam a realidade não tinham sido ainda corrompidos pelo jargão acadêmico, escreviam para todos que soubessem ler e não apenas para os colegas de universidade.

Celso Furtado, com o Formação Econômica do Brasil, foi um dos que me fizeram entender o Brasil e perceber como o rigor analítico pode conviver com uma linguagem acessível aos que não são iniciados. Da mesma forma que O Tesouro da Juventude marcou o gosto pela leitura, os livros como Geografia da Fome e Formação Econômica do Brasil me deram o gosto pela escrita inteligível, pela responsabilidade de escrever para muitos, sobretudo para os que não sabem ainda, e não apenas escrever para quem já sabe, como faz hoje a universidade.

Cristovam Buarque é governador do Distrito Federal.