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Com o direito de reeleição, o governo Fernando Henrique não se limita mais à destruição do aparelho produtivo, construído ao longo das últimas décadas. Ele passa agora a atacar as conquistas democráticas

O projeto da reeleição, aprovado à força de favores fisiológicos e de chantagens explícitas, assinala um novo momento do governo Fernando Henrique Cardoso. Agora, ele não se limita mais à obra de demolição do aparelho produtivo construído ao longo das últimas seis décadas. A partir deste momento, começa a atacar as conquistas democráticas consagradas pela Constituição de 1988.

Isto se revela não apenas no fato evidente de que a reeleição procura institucionalizar o uso do poder econômico para influir nas disputas eleitorais, o que acontecerá particularmente nas prefeituras das regiões mais atrasadas do país, onde deve ficar quase impossível derrotar as oligarquias locais. Mas também em todas as propostas de reformas políticas ventiladas até agora que, em geral, tendem a estreitar os espaços da democracia.

O abuso, por parte do Executivo, das edições e reedições de Medidas Provisórias (MPs) está criando um emaranhado jurídico que dificulta tremendamente a administração da Justiça. Isso acontece porque as MPs, editadas e reeditadas em velocidade alucinante, modificam textos legais que se justapõem, revogam ou revalidam leis já existentes, de forma que fica extremamente difícil para juízes, advogados e cidadãos comuns saber o que realmente está valendo. Ultimamente, o Executivo deu um novo passo rumo à ruptura da ordem democrática: começou a se imiscuir na esfera do Poder Judiciário, pressionando e criticando abertamente o Supremo Tribunal Federal porque esta corte ousou adotar decisões que não eram exatamente do agrado do Príncipe.

Agora, com o projeto da reeleição, a confusão chega ao processo eleitoral. Enquanto as oposições sustentam que, ao eliminar do dispositivo que a instituiu a expressão "e concorrer no exercício do cargo", manteve o instituto da desincompatibilização, o Planalto defende a tese esdrúxula de que a desincompatibilização vale para alguns, mas não para Fernando Henrique Cardoso, sem dúvida porque entende que todos são iguais perante a lei, mas FHC é o mais igual dos iguais. Desnecessário dizer que a bagunça institucional só serve aos interesses de pescadores de águas turvas que pouco ou nenhum compromisso têm com a democracia.

O estreitamento dos espaços da liberdade não é obra do acaso. Deriva da ancestral tendência das elites brasileiras pela maneira forte de governar, pelo autoritarismo. Corresponde às necessidades de um modelo neoliberal que concentra renda, faz crescer as multidões de excluídos e procura inviabilizar qualquer projeto nacional autônomo. Este modelo colonial tende naturalmente a requerer a eliminação das liberdades públicas. Como o modelo econômico tem uma dimensão continental, seus desdobramentos políticos são também continentais. A exemplo do que aconteceu na década de 70, quando praticamente todos os países da região foram submetidos a ferozes ditaduras militares, agora os países centrais do capitalismo optaram pela imposição de um modelo político que preserva as aparências da democracia representativa, mas não se priva da imposição de messias tipo Fujimori, Menem ou Fernando Henrique.

No Brasil, a aprovação do projeto de reeleição serviu para mostrar também a fragilidade da oposição conservadora. Paulo Maluf, mistificado pelo imprensa logo depois dos resultados eleitorais de novembro como campeão das oposições, se revelou incapaz de controlar a bancada do PPB. Metade de seus deputados votaram contra sua orientação. O PMDB de Íris Rezende, Cunha Lima, Jader Barbalho e Orestes Quércia confirmou o que todos sabíamos. É um ser invertebrado guiado pelos caprichos do Planalto. O desempenho do malufismo nas eleições de São Paulo mostrou que o populismo de direita tem repercussão de massa, mas o episódio da votação da reeleição mostrou os limites da sua autonomia. Seus financiadores até aceitam contestar o Planalto numa determinada eleição, mas não estão dispostos a bancar uma contestação do conjunto do projeto FHC. Por outro lado, o escândalo revelado pela CPI dos precatórios, na medida em que envolve Celso Pitta, fragiliza ainda mais o esquema malufista.

Vale ainda registrar a habilidade do governo ao escolher a data para a votação da reeleição, nas férias de verão, um período de baixa geral das mobilizações sociais. Não há no entanto razões para capitular. Nossa história recente mostra que temas institucionais, como a proposta das eleições diretas ou do impeachment funcionaram como aglutinadores de insatisfações difusas. Isto permite concluir que nada impede que a defesa da democracia ameaçada pelo governo FHC venha a se transformar no elemento de unificação das diferentes lutas hoje travadas contra o projeto neoliberal.

O quadro atual nos impõe o dever de, no plano do Parlamento, prosseguir na resistência às medidas que visam reduzir os espaços da democracia, fazendo propostas no sentido da sua ampliação, o que passa por reduzir o uso do poder econômico nas disputas eleitorais, pelo estabelecimento de uma proporcionalidade real para o preenchimento das vagas na Câmara dos Deputados, assegurando que a cada cidadão cabe um voto e acabando assim com o atual sistema, que discrimina o eleitorado do estado de São Paulo e privilegia a representação dos estados do Norte e Centro-Oeste onde, em certos casos, o peso do eleitor é dezesseis vezes maior que o peso do eleitor de São Paulo. Fora isso, sempre cabe insistir no fato de que a defesa da democracia pode se transformar numa bandeira popular. Basta investir nisso.

José Machado é líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados.