Cultura

O filme 'Terra e Liberdade', do diretor inglês Ken Loach, virou um sucesso, especialmente entre o público de esquerda. Forte impacto emocional em alguns, críticas ácidas de outros, artigos e polêmicas, seminários, debates. No número 32 de 'Teoria&Debate', Carlos Eduardo Carvalho tratou do tema. Tendo em vista diversas opiniões e comentários recebidos sobre o artigo, voltamos ao assunto.

A revolução espanhola é a mais completa e a mais trágica síntese dos movimentos revolucionários socialistas, dos seus impasses e derrotas, do que tiveram de mais belo e apaixonante. Um cenário tão propício a identificações emocionais e polêmicas acirradas é a explicação mais óbvia para o sucesso do filme de Ken Loach. Mas Terra e Liberdade vai além. Ao mostrar a curta trajetória de David no drama espanhol, acaba tratando de conflitos básicos que sempre acompanham as forças de esquerda e os movimentos populares.

A milícia aparece no filme como uma força militar muito frágil. Ainda assim, as coisas vão indo mais ou menos bem, até o enfrentamento com as tropas regulares fascistas, provavelmente em meados de 1937. Os mesmos problemas já haviam ocorrido com toda a crueza na batalha de Madri, no final de 1936. Apesar do enorme heroísmo, as milícias que saíram da Catalunha e do Aragão para defender a capital, comandadas pelos melhores líderes anarquistas, haviam mostrado fraco desempenho militar e foi pelo setor por elas defendido que as tropas fascistas quase invadiram a cidade.

Como é possível que David e seus companheiros não falem da batalha de Madri? Não é só isto: a ordem de desarmar as mulheres das milícias é acatada sem maiores protestos. Por quê? E mais: não se sabe quem eram os chefes, quem dava ordens, o que pretendiam, e os milicianos nem se preocupam em saber.

Os milicianos aparecem como pessoas boas e honestas, idealistas e abnegadas, com defeitos e fraquezas comuns. A tragédia que enfim os envolve, contudo, não decorre de suas limitações e equívocos, nem pode ser barrada por suas qualidades. Vem de fora, de cima, de ordens ditadas por quem tem poder, vilões poderosos e anônimos que nem sequer aparecem em cena. São os seus prepostos, armados e brutais, que vêm submeter os milicianos, eliminar sua autonomia e restabelecer as regras da ordem antiga. Os milicianos nada conseguem fazer diante da prisão arbitrária e bárbara dos seus líderes, após uma batalha cruel em que haviam enfrentado bravamente os fascistas.

Inverossímil demais? Provavelmente não. Nos trágicos conflitos de maio de 1937 em Barcelona (quando David decide voltar para a milícia), anarquistas e poumistas estavam divididos, isolados e enfraquecidos a ponto de não conseguirem reagir à proibição de funcionamento legal de suas organizações, à detenção de seus líderes e à execução de alguns deles. O espantoso é que nas milícias e nas ruas de Barcelona lutavam os mesmos homens e mulheres que haviam enfrentado a feroz repressão do capital e da direita por décadas a fio e que haviam derrotado o golpe fascista menos de um ano antes, em grande parte da Espanha, sem armas nem disciplina.

Meses antes da tragédia, a libertação de uma pequena aldeia pelos milicianos dá lugar a um acalorado debate sobre a coletivização das terras. A maioria dos milicianos e dos camponeses viam a luta contra os fascistas como um passo para a revolução social, um passo indispensável, mas apenas um passo. Querem a propriedade coletiva, o socialismo. O camponês rico contesta a coletivização generalizada. Seus argumentos se orientam por uma ótica local, quer defender sua propriedade argumentando que seria o melhor caminho para aumentar a produção agrícola da aldeia.

A ampliação do debate é feita pelos de fora, milicianos mais intelectualizados, estrangeiros e espanhóis. O debate era decisivo nos impasses políticos da época. Para comunistas e parte dos socialistas, a guerra antifascista era o único objetivo a ser perseguido, ao qual se deveriam submeter todas as demais questões. Ao olhar de hoje parece simples: uns queriam radicalizar, outros queriam ampliar. Como sempre, porém, era tudo bem mais complexo.

O programa eleitoral amplo da Frente Popular definido em 1935 provocara crescente radicalização política. O triunfo nas urnas, em fevereiro de 1936, fez com que a Espanha entrasse de fato numa situação revolucionária. A radicalização apressou o levante militar da direita, é verdade, mas ele já estava em preparação havia bastante tempo e iria ocorrer de qualquer forma. Foi a radicalização que cindiu as forças democráticas de centro e evitou a direitização generalizada nos meses anteriores ao levante.

A brutal radicalização dos trabalhadores e do povo em resposta ao golpe impediu a vitória imediata dos fascistas. Além de salvar Madri e Barcelona, criou as bases para se organizar a luta contra o levante. A excepcional vitória contra o fascismo alcançada pelo povo espanhol em julho de 1936 desencadeou uma onda de simpatia e apoio internacional nunca vista. Formaram-se comitês de apoio em inúmeros países, milhares de voluntários partiram para a Espanha.

A radicalização dos acontecimentos em meados de 1936 dificultou a reação de Londres e Washington contra a revolução espanhola. Além do crescente sentimento antifascista em seus próprios países, apoiar os golpistas abriria espaço para uma forte presença da Alemanha nazista no sul da Europa e no Mediterrâneo. EUA e Inglaterra nada fizeram para derrotar Franco, mas não puderam intervir contra a revolução e não deram carta branca a Berlim para esmagar a República e a revolução.

O cenário externo era favorável. Apesar da grave derrota sofrida na Alemanha, a esquerda vivia o melhor momento desde a onda vermelha que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. O nazismo não se consolidara plenamente e ainda agia com certa cautela. Na maior parte dos países industrializados eram muito vivas as duras conseqüências da depressão e os trabalhadores continuavam profundamente insatisfeitos, mesmo nos EUA e na Inglaterra. O amplo sentimento contra os capitalistas e contra o fascismo reforçava a luta na Espanha e era por ela reforçado.

A revolução espanhola desmonta fortemente as visões simplistas sobre as relações entre ampliação e radicalização das lutas populares. No drama espanhol, para "ampliar", no sentido que hoje se conhece, seria preciso deter a revolução, o que estreitaria gravemente a base mesma do movimento democrático, que era o impulso revolucionário das grandes massas radicalizadas. Foi o que ocorreu: a revolução definhou e a República sobreviveu mais dois anos, só que nunca voltou a reunir forças materiais e políticas para de fato ameaçar o inexorável e progressivo avanço da coalizão nacional e internacional que sustentava os golpistas.

Para ampliar o movimento revolucionário e levá-lo à vitória, porém, seria preciso um gigantesco trabalho de articulação política e de organização militar e material, algo que os trabalhadores em nenhum momento mostraram capacidade de fazer. Diante deste imenso desafio, as forças políticas de esquerda fracassaram. Não foi um grupo de dirigentes traidores que fracassou, mas sim a grande massa de trabalhadores. A tragédia reside aí. A vitória conquistada de forma tão dura esvaiu-se pelos dedos. Poucos meses depois, os milicianos nem conseguiam reagir diante da tropa armada que vem prender seus líderes, a mando de forças políticas que, ao menos em tese, faziam parte de seu próprio campo.

Tamanha carga emocional e tamanha complexidade histórica dificultam a análise mais cuidadosa de Terra e Liberdade como filme, como obra de arte. Alguns críticos atribuem-lhe um caráter parcial ou tendencioso na abordagem de acontecimentos excepcionalmente complexos e um viés anticomunista ou antistalinista que o tornaria pouco confiável. São acusações injustas.

O filme é pobre e descuidado em situar os acontecimentos em seu contexto histórico, tão complexo e difícil. Mesmo pessoas com razoável grau de informação não conseguem entender bem o que de fato está se passando, quem está atacando quem. As legendas no início são insuficientes. Além de muito curtas, a carga emocional do filme faz com que meia hora depois ninguém se lembre mais do que leu no começo.

O filme é a história do inglês David na Espanha revolucionária, a experiência concreta e o ponto de vista de um indivíduo específico. A parcialidade é inevitável. O tempo é cortado pela chegada e partida de David, provavelmente setembro de 1936 e maio de 1937, o período que Enzensberger chamou de "curto verão da anarquia". Só aparecem Barcelona e a parte do Aragão em que está a milícia, locais decisivos para a revolução, mas áreas de hegemonia anarquista, ao contrário de outras regiões da Espanha. E a percepção cultural de David é de um estrangeiro que não fala a língua e pouco conhece da história e da realidade da esquerda espanhola e do país.

A narrativa individual torna o filme mais atraente e humano, mais concreto, mas a exposição do drama histórico fica prejudicada. Teria sido um truque para facilitar a exposição das idéias de quem fez o filme, alguém que certamente possui uma visão dos fatos bem mais ampla do que David tinha na época, inclusive por estar olhando os fatos décadas depois? Não necessariamente uma deslealdade, talvez apenas uma manifestação da inevitável apreensão diferenciada e parcial da realidade por qualquer observador a qualquer tempo.

A parcialidade e as omissões de Terra e Liberdade, contudo, não parecem favorecer nenhuma das forças que se digladiam na análise do drama espanhol. O filme não mostra a grandiosa resposta popular ao levante fascista em Barcelona, por exemplo, o que exagera a imagem de fragilidade militar das milícias. O desempenho dos anarquistas na defesa de Madri também é omitido. Não se toca na onda revolucionária nas cidades e no campo, antes e depois do levante, ponto decisivo na argumentação do POUM contra as teses stalinistas que negavam a existência de uma revolução socialista em curso na Espanha. O debate entre os camponeses sobre a coletivização é mostrado de forma honesta e ampla, da mesma maneira que a conduta antipopular e criminosa do padre. A luta de rua na aldeia e o conflito armado dentro da esquerda em Barcelona aparecem em toda a sua crueza e brutalidade.

O filme é explicitamente antistalinista, sem dúvida. Contudo, os argumentos dos comunistas para defender sua política aparecem no filme de forma honesta, no debate a respeito da coletivização na aldeia. A tese de que os líderes anarquistas e poumistas eram "agentes da reação e do fascismo" está escrita nos documentos stalinistas da época, da mesma forma que o esforço para negar a existência de uma revolução na Espanha. A conduta repressiva e brutal quando dissolvem as milícias é confirmada pela maioria dos historiadores. Não há mais dúvidas de que dirigentes do POUM foram detidos ilegalmente pelos comunistas e assassinados na prisão que a polícia soviética mantinha em território espanhol, sem que haja qualquer prova de que tenha havido participação de outras forças políticas republicanas na decisão de executá-los.

Tudo isso posto, volta a pergunta: por que tanta comoção e tanta irritação entre as pessoas de esquerda que vêem o filme hoje, sessenta anos depois? É que a revolução espanhola permanece como referência permanente para o imaginário e a reflexão de todos nós, muitas vezes com a paixão de quem ainda é parte do drama. O impacto de Terra e Liberdade é tão forte porque fala de questões muito vivas, fala da ausência de democracia e das difíceis relações entre militantes e dirigentes, do interminável e permanente conflito entre radicalização e ampliação das lutas e dos movimentos, sejam eles quais forem. Não é preciso comentar a enorme atualidade de todas estas questões para a esquerda brasileira.

David e seus companheiros emocionam e fazem chorar muitos de nós porque são eles as pessoas com quem nos identificamos, apesar de todos os problemas e apesar de todas as simplificações, ou talvez por isto mesmo. É como eles que nos sentimos hoje. Triste e trágico. A identificação com os milicianos de Terra e Liberdade rediscute nossa própria trajetória, questiona nossa própria identidade e tudo o que vivemos como esquerda brasileira.

Carlos Eduardo Carvalho é economista.