Cultura

Debate sobre a novela Rei do Gado, da Rede Globo, e a imagem da MST e da reforma agrária

A novela O Rei do Gado, de Benedito Rui Barbosa, bateu recordes de audiência, constituindo-se num dos maiores sucessos do gênero na TV brasileira. Ao mesmo tempo, ao introduzir a questão dos sem-terra e da luta pela reforma agrária em horário nobre na Rede Globo, provocou ódios e amores a direita e à esquerda. No dia 28 de fevereiro, Teoria&Debate e a Secretaria Agrária Nacional do PT promoveram um encontro entre João Pedro Stédile, dirigente nacional do Movimento Sem-Terra, e Eugênio Bucci, crítico de TV da revista Veja e membro do Conselho de Redação de Teoria&Debate. Durante quase duas horas, eles trocaram impressões sobre a novela e as influências dos meios de comunicação de massas no Brasil. Convidamos também para participar desse bate-papo o senador Eduardo Suplicy. Impossibilitado de comparecer devido a compromissos anteriores, nós o ouvimos posteriormente e publicamos seu depoimento junto com a edição da conversa entre João Pedro e Eugênio.

João Pedro - Vou tentar resumir as interpretações que a nossa base e o Movimento Sem-Terra fizeram, já que a novela influenciou significativamente a nossa vida. Em qualquer debate ou discussão em que os companheiros iam, aparecia a pergunta: e a novela está ajudando ou prejudicando vocês? De maneira que, dentro do movimento, muito se conversou a respeito.

Politicamente, para nós, a novela foi muito importante. Ela contribuiu para a reforma agrária de uma maneira positiva. Porque, pela primeira vez, colocou a questão em horário nobre para milhões de brasileiros; na sua maioria, a faixa da população mais alienada dos temas sociais, que vê novela como divertimento. Nem o MST nem a Igreja Católica chegariam a esta faixa com o tema da reforma agrária se não fosse por intermédio da novela.

Em segundo lugar, nós gostamos porque, embora feita de maneira romanceada, a novela conseguiu colocar os temas pertinentes à reforma agrária. A opinião pública viu o que era um acampamento e teve que conviver com a idéia de que tem gente que mora em barraco com suas crianças e que está lutando por alguma coisa. De maneira criativa, o autor conseguiu colocar aspectos da vida do movimento: o acampamento, a escolinha, o papel da professora. Essa, aliás, foi uma reivindicação nossa para o Benedito, à medida em que, para nós, a educação é tão importante quanto a terra. Ele assimilou essa proposta e a professora entrou do meio da novela em diante, projetando uma imagem muito simpática e bonita de como tratamos a educação nos acampamentos. Isto foi superimportante. Nós queremos valorizar a educação na nossa base, que às vezes prefere ver os filhos trabalhando, e a novela ajudou a mostrar que tem que colocar os filhos na escola.

O autor incluiu também permanentemente temas que faziam parte da conjuntura política e a discussão das leis que estavam em debate no Congresso, como o ITR (Imposto Territorial Rural). De certa forma, ele criticou bastante o desprezo que o Congresso conservador tinha pelo tema, o que é um sentimento que existe também na nossa base.

No entanto, percebíamos que alguns desses temas conjunturais eram tratados de forma politicamente correta e outros de acordo com a vontade política do governo.

T&D - Por exemplo?
João Pedro - O ITR. Para nós, ele é secundário na luta pela reforma agrária. O governo transformou o ITR numa questão de honra, como se fosse a solução para todos os problemas. Nenhum país do mundo fez reforma agrária com o ITR e, no caso brasileiro, o problema nem é de lei, é de falta de vontade política do governo para cobrar o imposto, porque a legislação anterior também permitia penalizar duramente os latifundiários. O governo fez um jogo de cena, de propaganda e o autor entrou nessa.

Também nos pareceu simpática a figura do senador Caxias. Nós identificamos a figura do Suplicy no senador e interpretamos isso como uma homenagem. Os sem-terra paulistas, principalmente, gostam do senador Suplicy e acabaram gostando do Caxias também. Nós até brincávamos, dizíamos que a única sacanagem que o Benedito fez foi ter botado aquela jararaca de mulher dela. Poderia ter feito uma homenagem também para a Marta e ter dado uma mulher mais bonita para o senador Caxias. Mas ele compensou com a namorada bem sabida de Brasília que opinava sempre em favor da reforma agrária.

Também vimos pontos negativos. Sempre ficávamos na dúvida, se era vontade do Benedito ou ingerência da Globo, mas sentimos claramente alguns temas mais ideológicos serem tratados de maneira direitista, ou pelo menos conservadora.

Por exemplo, durante toda a novela o Regino foi construído como um líder meio messiânico que decidia sozinho. Num acampamento não é assim. Às vezes a imprensa pode criar essa imagem em torno do Zé Rainha, mas todo mundo sabe que é um princípio para nós do MST: sempre atuamos em comissão. Qualquer acampamento tem pelo menos quinze que sempre se reúnem e decidem, pelo voto. Nós queremos combater o messianismo que às vezes está presente quando setores de Igreja passam a liderar a luta pela terra. Há padres que se comportam como líderes messiânicos. Felizmente, é uma absoluta minoria. A grande maioria dos padres que nos apóiam na luta pela reforma agrária tem uma postura politicamente correta, de manter o movimento com a sua autonomia.

O Regino foi projetado um pouco como um líder messiânico que decidia sozinho, para tentar criar no imaginário da população que um bom líder dos sem-terra tem de ser igual àquele, de maneira que, de agora em diante, quando aparecerem lideranças que se comportam de forma diferente, o governo teria direito de reprimir. O Regino também não fazia nada sem consultar o senador. É certo que nós gostamos do Suplicy, mantemos uma relação com ele, mas não é assim que as coisas acontecem. E, na novela, qualquer coisa o Regino telefonava para o senador e sempre se colocava a questão da negociação. Para nós, em primeiro lugar estão os direitos e a organização do povo. E ele fazia um discurso completamente contrário. Era sempre "calma", "paz", "negociar", as palavrinhas-chave da Globo.

Não gostamos também - e chegamos a comentar com o Benedito - do tratamento que ele deu ao papel da mulher. Ela sempre aparecia meio subjugada. Não é assim que se comportam as mulheres lideranças do movimento. Na novela, todas as mulheres tinham um papel negativo. Uma era traidora do marido; a Luana era meio babaca e não sabia falar direito; a mulher do Zé do Araguaia, uma idiota...

Outro aspecto, com o qual ficamos putos da cara, foi o rancor contra a bandeira vermelha. Em conversas paralelas, ele tinha comentado que preferia colocar a bandeira do Brasil porque ampliava a luta pela reforma agrária. Mas, que se a novela alcançasse determinado nível no Ibope, ele eventualmente se atreveria a colocar a bandeira do Movimento Sem-Terra. Depois, ele nos disse que teria sido aconselhado a não colocar porque seria propaganda explícita do MST. Até aí, tudo bem. Mas, ele não só não colocou a nossa bandeira, como procurou destruir a bandeira vermelha. Aí, pegou o MST, a CUT, o PT, atingindo toda essa simbologia que o vermelho traz para a esquerda.

Uma das coisas que aprendemos com a Igreja foi a utilização mística como um fator de unidade muito importante. O que garante a unidade do movimento não é só a linha política, é a mística construída em torno de certos símbolos: o nosso hino, a bandeira e certas práticas de organização. Eu sei que, mesmo dentro do PT, há gente que não gosta disso, diz que é coisa do passado, mas essa prática da simbologia e da mística são valores de qualquer organização social. É muito difícil uma organização de massas se manter unida se não construir os seus símbolos. Assim funciona na Igreja, num time de futebol, em qualquer organização social. E todo mundo se sentiu ofendido com a agressão à nossa bandeira. A nossa militância ficou revoltada.

Também achamos que ele não foi politicamente correto quando não deixou explícito que foram os fazendeiros que mandaram matar o Regino. Ficou como se fosse apenas ódio de pistoleiro. Isso não existe. Pistoleiro é um mercenário, é o prostituto da luta de classe, ele não tem cabeça própria, faz tudo porque é pago. Com isso, tirou um pouco a responsabilidade que a oligarquia rural tem pelos assassinatos no campo e pela violência rural.

Outra coisa que notamos: há um certo racismo na novela, porque são sempre três negros, que eram ex-jagunços, que propunham o tema da violência no acampamento quando esquentava o clima.

Mas, no geral, o balanço é positivo e as pessoas gostaram da novela. Porque o noticiário nos projetava sempre vinculados a conflitos, a mortes, miséria, a barraco. Agora, se vê os sem-terra com mais simpatia: são pobres mas são dignos, fazem as lutas mas não são tão violentos. Essa é a imagem que ficou.

Eugênio - Uma novela tem sucesso principalmente a partir do seu pique e da sua possibilidade de ir amarrando uma nacionalidade tão dispersa numa única representação, num só espetáculo. A novela é a mística por excelência, é pura simbologia que aglutina o país inteiro.

Existe uma contradição na televisão brasileira que faz com que o telejornal seja mais mentiroso do que a novela. Há mais verdade na novela - que é ficção - que no telejornal, que seria a informação! Principalmente na Globo, que foi quem deu o formato de televisão que temos hoje. Aliás, comparando as novelas brasileiras com as mexicanas, estas últimas acontecem sempre no mundo da lua. É a historinha da Cinderela, ou de Romeu e Julieta. A novela brasileira é muito mais complexa do que a mexicana.

Isso porque a televisão brasileira era a via de realização do projeto da ditadura de integração da nacionalidade.

Seu papel era o de dar a linguagem e o imaginário para essa integração. Horizontalizando, como eles dizem, com seqüências de novelas - das 6:00; das 7:00; das 8:00 -, criando esse hábito todos os dias da semana. Logo, se a novela não falasse alguma coisa da realidade, ela não conseguiria fazer essa amarração.

Daí, se criam contradições muito interessantes. Foi, por exemplo, uma minissérie - Os Anos Rebeldes - que trouxe para a televisão o tema da guerrilha, que era um tabu no telejornalismo. Todo telejornalismo da Rede Globo era a favor do Collor. Passados dois anos, veio a minissérie Decadência, de Dias Gomes, em que toda a turma que cercava o governo era retratada como vilã, e todo pessoal que ia para a rua era mocinho. Aliás, uma das personagens, a da Cláudia Abreu, era militante do PT e aparecia a bandeira do PT no seu quarto. A novela Explode Coração fez uma campanha em torno do drama das crianças desaparecidas muito mais eficiente que qualquer jornalismo. Assim, pelo melodrama, pela ficção essas questões sociais e políticas entram na televisão.

Isso porque, ao receber a função de integrar a nacionalidade - hoje um pouco transformada -, a televisão, e principalmente o telejornalismo que fazia o discurso da integração nacional, precisava mostrar certas coisas e esconder outras. Isso produz uma polarização tão grande com a realidade que a ficção acaba servindo de mediação e muitas vezes é porta de entrada para coisas que estavam escondidas. E os sem-terra entram aí. O massacre de Eldorado do Carajás entrou no noticiário não pelo fato em si, mas porque tinha imagens dramáticas espetaculares. Houve outras coisas tão pavorosas quanto aquelas no campo que nunca mereceram destaque na televisão, como o massacre de Corumbiara. Se não houvesse acontecido o massacre um mês e meio antes da estréia da novela, talvez os sem-terra não tivessem entrado para a discussão rotineira do país. Porque a televisão, por intermédio da novela, dá visibilidade e isto é condição para existir no Brasil. Aquilo que não aparece na TV, a sociedade ignora. Paradoxalmente, ao dar visibilidade, a novela deu também cidadania.

O João Pedro faz críticas pela esquerda à novela. Eu ouvi também muita gente fazer críticas pela direita. Portanto, o Benedito Rui Barbosa não teve apoio incondicional de ninguém. Ele saiu criticado por todos os lados exatamente porque incorporou coisas diferentes de um país contraditório, marcado por discrepâncias e abismos sociais violentos, para produzir um melodrama que tem uma unidade - evidentemente fictícia - mas com muitos elementos de realidade. Dentro dessa contradição, a novela foi muito bem-sucedida. Agora, os sem-terra tendem a ficar com uma imagem de pessoas dotadas de cidadania, honestas, sofredoras, que querem Justiça. Eu também gostei da novela, acho que nunca se fez pela reforma agrária uma propaganda tão poderosa.

O João Pedro falou do Zé Rainha, que é caracterizado na imprensa como um líder quase solitário, e que na realidade não o é. Concordo integralmente com a crítica que ele fez ao personagem Regino. Mas, acontece que criar esses popstars é parte do tipo de espetáculo que a TV proporciona. O Paulo Francis, por exemplo, era um popstar do jornalismo. O Michael Jackson é um popstar, no esporte tem o Ronaldinho... Em muitos aspectos, até dirigentes da esquerda são praticamente sacralizados no tratamento que recebem na televisão. Querendo ou não, teria que aparecer algo como um popstar dos sem-terra. O Regino não chegou a incorporar esse modelo de forma acabada, mas ele indica um ensaio de alguma coisa assim. Na televisão, precisa ser dessa maneira, porque nela não cabe o processo democrático. Uma reunião do GATT ou da OMC não tem destaque porque não tem imagem. Imaginem só, um monte de caras sentados em volta de uma mesa, decidindo coisas cruciais, é certo, mas a asa de um avião que desprende é muito mais notícia porque é espetacular! O telejornalismo também funciona como um entretenimento. A visão melodramática acaba independendo se aquilo está numa novela ou no telejornal. É por isso, aliás, que as propagandas políticas na TV são despolitizadas. Porque senão, o telespectador desliga ou muda de canal. O que cabe é o espetáculo! São sempre imagens simplificadas. Portanto, o autor precisava de um líder que fosse um pouco iluminado, carismático, acima dos outros.

Quanto ao senador, eu acho que ele não era do PT. Era uma espécie de ET, um cara que tinha elementos do Suplicy, mas dava apoio às ações do governo, como na questão do ITR. Ele era apenas um senador honesto e bem-intencionado, mas politicamente inoperante. Ele não fazia política, fazia um pouco de caridade, com vacilação e culpa. Não era um senador com um programa de transformação social. Era alguém angustiado apenas com o drama humano dos sem-terra. Sem desmerecer a compaixão que move os homens e a solidariedade humana, mas ele era despolitizado. E chato. A relação dele com a namorada era complicadíssima! Ela deve ter ficado entediada. Ainda bem que ele morreu, porque politicamente não atava nem desatava e amorosamente não trepava nem saía de cima!

Eu defendo o Benedito Rui Barbosa em vários pontos. Ele explicou a questão da impunidade numa entrevista da qual eu participei. Ao deixar oculto e impune o verdadeiro assassino, ele mostra mais o Brasil e deixa mais indignado o telespectador. Onde estão os assassinos dos sem-terra? Na vida real, eles não foram punidos. Esta é a sensação que temos no Brasil. Isso foi uma solução ousada e bem-sucedida. Como também ele demonstrou bem a impunidade quando o Marcos Mezenga foi absolvido no julgamento final por de uma maracutaia jurídica: vilipêndio de cadáver.

Com relação às mulheres, havia uma história de Cinderela: uma sem-terra, excluída social - a Luana -, que namora o latifundiário. No fundo, é a defesa da conciliação, da perspectiva de uma ascensão amorosa, sempre melodramática. E é curioso também observar que Xica da Silva é a história de uma escrava que namora o seu senhor. De novo, a Cinderela. Fala-se falando em preconceito racial, em escravatura, torturas etc., mas apontando uma via de conciliação amorosa, sempre não-política. Isso é um traço da novela. Mas, apesar disso, ela politiza muito mais o país do que o telejornal!

Às vezes, temos uma tendência a querer encaixar o que se passa na novela com os interesses ideológicos da Rede Globo. Na verdade, esses interesses não existem. A Rede Globo não tem um projeto para o Brasil. Quem tinha um projeto era o regime militar. A Globo foi parceira nessa função e nesse projeto. Mas, é uma empresa capitalista e seu projeto é expandir-se como tal: lucrar e crescer. As alianças políticas que faz são explicadas por isto e não ao contrário. Ela muda como se não tivesse caráter, mas tem um projeto capitalista como as outras empresas de comunicação. E se um dia puser bandeiras vermelhas e descobrir que com isso aumenta a audiência, e que aumentando a audiência vai ter mais anúncio e que o anúncio vai custar mais caro, ela vai fazê-lo, como já fez várias vezes.

É impressionante, mas o novelista escreve e manda. Não passa nem de longe por alguma injunção partidária, ideológica ou política da Rede Globo. É claro que ele não poderia pôr todos os latifundiários sendo fuzilados num paredão e um ator lendo um projeto de lei a ser adotado. Não poderia fazer isso porque seria chato e as pessoas iriam mudar de canal.

No telejornalismo há algum controle, mas acabou o tempo em que tinha o censor dentro das redações. Hoje, o repórter tem uma pauta, apura, acha que precisa fazer a pauta nesses termos porque o editor vai gostar, eventualmente promovê-lo. O editor quer garantir a audiência e para isso precisa ter espetáculo. Aquele coletivo funciona como um organismo ideológico que faz o, telejornal ser o que é. Deve haver algum tipo de veto. Por exemplo: "o Brizola não entra". Mas não é o principal.

O processo ideológico de confecção do telejornal envolve muito mais gente, muito mais influências do que o processo de confecção das novelas. Esta é escrita por um autor que fica isolado, produzindo-a. Ele não a submete a um censor. E, em geral, os autores de novelas têm uma tradição e uma autonomia autoral de esquerda, o que aumenta a contradição. Com tudo isso, o Rei do Gado não é uma novela de esquerda. É uma novela de direita que incorpora elementos de esquerda.

T&D - Mas, ao mesmo tempo em que coloca a questão da reforma agrária, não haveria um interesse político da Globo em desmoralizar o MST? Por exemplo, a crítica à bandeira vermelha, ao radicalismo e um certo discurso mostrando que o governo está bem intencionado... Eu ouvi gente dizendo: "nessa novela a questão da reforma agrária saiu fortalecido, mas o MST não!"
Eugênio - Dentro dessas contradições, a novela não surge como algo calculado. Surge porque há alguém com talento para escrevê-la, que já fez um Pantanal. É claro que há momentos em que, do ponto de vista da Globo, é preciso segurar, mas isso é muito difícil. Roberto Marinho toda hora fala que não quer mulher pelada; o Boni dá duro em todo mundo que não quer sexo. Mas em Malhação, às 5h da tarde, todo mundo está pelado, todo mundo está transando! O aparecimento dos sem-terra se deve mais à cabeça do Benedito. Ele acredita em reforma agrária, acredita que aquela dupla de violeiros é boa e acredita em fantasma. Pôs isso na novela, fantasmas, dupla caipira, sem-terra...

T&D - Então o autor tem uma autonomia...
Eugênio - Quase que total, a ponto de convidar o Suplicy e a Benedita da Silva para aparecerem na novela.

T&D - Houve setores de esquerda que criticaram a participação deles. Qual é a avaliação de vocês?
João Pedro - Os sem-terra gostaram. Entenderam como uma homenagem. Diziam: "então é ele mesmo o senador Caxias!". Depois, recebi telefonemas do pessoal do PT dizendo que o Suplicy não devia ter ido, que se deixou manipular pela Globo. Nós não vimos com esses olhos.

Eugênio - É mais um aspecto dessa contradição, porque é evidente que o telejornal da Globo não dá destaques enormes para o Suplicy e nem para a Benedita. No entanto, a novela dá uma projeção impressionante e é uma homenagem que o autor fez a essas duas figuras.

Do ponto de vista político, acho estranho senadores da República fazendo um papel dentro de uma novela. Não sei se está certo, mas para mim praticamente é indiferente. Talvez do ponto de vista dramático, da construção da ficção, fique meio desajustado. A figura institucional do senador da República fazendo esse papel: "o senador Caxias era um grande homem..."

João Pedro - Mas as respostas que o Suplicy deu foram politicamente corretas. Eu perguntei se tinha script e ele me disse que a única condição que tinha acertado com o Benedito foi que poderia responder o que quisesse.

Eugênio - É óbvio, porque o Suplicy no papel de Suplicy é perfeito! Ele não poderia falar outro texto! Mas, há um problema, que é passar para certos setores que aquela aparição foi oportunista. Enfim, foi uma decisão difícil. Conhecendo o Suplicy, sei que não foi oportunismo, para ser visto por 60 milhões de pessoas, mas teoricamente até poderia passar como tal. Mas, não deixa de ser um momento histórico da novela brasileira. O aparecimento de dois senadores da República, mesmo que com texto próprio, mas dentro da ação ficcional que é composta pela novela.

T&D - Vocês sentiram mudanças na forma com que as pessoas passaram a tratar o pessoal do movimento depois que a novela começou?
João Pedro - Quando o pessoal dos assentamentos ia para a cidade, notava que o povo passava a nos tratar como se fôssemos atores: "vocês estão na novela agora!", "estão por cima!", "a Globo deu colher de chá para vocês..." Mudou de forma impressionante o relacionamento com a população. As lideranças do movimento, sobretudo no Pontal, que antes da novela eram consideradas como chefes de quadrilha pela direita, passaram a ser tratadas com respeito pelos setores conservadores da sociedade.

T&D - Como vocês avaliam o papel de Bruno Mezenga? Afinal de contas, ele é o grande fazendeiro, o rei do gado, mas é bonzinho...
João Pedro - As reações da militância de esquerda foram de considerar que na Globo os fazendeiros são bonzinhos, dão boi, até ficam namorando com sem-terra... Mas, nós percebemos que em várias regiões os fazendeiros mudaram de comportamento. Antes, eles tratavam nossos líderes como bandidos. Depois, começaram a, pelo menos, aceitar conversar. Há vários casos de fazendeiros dizendo: "temos que negociar este assunto, não dá mais para só chamar a polícia, vamos procurar um acordo etc." Tem influência da novela nisso.

Eugênio - Isso é uma das vantagens da telenovela brasileira. Todos são bons e ruins, ao mesmo tempo. Com exceção do senador. O Geremia Berdinazzi, que termina como um cara legal, roubou a mãe! Será que pode existir vilania pior? O próprio Bruno Mezenga era um assassino. O Marcos Mezenga também matou. Não existem mais os tipos puramente bons ou maus. E isto contribui para ter mais complexidade e menos ingenuidade na trama. O Bruno Mezenga tem um papel ambíguo. Na trajetória ideológica, ele também é herdeiro de uma família pobre, de italianos excluídos que vieram para o Brasil, como se fosse um sem-terra de cinquenta anos atrás. Ele fez fortuna depois.

É um personagem que precisa vir do passado e no encerramento precisa se remeter ao passado. O Benedito sempre faz isso chamando os seus fantasmas. No Pantanal, era o Velho do Rio, e agora, no final, aparecem todos os fantasmas do passado, pacificando tudo. As tensões que estavam dadas no começo são pacificadas, casando a sem-terra com o latifundiário. Acabou. Ele ainda fez aquela declaração de princípios no final, foi muito legal.

T&D- É verdade que o MST tinha uma canal direto com Benedito e que teve certa influência no desenvolvimento da novela?
João Pedro - O poder de influência maior era por intermédio da imprensa. Percebíamos que a luta de classes que aparecia no jornal era incorporada. Mas sempre estávamos com uma expectativa positiva porque tínhamos um certo relacionamento com o Benedito. Ele tinha contatos freqüentes com um companheiro nosso, professor e militante do movimento, o Bernardo Mançano Fernandes. Em muitas ocasiões, ele consultava o Bernardo, quando tinha dúvidas sobre o movimento, para não ficar fantasiando muito. Obviamente, nós procurávamos enviar nossos recados, tanto por intermédio deste companheiro quanto do Suplicy, que acabou criando amizade com ele.

T&D - A novela influenciou o comportamento do movimento de alguma forma?
João Pedro - Cresceu o orgulho, a auto-estima. Todo mundo virou artista. E no fundo, nos comentários que se faziam nos bares, depois das reuniões, todo mundo ficava meio se procurando dentro da novela.

Eugênio - Você sente que, tem algo de consumo no movimento motivado pela televisão?

João Pedro - Em geral é impressionante. Por exemplo, no vestuário nos choca a influência da novela. Do Rio Grande do Sul ao Pará o vestuário está unificado. O que é lançado, sobretudo na novela das sete, se transforma em moda! É claro que as grifes são diferenciadas e tem também as imitações baratas. Mas se você for a Macaxeira, que é o nosso acampamento mais pobre, a juventude anda vestida igual a de São Paulo.

T&D - Qual a influência da novela na expressão que o MST tem hoje?
João Pedro - A expressão do Movimento Sem-Terra é resultado do somatório de vários fatores. Seria também muito reducionismo só atribuir à novela. Afinal, estamos há 16 anos na praça, fazendo lutas e já temos muitas conquistas. Já tínhamos um arco de alianças consolidado com a Igreja, com a esquerda. Tudo isso soma. O fato do Fernando Henrique, no primeiro ano de governo, ter nos recebido três vezes em curto espaço de tempo, em audiências públicas, também nos legitimou como interlocutor privilegiado. A novela ajudou a fazer com que as pessoas passassem a olhar o sem-terra de maneira diferente. Ou seja, de certa forma, ela nos deu status de cidadãos.

Rogerio Sottili é assessor da Secretada Agrária do PT. Ricardo Azevedo é editor de T&D.