Sociedade

Se a "revolução digital" é mais parecida com uma esperta campanha de marketing da indústria de informática, isso não significa que suas possibilidades tenham de ser ignoradas. O potencial alternativo da rede se faz presente. O Brasil já tem 500 mil internautas. Tudo isso é o bastante para se começar a pensar na contra-revolução digital

"A trapaça do silício é a crença tecnocrática que computadores e redes vão produzir uma sociedade melhor. Acesso à informação, melhores comunicações e programas eletrônicos podem curar problemas sociais. Eu não acredito nisso. Não há soluções tecnológicas simples para problemas sociais." (Clifford Stoll, em The Sillicon Snake Oil)

Cuidado! Embora o período acima soe algo ingênuo ou até mesmo simplório, há uma conspiração em curso para que o que o autor chama de "a trapaça do silício" adquira a força de um dogma. Stoll chama esse credo de "trapaça do silício" porque é no Vale do Silício (Sillicon Valley), na Califórnia, que estão localizadas as mais poderosas e ricas indústrias de informática do planeta, como a IBM, a Microsoft, a Intel. Direto de lá, embutido em engenhocas úteis como computadores, em novos meios de comunicação rápidos e divertidos como o e-mail, em pequenos milagres tecnológicos como a transmissão de som e de imagem em movimento, espalha-se um perigoso e pegajoso mantra: a tecnologia digital vai provocar uma "revolução".

É uma estranha revolução, essa. Nicholas Negroponte, o diretor do Media Lab do MIT (Massachussets Institute of Technology), uma das instituições universitárias de tecnologia de ponta mais importantes e ricas dos EUA, é um loquaz e entusiasmado pregador da "boa nova". Em seu livro Vida Digital (Cia. das Letras), ele aposta: "A tecnologia digital pode vir a ser uma força natural a conduzir as pessoas para uma maior harmonia mundial." E o que Negroponte entende por um mundo regido por essa "harmonia" é uma sociedade saciada de bens de consumo eletrônicos: "No início do próximo milênio, (...) nossas abotoaduras ou brincos poderão comunicar-se entre si por intermédio de satélites de órbita baixa e terão um poder de processamento maior do que o dos atuais micros. Nossos telefones não tocarão indiscriminadamente; eles irão receber, classificar e talvez até mesmo responder as chamadas, como um experiente mordomo inglês. Os meios de comunicação de massa serão redefinidos por sistemas de transmissão e recepção de informação personalizada e entretenimento." Para produzir tudo isso, é preciso que o "mundo dos negócios se globalize", e que se crie um "espaço digital contínuo de trabalho".

Negroponte escreveu isso em 1995, exatamente o ano do surto de popularidade da Internet. De uma hora para outra, tornou-se simplesmente necessário entrar na rede, adicionar um endereço eletrônico ao cartão de visitas, fazer uma homepage, comprar modems cada vez mais rápidos, entender o que raios significam grupos de sinais gráficos aparentemente sem sentido como http://www.hfjkfopds.com.br/ ~hlcjfikdlk_cuchd.htm etc. Os jornais começaram a dedicar uma generosa centimetragem, fora dos tradicionais cadernos de informática, para colunas que estabeleciam o quanto era pop e charmoso entender siglas como WWW, IRC, Usenet e notícias que informavam que fulano de tal ou a empresa x ou a instituição y tinha uma página na Internet.

A observação tímida lá de cima perdeu-se nesse burburinho de ufanismo, de deslumbramento e mesmo de franca propaganda. Diante da "era digital", "revolução digital", "vida digital" ou "o-que-quer-que-seja digital" anunciados por esses apóstolos, a única postura possível parecia ser a de perplexidade admirada, de reverência intimidada, de entusiasmo irrefletido. As desconfianças, as críticas, a falta de entusiasmo eram classificadas ora como ignorância (afinal, se você não é um membro da "elite digital", se você não passa suas noites plugado na rede, como é que você pode saber do que está se falando), ora como ranço passadista, retrógrado (qualquer semelhança desses adjetivos com aqueles que os entusiastas do neoliberalismo costumam atacar a esquerda não é mesmo mera coincidência).

Passada a primeira febre (você já tem um e-mail, sabe basicamente o que é http, já colocou sua homepage no ar ou viu páginas da Web o suficiente para enjoar), uma reflexão crítica faz-se ainda mais necessária. Em primeiro lugar, porque de fato a Internet é um novo meio de comunicação, poderoso e útil, e a tecnologia digital está mudando a forma de circulação de informação no mundo. Em segundo lugar, porque os donos do capital já tomaram a dianteira. São eles que estão vendendo - e bem - essa idéia de que o futuro digital que se anuncia é tão brilhante que serão precisos óculos escuros para ser encarado.

Um ano depois de aberto o serviço de Internet comercial no Brasil, ocorreu um fato incomum na história das comunicações brasileiras. O Grupo Abril e a Empresa Folha da Manhã, duas das maiores empresas de comunicação no Brasil, uniram-se sob o nome de Universo Online para criar o maior serviço online do país, provendo acesso e conteúdo. Hoje, um ano e meio depois, o UOL é o maior site em língua não-inglesa da Internet. Como aponta o historiador Theodore Roszak em The Cult of Information (University of California Press): "Volta-se ao fato econômico básico do problema: tecnologia de computadores, tanto de software quanto de hardware, é um bem à venda para os que podem comprar - e as máquinas mais poderosas continuam em mãos erradas."

Estranho destino para um meio de comunicação que começou acadêmico e anárquico. O que conhecemos hoje por Internet é um conjunto de meios físicos (computadores, fios, cabos submarinos) e não-físicos que permitem a comunicação digital, em diferentes formatos. A Internet é um produto da Guerra Fria. Em 1966 (lembrem-se, o ano do verão do amor), a Agência de Projetos Avançados de Pesquisa, Arpa, do Departamento de Defesa Norte-Americano inicia um projeto de conexão entre quatro centros de computação de universidades que desenvolvem pesquisa para a agência. A Arpanet, como ficou conhecida essa primeira rede, tinha importância estratégica: para os militares, informação descentralizada e comunicação ágil eram essenciais no caso de uma guerra nuclear (havia mísseis soviéticos de verdade apontados para as grandes cidades americanas).

Essa rede primitiva foi evoluindo rapidamente: em 1973 a rede atravessa o Atlântico e liga a University College da Inglaterra e o Royal Radar Establishment da Noruega aos já quinze pontos de conexão nos EUA, que incluem várias universidades, o MIT e a Nasa e, no ano seguinte, é inaugurado o primeiro serviço online comercial, o Telenet. No fim da década, criam-se dois serviços que tornariam a rede cada vez mais atraente para pessoas comuns: a Usenet, a rede de grupos de discussão, e o MUD (Multi User Dungeon), jogo de múltiplos usuários em tempo real. Mesmo que a interface, a "cara" da rede ainda fosse árida - só texto e comandos complicados - e que o computador ainda não tivesse virado um eletrodoméstico, o desenvolvimento tecnológico e a expansão no meio acadêmico colocava a rede numa direção completamente diferente da inicial: de arma estratégica para um novo meio de comunicação e entretenimento.

É na metade final dos anos 80 que se observa a generalização do uso de redes de computador na comunidade acadêmica. Já batizada de Internet, a rede pula de mil servidores em 1984 para 10 mil em 1987 e 100 mil em 1989. Na virada para os 90, países do Terceiro Mundo (México e Porto Rico em 89, Brasil, Chile, Índia e Coréia do Sul em 1990, Tunísia e África do Sul em 1991) e do Leste Europeu (Croácia, República Tcheca e Polônia em 1991) também ligam-se à Internet. Até este momento, o uso da rede é quase inteiramente gratuito para o usuário final (na verdade, bancado pelas universidades), com uns poucos serviços comerciais aqui e ali, e prioritariamente voltado para troca de informações entre cientistas, professores e alunos.

Os recursos da comunicação digital ainda eram basicamente limitados a arquivos de texto e de programas. Já era o bastante para criar toda uma nova subcultura, sobretudo entre jovens universitários, em geral norte-americanos, ou no mínimo com domínio da língua inglesa, desenvolvida nas nascentes "comunidades virtuais": as listas de discussão, as BBSs (acrônimo de Bulletin Board System), os jogos de múltiplos usuários (MUDs, MOOs). É nessa fase "heróica", para os netveteranos, que nasceram e se espalharam alguns conceitos que depois seriam repetidos à exaustão (e com pouquíssimo espírito crítico), sobretudo pela imprensa.

Um dos mais falaciosos estabelecia o fato aparentemente incontestável da "democracia" da rede. De fato, o espírito libertário, meio hippie, que embalou as primeiras comunidades virtuais celebrava a liberdade de expressão e a recusa violenta a qualquer tipo de censura. A própria arquitetura da rede, sem nenhum organismo central a controlá-la, favorecia o surgimento de organizações espontâneas e auto-geridas. A idéia de democracia surgia quase automaticamente e algumas experiências de comunidades virtuais tornaram-se verdadeiras tribunas-livres de discussão, de democratização e circulação de informação, longe da grande imprensa. Só que era uma democracia entre iguais, ou seja, quase que restrita à população universitária. Enquanto as universidades garantiam acesso e equipamentos falsamente gratuitos, era quase automático proclamar o meio como um exemplo de comunicação democratizada. Até a entrada maciça dos serviços comerciais.

Chega o comércio

Em 1992, Tim Berners-Lee, pesquisador do Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), criou a World Wide Web. Usando o conceito de hipertexto - arquivos de texto ligados de forma digital a outros arquivos de texto -, Berners-Lee criou uma ferramenta poderosa para disponibilizar informação na rede de forma rápida, ágil e, mais importante, bastante acessível para leigos e que permitia a inclusão de imagens, sons e até mesmo imagens em movimento. A criação da WWW (ou Web) foi decisiva para a popularização da rede. A "informação" disponível na rede passou a ter uma interface mais palatável, mais parecida com uma publicação em papel (não é à-toa que se fala em página da Web). A facilidade de programação da linguagem (Hyper Text Mark Language, ou HTML) provocou uma afluência de páginas pessoais, revistas, fanzines etc. (o que reforçou a idéia de "democracia" da rede). A Internet, agora mundial de fato, com serviços comerciais pipocando e crescendo em velocidade vertiginosa nos quatro cantos do globo, tornou-se uma espécie de imperativo: entre na rede ou fique por fora.

Os produtos da tecnologia digital passaram a brilhar na mídia da mesma forma que poucos anos antes brilhavam ídolos do cinema ou do rock: em 95, o grande acontecimento pop foi o lançamento mundial do novo sistema operacional da Microsoft, o Windows 95, com direito a jingle baseado em música dos Rolling Stones (Start Me Up, em alusão ao botão start, ou iniciar em português), filas de consumidores enlouquecidos no mundo inteiro e ampla cobertura dos meios de comunicação. Bill Gates, o dono da Microsoft, foi elevado à categoria de intelectual, profeta e guru da era digital. Assim como Negroponte, Gates também lançou um livro em 1995, A Estrada do Futuro. Em 784 páginas, o multimilionário também tenta nos convencer de que a Internet, a supervia da informação, os computadores pessoais são a salvação da humanidade. Também como Negroponte, mas de maneira mais explícita, ele advoga em causa própria: a Microsoft é a maior desenvolvedora de software do mundo e seu sistema operacional, o Windows, domina 80% do mercado de computadores pessoais. Não por acaso, Gates dobrou sua fortuna em 96 e hoje é o empresário mais rico do mundo, com um patrimônio avaliado em US$ 34,6 bilhões, segundo levantamento recente da revista Forbes.

Se a "revolução digital", tal como entendida pelos donos do "negócio Internet", é mais parecida com uma esperta e acachapante campanha de marketing da indústria de informática e de telecomunicações em escala global, isso não significa que, de fato, as possibilidades oferecidas pela comunicação digital tenham que ser desprezadas. Antes pelo contrário. Ainda é um meio elitista, é claro: para se conectar à rede, são necessários um computador, um modem, uma conta de acesso e uma linha telefônica, produtos ainda caros, além de um certo treino específico. Mas como aconteceu no passado com o rádio e a televisão, a tendência (e a urgência da indústria, para que mais gente possa consumi-los) é que esses aparatos sejam simplificados e barateados em pouco tempo.

O potencial anárquico e alternativo da rede continua lá, apesar de todos os esforços dos gigantes da comunicação em tornarem-se os únicos, maiores e mais completos provedores de informação. Publicar na rede prescinde de papel e distribuição: tornou-se muito mais barato ter um boletim, uma revista, um informativo. Se por um lado a população online ainda é restrita e elitizada, qualquer texto na rede tem leitores mais diversificados, espalhados pelo mundo inteiro. As tentativas de controlar o "conteúdo" da Internet até agora foram todas baldadas: o Congresso americano, por exemplo, não aprovou o Decency Act, que pretendia censurar a pornografia na rede.

O Brasil é o 19º país do mundo em máquinas servidoras na Internet, com uma população de 500 mil internautas. Ainda é pouco, frente aos 120 milhões de brasileiros, mas atinge mais pessoas do que a circulação em dias de semana dos grandes jornais do Rio e São Paulo. Já é o bastante para começar a pensar na contra-revolução digital.

Bia Abramo é jornalista.