Cultura

Como o Irã, um país marcado pelo fundamentalismo islâmico e pelos rigores da censura, consegue produzir os filmes mais livres e autorais de todo o mundo?

Nos últimos anos, uma questão vem instigando espectadores, críticos e realizadores de cinema: como o Irã, um país marcado pelo fundamentalismo islâmico e pelos rigores da censura, consegue produzir os filmes mais livres e autorais de todo o mundo. A resposta talvez esteja na própria pergunta – pelo que ela contém de verdade e pelo que contém de mentira.

A verdade: o fundamentalismo islâmico moldou o cinema iraniano de maneira definitiva. O isolamento fortaleceu a indústria local (o país produz até cinquenta filmes por ano); a xenofobia impediu a sedimentação de um modelo estrangeiro; a censura estimulou a experimentação e a metalinguagem.

A mentira: o Irã, assim como outros países muçulmanos, pode ser explicado exclusivamente pelo fanatismo religioso e suas consequências.

O cinema iraniano revela uma realidade muito mais complexa do que costumam mostrar as tevês ocidentais. No lugar das multidões sem rosto, dramas pessoais. Em vez de aldeias exóticas, metrópoles turbulentas.

Dois filmes que foram exibidos com sucesso nas salas do país e que já chegaram às locadoras da cidade são exemplares nesse sentido: Através das Oliveiras (1994), de Abbas Kiarostami, e O Balão Branco (1995), de seu discípulo Jaafar Panahi.

Ao lado de Mohsen Makhmalbaf, de Salve o Cinema (1995), eles são capazes de desfazer não apenas o mito de um país atrasado como também o de um cinema naif.

Por trás da aparente simplicidade dos argumentos de seus filmes, escondem-se idéias sofisticadas que costumam conduzir a uma profunda reflexão sobre o próprio cinema. As imagens tampouco têm algo de tosco: os planos funcionais e elegantes comprovam o completo domínio da técnica.

Kiarostami já se tornou conhecido do público paulistano por filmes como Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Close-Up (1980) e E a Vida Continua (1992) – exibidos dentro de uma retrospectiva dedicada à obra do cineasta iraniano pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 1994.

Através das Oliveiras, o primeiro a ser lançado em vídeo, talvez seja a mais bem-acabada tentativa de metacinema de todos os tempos. O filme mostra a trajetória de um cineasta (Mohamed Ali Keshavarz, único profissional do elenco) que tenta realizar um filme em uma região devastada por um terremoto. O enredo passa pela escolha do elenco entre os moradores do local, a busca de locações, as dificuldades enfrentadas nas filmagens.A trama se concentra no relacionamento entre o ator e a atriz escolhidos para protagonizar a produção. Hossein Rezai e Tahereh Ladania. Ele quer casar com ela; ela rejeita a proposta porque ele é analfabeto e não tem casa própria. A briga do casal atrapalha o andamento das filmagens: mesmo em cena, Tahereh simplesmente se recusa a falar com Hossein. O diretor precisa conciliar os dois para conseguir concluir o filme.

Como se vê pelo enredo, o cinema de Kiarostami está profundamente marcado pelo humanismo: seus filmes são um meio de conhecer, de gostar, de aproximar as pessoas. Não por acaso, essa função cabe ao personagem do cineasta em Através das Oliveiras.

Mas o que particulariza a obra de Kiarostami não está aí, mas sim na discussão que ele propõe sobre os limites entre cinema e vida. Da mesma forma que faz com seus personagens, o cineasta tenta reduzir as distâncias entre um e outro, ele brinca de embaralhar e eliminar as fronteiras.

Para isso, convoca atores amadores – recurso que suscitou comparações com o cinema neo-realista de Roberto Rossellini. Depois, joga-os em uma filmagem – o que inevitavelmente cria uma situação ambígua, que intriga o público.

A reflexão surge naturalmente: se alguém aparece na tela representando a si mesmo, ele estaria ali como pessoa ou como personagem? O ator estaria atuando ou apenas “existindo” em frente às câmeras? O espectador estaria assistindo um filme ou vendo a realidade?

Kiarostami parece querer dizer que o cinema não é maior ou menor que a vida; ela simplesmente cabe dentro dele.

Seus filmes parecem um chamamento para que o cinema volte a abrir os olhos para o que está à sua volta, reencontre a vocação perdida de espelhar e transfigurar a realidade.

O ensinamento foi seguido à risca pelo estreante Jaafar Panahi em O Balão Branco – prêmio da crítica internacional no Festival de Cannes de 1995, vencedor da Mostra de São Paulo naquele ano e maior sucesso de público do cinema iraniano no país (100 mil espectadores).

O filme se filia à corrente humanista de Kiarostami, busca seu assunto no cotidiano mais corriqueiro e põe o homem no centro da ação. Mas prefere adotar uma narrativa tradicional, linear, e passar ao largo das experimentações metalinguísticas de Através das Oliveiras.

O filme mostra a história de Razieh (Aida Mohammada Khani), uma menina de 7 anos que, como manda a tradição do país, quer ganhar um peixinho vermelho no réveillon. Com o apoio do irmão, ela ganha a última nota de dinheiro de sua mãe para comprar o presente. Mas, sozinha nas ruas da cidade grande, ela perde a nota e esquece o caminho de volta. Durante sua aventura, tem de enfrentar larápios que estão de olho no dinheiro e aprender a acreditar nas pessoas que se dispõem a ajudá-la.

Desse enredo aparentemente banal, Panahi extrai um delicado poema sobre a responsabilidade, a persistência, a confiança. Mas, sobretudo, sobre a perda da ingenuidade. Embora não fosse necessariamente a intenção do cineasta, o olhar de assombro da menina diante dos perigos da cidade encontra perfeito reflexo no olhar de espanto do espectador diante da beleza das imagens.

Ricardo Calil é jornalista.