Nacional

A globalização é uma realidade imposta pela concentração e centralização do capital, que conduz à formação de megacorporações e a uma ação competitiva selvagem. Ao tender para a globabalização, o capital faz renascer o socialismo como sua própria criação positiva, a negação de sua barbárie

A globalização é uma realidade imposta pela concentração e centralização do capital, que conduz à formação de megacorporações e a uma ação competitiva selvagem. Ao tender para a globalização, o capital faz renascer o socialismo como sua própria criação positiva, a negação de sua barbárie.

Há pelo menos duas vertentes de reação à ideologia e políticas neoliberais. Numa delas toma corpo a idéia de que a globalização não existe. Seria invenção de Reagan e das grandes potências, tendo em vista o domínio mundial pelos Estados Unidos ou a redivisão do mundo entre elas. O processo de concentração e centralização de capitais não teria novidade, já ocorrendo há bastante tempo e nada tendo a ver com tal invenção.

A característica fundamental da globalização apregoada pelos neoliberais – a livre mobilidade de capitais, mercadorias e força de trabalho – pode ser facilmente desmentida, na realidade, pelo protecionismo, a formação de blocos regionais e a discriminação e superexploração da força de trabalho migrante. Tratar-se-ia, então, de desqualificar a globalização e sua irreversibilidade. Algo que não existe não pode ser irreversível.

Nem mesmo os capitais circulariam com a liberdade anunciada. O capital produtivo estaria restrito à compra das indústrias nacionais em dificuldade. Só o capital especulativo teria livre mobilidade. Assim mesmo, ancorado na dívida pública dos Estados nacionais, colocando todos os países à mercê de uma crise financeira mundial sem precedentes.

Viveríamos sob imensa irracionalidade econômica, orientada pelo Consenso de Washington, cujo objetivo é abrir os mercados dos países mais pobres para o domínio das corporações transnacionais. Consequências: mais de um bilhão de trabalhadores desempregados ou subempregados, rebaixamento geral dos salários e contração dos mercados.

Diante desse quadro, a saída para países como o Brasil seria aproveitar as contradições existentes entre as grandes potências econômicas e desenvolver sua economia com recursos próprios e decisões independentes, aplicando políticas que evitassem o desemprego e reduzissem a pobreza.

Embora os adeptos dessa vertente não acreditem na globalização, parecem aceitar que exista algo mais no ar além da velha lógica do capital. Apontam acertadamente muitos aspectos da nova irracionalidade econômica, mas não a associam à globalização. Como os neoliberais ou neoclássicos a consideram o supra-sumo da modernidade, preferem renegar sua existência para não se confundir.

Idêntica perplexidade ocorreu no final do século passado e início do atual diante do surgimento do imperialismo. Então, como agora, uma parte dos socialistas fez coro com o capital, capitulou ante a pujança das empresas monopolistas, sonhou que a luta de classes passara, supôs que a pauperização era um dos delírios de Marx e acreditou que o capital era capaz de resolver seus próprios problemas e estabelecer um mundo de paz.

Em contraposição, uma parcela desprezou o imperialismo como novo patamar do desenvolvimento capitalista, enquanto outra convenceu-se de sua realidade e de suas consequências bélicas e coloniais, procurando transformá-las em revolução social. Embora não haja espaço para tratar dessa perplexidade, vale a pena lembrá-la como ponto de partida dos argumentos que encaram a globalização e suas conseqüências como um dado vital da realidade.

Não é novidade o processo de concentração e centralização de capitais, nem sua irracionalidade econômica. Também não é novidade que tal processo tende à globalização. Esta surge com a acumulação primitiva do capital e desde então evolui num movimento espiral cíclico cada vez mais veloz. Neste movimento, no qual a concentração e a centralização alcançam patamares cada vez mais elevados, o imperialismo foi a primeira grande onda de homogeneização internacional das estruturas capitalistas, sem no entanto conformar um mercado mundial único.

Após a Segunda Guerra Mundial, em discrepância com a expansão dos Estados de bem-estar social, com a independência dos povos coloniais e com o reforçamento de seus Estados e capitalismos nacionais, surgem megacorporações transnacionais, cuja dinâmica de reprodução ampliada lhes impõe a necessidade de um mercado livre de fronteiras. É dessa necessidade que brotam a ideologia e as políticas de Reagan e Thatcher.

A globalização tem por base, pois, não uma ou outra política econômica, um ou outro consenso de grandes potências, mas a própria acumulação do capital, que leva ao desenvolvimento de suas forças produtivas, de suas relações de produção e de suas contradições internas, atingindo o mundo todo, forçando as comportas para a criação de um mercado de livre competição entre grandes empresas. As corporações transnacionais são o elemento mais ativo desse processo que tende a mundializar a circulação de capitais, mercadorias e força de trabalho, tornar supérfluas as nações e conformar um mundo homogêneo econômica e culturalmente.

Para manter lucros compatíveis com as necessidades de acumulação, elas precisam utilizar-se plenamente das condições de rentabilidade. Isto pode dar-se com a combinação nem sempre harmoniosa dos avanços científicos e tecnológicos; da produtividade; da produção em massa; da segmentação geográfica do processo produtivo; do controle à distância da produção e da circulação dos insumos e mercadorias; do transporte rápido de grandes massas e volumes de mercadorias e valores; da padronização das mercadorias, dos hábitos de consumo e dos sistemas de distribuição e venda, tanto pela imposição competitiva, quanto pela difusão massiva das pretensas excelências de determinados produtos, hábitos e sistemas comuns aos países centrais.

A globalização é, pois, uma realidade imposta pela concentração e centralização do capital, que conduz à formação de megacorporações e a uma ação competitiva selvagem, primeiro delas contra todos e, depois, entre elas. Para combatê-las, assim como à sua irracionalidade econômica, não se pode desdenhá-las.

Pequena radiografia
Ao perseguir a globalização, o capital conduz o mundo a um modelo de trabalho em que o desemprego tecnológico convive com formas de exploração típicas do período primitivo. A flexibilização do mercado de trabalho somente evita que as taxas de desemprego subam muito rapidamente, mas impõe longas jornadas por salários iníquos, tanto nos países ricos quanto nos pobres.

A globalização acelera as desigualdades entre países e entre as camadas sociais dentro de cada país, fere a soberania das nações e cria as condições para que simples operadores do sistema financeiro internacional levem bancos e países à bancarrota, por meio do manejo de investimentos especulativos e do endividamento externo.

A ação das transnacionais modifica a estrutura concorrencial do próprio capitalismo. Seu cálculo econômico e seus padrões competitivos são estabelecidos considerando o globo como mercado. Suas decisões têm em vista seus interesses mundiais. Em função de uma localização ótima para a rentabilidade, fábricas inteiras são desmontadas, segmentadas e transferidas de um país a outro, pouco importando que isto quebre empresas locais e cause desemprego e problemas produtivos e fiscais.

No entanto, para alcançar a completa liberdade de circulação de capitais, mercadorias e trabalhadores, não bastam a força e a vontade das corporações capitalistas. Seria preciso eliminar as legislações nacionais que restringem os investimentos, a transferência dos lucros, os financiamentos e a compra e venda de ações. As taxas de câmbio deveriam flutuar livremente e as diferentes economias deveriam estar estabilizadas para que as transnacionais pudessem detectar com facilidade as vantagens comparativas de cada região.

As taxas que encarecem artificialmente os produtos importados deveriam ser reduzidas drasticamente. Os subsídios e isenções, que rebaixam artificialmente os custos e tornam os produtos internacionalmente competitivos, deveriam ser cortados. Os regulamentos trabalhistas deveriam ser extintos, permitindo a contratação de trabalhadores pelo menor salário e maior jornada. E os Estados nacionais deveriam evitar gastos orçamentários com obrigações sociais que gravam as empresas.

Em suma, todos os regulamentos nacionais sobre as formas de circulação de capitais, mercadorias e força de trabalho deveriam ser desfeitos, como pretendia o Consenso de Washington, desnudando o comércio internacional de qualquer aparência de concorrência entre nações e tornando-o um simples campo de competição entre empresas.

O desmonte do campo socialista, a capitulação ideológica e política de parcelas significativas dos partidos socialistas e comunistas e a perplexidade que paralisou o movimento dos trabalhadores pareceram o momento ótimo para a ofensiva neoliberal sujeitar o mundo às necessidades das corporações capitalistas. Não havia resistências perceptíveis e a história parecia haver se transformado na eternidade liberal.

Apesar disso, as desregulamentações promovidas pela globalização agravaram a irracionalidade econômica do capital, gerando novas resistências fora e no interior dele próprio.

Como a liberdade total do mercado tende a destruir os processos produtivos locais, desorganizar as finanças, desestabilizar as nações e criar uma exclusão social sem precedentes, a desregulamentação não é completa nem mesmo nos países centrais. Por outro lado, os Estados nacionais subordinados, artificialmente mantidos pelos bancos dos países centrais, têm sofrido graves convulsões sociais e políticas e correm o perigo de desabar toda vez que aqueles bancos atrasam, restringem ou suspendem a “ajuda” e a “cooperação”.

A circulação de mercadorias continua condicionada por travas nacionais, como salários, tarifas, tributos, juros e câmbio, historicamente relacionados com os interesses das classes locais. Não por acaso, contra seu próprio discurso de livre-comércio, os Estados centrais praticam um crescente protecionismo, subsidiam sua agricultura e carreiam investimentos públicos para setores estratégicos.

O desemprego massivo também tem obrigado os Estados centrais a desenvolver uma prática contrária à livre circulação das pessoas. São crescentes as restrições legais, coercitivas e repressivas à imigração de trabalhadores estrangeiros. Os Estados Unidos construíram um verdadeiro muro, ainda não tão famoso quanto o de Berlim, para evitar a travessia de sua fronteira com o México. A Europa impõe restrições draconianas para as viagens de trabalhadores procedentes da África, América Latina e Ásia.

A exclusão de nações e grupos sociais tende a tornar mais agudos os conflitos. Hoje, são comuns não somente os conflitos sociais, ideológicos e políticos. Tomam vulto os conflitos étnicos e de caráter nacionalista, raciais e religiosos e as guerras de gangues. O banditismo assume contornos de sociedade organizada em termos internacionais e nacionais. As máfias ocupam posição destacada na burguesia de cada país e transformam o tráfico de entorpecentes num dos negócios mais lucrativos e destrutivos da atualidade. A violência se dissemina em cada país e pelo mundo de uma forma capilar e endêmica.

Na Europa, os trabalhadores são empurrados contra a parede para aceitarem a perda de todas as conquistas do Estado de bem-estar social, não lhes restando outra alternativa senão realizar greves selvagens e batalhas que pareciam fatos de um passado remoto do conflito capital/trabalho. Segmentos prejudicados das burguesias periféricas pressionam seus Estados a adotarem políticas que se chocam contra a globalização. Resistem ao estabelecimento de regras uniformes para todos os países e defendem a diversidade dos modelos econômicos.

Assim, embora as nações, classes e desigualdades que conformaram a estrutura mundial capitalista concorrencial sejam o trampolim necessário ao processo da globalização, elas se tornam, ao mesmo tempo, obstáculos a tal processo. Para completar-se, a globalização capitalista teria que quebrar aquela estrutura e criar outra, na qual um mercado mundial único e homogêneo deveria ser composto por centros dinâmicos, mas contraídos, e periferias marginais, ou excluídas, muito amplas.

Os centros dinâmicos, com as novíssimas tecnologias informáticas e telemáticas, produziriam o máximo de bens e serviços de última geração, com um mínimo de força de trabalho. Um número reduzido de capitalistas controlaria todo o processo, operado por um número também restrito de operários. As periferias marginais ou excluídas seriam constituídas por grupos errantes de produtores e negociantes autônomos de baixíssima rentabilidade e por massas imensas de desempregados e deserdados. Esta barbárie faz parte, pois, da lógica do capital globalizado.

O positivo ato de negar
O neoliberalismo enfatiza a irreversibilidade da globalização, da revolução científica e tecnológica e da elevação da produtividade, diante das quais o moderno é a adaptação e a subordinação. Procura, assim, não só omitir ou esconder suas contradições, como negar qualquer alternativa à globalização capitalista.

Mas, agora já não é difícil enxergar, na nova onda globalizante, os antagonismos das tendências do capital, apontados por Marx desde meados do século passado. Difícil é, como naquela época, deslindar essas disparidades e buscar nelas, não em qualquer utopia salvadora, as possibilidades de libertação e emancipação dos trabalhadores e dos povos.

A evolução das corporações coloca em evidência toda a capacidade destrutiva do capital. Mas aponta também a possibilidade organizativa de desenvolver a ciência e a tecnologia, otimizar os fatores produtivos, superar a economia da escassez, proteger a natureza, liberar os homens do trabalho, ampliar o tempo livre das pessoas, atender as necessidades materiais e culturais de todos os seres humanos e intensificar a livre movimentação e o intercâmbio entre os povos.

No momento em que o nível das forças produtivas torna possível libertar o homem do trabalho obrigatório e proporcionar-lhe uma vida digna e culturalmente rica, a globalização exacerba os absurdos da apropriação privada e concentrada da riqueza socialmente produzida e da exclusão social da maioria da população. Nunca como agora, o capitalismo gerou tantos opostos, formados pelas massas proletárias imensas, da classe operária ainda empregada às crescentes levas de desempregados e marginalizados.

Desse modo, ao tender para a globalização, o capital faz renascer o socialismo como sua própria criação positiva, como a negação de sua barbárie, de sua exploração, de sua apropriação privada. Esta é uma realidade diferente daquela que a esquerda vivia no final dos anos 80, quando o auge da ofensiva neoliberal se confundia com a vitória do capital sobre o socialismo de comando do Leste europeu, permitindo-lhe mascarar suas contradições e criar uma profunda perplexidade entre os socialistas.

Hoje, a ideologia neoliberal ainda é hegemônica e mantém a ofensiva, mas a irracionalidade econômica da globalização torna-se cada dia mais evidente, trazendo consigo seu oposto, sua negação. Recoloca, pois, as condições para os deserdados do capital retomarem o socialismo não somente como sua matriz ideológica, como seu referencial de valor e sua esperança, mas também como seu objetivo material.

O socialismo é a ideologia que melhor pode enfrentar o neoliberalismo, simplesmente porque os homens não transformam em nova realidade as idéias que não estejam semeadas na própria realidade existente. A realidade do capitalismo, no Brasil como em outras partes do mundo, é a da socialização da produção, da miséria, da pobreza e dos homens, em contraste com a apropriação privada e concentrada da riqueza.

Assim, o capital transnacional se vê diante não só da resistência do próprio capital à globalização. Assiste surpreso ao renascimento de seu inimigo mortal, obrigando-se a movimentos nem sempre sutis para manter a hegemonia. A recuperação da social-democracia européia, assim como da opção ideológica keynesiana, com seu Estado intervencionista, são manifestações dessas dificuldades internas e da necessidade de enfrentar, mais uma vez, o fantasma socialista em seu próprio campo.

Para os socialistas, portanto, não basta alegrar-se com seu ressurgimento e com as dificuldades da globalização. E, muito menos, acreditar que os capitalismos nacionais, sob o comando keynesiano da social-democracia, podem resistir à globalização e superá-la. Ao resgatar a comprovada análise socialista sobre as tendências históricas do capital, a esquerda e os trabalhadores precisam reiterar o socialismo como negação da lógica perversa do capital e como afirmação de uma outra sociedade.

É verdade que parte dessa esquerda ainda está abalada pela derrota e procura outras ideologias para se contrapor ao neoliberalismo. Procura reviver ideologias nacionalistas ou variantes menos selvagens da ideologia burguesa, ou retocar a ideologia socialista, adjetivando-a utopicamente. Em qualquer dos casos, pode tornar-se presa fácil desse neokeynesianismo, do mesmo modo que se deixou iludir pelo ufanismo neoliberal.

As diversas variantes da ideologia burguesa são incapazes de erigir-se como alternativas reais à globalização neoliberal. O máximo que elas podem produzir, como nas décadas de 10 e de 30 deste século, são caminhos alternativos dentro do próprio capital, acirrando as contradições intercapitalistas e levando à guerra. Quem supõe que isto seja uma paranóia deveria dedicar-se ao estudo da história das duas guerras mundiais e, também, do modus operandi dos capitalismos americano e europeu.

Por outro lado, a maquiagem do socialismo o coloca, desde logo, numa posição defensiva. É preciso, ao contrário, reafirmar o socialismo como sociedade de trânsito, na qual seu Estado e governo trabalham para liquidar a miséria e a pobreza e criar condições para o fim da exploração e opressão capitalistas. Neste momento, além disso, em países como o Brasil, o socialismo é instrumento para impedir o esmagamento da nação, a restrição acelerada das liberdades e da democracia, a liquidação da cultura, o desemprego, a pauperização e o sucateamento do parque produtivo nacional.

O socialismo, portanto, apesar dessas preocupações e tendências positivas, terá as marcas de seu tempo. Por isso, para tornar-se uma força material e, ao mesmo tempo, simbólica e de esperança para as massas do povo, não pode perder-se no envergonhamento de seus problemas. Sem mascará-los ou mistificá-los, só pode superá-los perseverando nas realizações do seu humanismo social, enfatizando seus traços básicos e ancorando-se numa estratégia que, partindo das condições reais do desenvolvimento capitalista, trate francamente da questão do poder político e da socialização da propriedade dos meios de produção.

A inserção subordinada

A burguesia brasileira aceitou a globalização como seu futuro radiante. Em nome da nova modernidade, impôs ao país um aventureiro e, posteriormente, um esquerdista postiço para adequar o país ao Consenso de Washington, produzindo mudanças em sua estrutura econômica, na composição das classes sociais, na estrutura do Estado e na hegemonia ideológica e cultural.

A reestruturação empresarial, estimulada pela feroz competição do capital externo, abertura econômica e privatização do patrimônio estatal, muda a conformação dos diferentes setores da economia brasileira. Os ramos e setores subordinados ao capital transnacional crescem e se modernizam. Por outro lado, os setores não-associados estão quebrando e sendo sucateados.

Dessa reestruturação emergiu um novo setor burguês, ligado aos ramos globalizados, que assume a hegemonia e para o qual o Brasil e seu povo estão no melhor dos mundos. É não só subordinado ao capital internacional, como perdeu suas próprias raízes nacionais e só raciocina em termos globais. Por seu turno, o setor burguês em ruína prefere acusar os asiáticos, e não as grandes corporações ou a política neoliberal, por sua situação.

Entre as classes médias há, também, uma camada emergente, mas a esmagadora maioria entra, apesar do sobretrabalho e dos expedientes de resistência passiva, no campo dos perdedores, sofrendo um forte processo de pauperização, com desemprego, inadimplência e queda generalizada nos padrões de consumo e de vida.

A classe dos trabalhadores assalariados – industrial, comercial e de serviços – diminui seu peso relativo. Dispersada geograficamente, vê a substituição dos não-qualificados por qualificados e instruídos, embora isto não represente necessariamente salários maiores e melhores condições de trabalho para os empregados. Os desempregos conjuntural e estrutural convivem no mercado de trabalho, impondo deslocamentos crescentes de trabalhadores para a classe dos marginalizados.

Os marginalizados aumentam em termos relativos e absolutos. Constituem, na prática, a quarta grande classe da sociedade brasileira, composta basicamente por pobres e miseráveis, muitos dos quais obrigados a apelar para formas anti-sociais de redistribuição de renda e, como num passado não muito distante, a transformarem-se em jagunços, agora não mais para a defesa dos latifúndios, mas para a distribuição das drogas e o contrabando de armas.

Associado a esta desagregação social, persiste o desmonte do Estado nacional. Há muito privatizado pela burguesia, torna-se instrumento exclusivo da subordinação do Brasil. Sob a gerência de uma intelectualidade venal, manobrada pelos tradicionais caciques políticos das classes dominantes, perde totalmente sua capacidade de concentrar e investir poupança, permite que a burguesia continue a impor ao país suas altas taxas de consumo, intensifica a exclusão social e o autoritarismo político e incentiva a mercantilização e a descaracterização da cultura.

Esses novos traços predominantes da sociedade brasileira refletem, ainda, o descenso dos movimentos sociais e a debandada política dos socialistas e anticapitalistas, em virtude da confusão ideológica e da perplexidade geral em que afundaram.

Sair da perplexidade

Agora, porém, que a inserção subordinada, mascarada pela estabilização monetária, mostra sua natureza e conseqüências, e que o socialismo ressurge das cinzas, talvez seja mais fácil sair da perplexidade e forjar a força capaz de barrar o avanço neoliberal. Mas, isto depende da firmeza da luta ideológica e cultural, da adoção de uma estratégia democrática e popular que leve em conta as novas condições criadas pela globalização e da adoção de táticas que permitam sair da defensiva estratégica e retomar a iniciativa.

É pacífico que a luta ideológica e cultural é contra o neoliberalismo. Esta ideologia da modernidade conservadora em escala global foi assimilada em toda a linha pela burguesia brasileira e seus intelectuais, em grande parte porque, ao contrário do velho liberalismo, não é mais uma idéia fora do lugar. A modernização globalizada que a sustenta, ao romper com qualquer interesse nacional, a diferencia das anteriores e torna transparente a velha natureza associada e subordinada do capitalismo brasileiro.

Assim, a burguesia brasileira desnuda-se dos paramentos nacionais para cumprir seu papel mercenário. Esmaga seus próprios setores intermediários, as classes médias e os trabalhadores, e os empurra para a barbárie em que já viviam os marginalizados. A ilusão modernizante com que narcotiza o povo não possui base de sustentação nessa realidade conflituosa, mas é destilada por um poderoso oligopólio de comunicação e produção ideológica e cultural.

Nestas condições, para derrotar o neoliberalismo, a esquerda terá que apresentar crescente nitidez ideológica socialista, incorporando a ela a força da cultura nacional e popular. Este é o fator de coesão não só para disputar a hegemonia em torno de valores e ideias, mas também para elucidar as linhas da estratégia democrática e popular de disputa do poder político e quebra do domínio da difusão ideológica.

A questão estratégica central é a retomada, com vigor, da idéia de conquistar e transformar o poder de Estado. O neoliberalismo disseminou a falsa ilusão de que o Estado deveria ser reformado por não ser mais necessário. Porém, ao mesmo tempo que o destrói para impedir que cumpra suas finalidades sociais, jamais o utilizou tanto para subordinar o país às transnacionais.

O atual Estado brasileiro foi de tal modo privatizado, corrompido e carcomido que se tornou praticamente impossível reformá-lo para servir aos interesses do povo. É necessário revolucioná-lo. Não estão em discussão aqui as possíveis e variadas táticas a empregar para alcançar tal objetivo. Embora dependam de uma adequada análise teórica e seja necessário estar aberto para qualquer hipótese, este é um problema a ser decidido pela luta social, pela postura dos contendores principais e pelo grau de acumulação de forças de um lado e outro.

O que está em discussão é a necessidade de criar uma unidade política poderosa em torno da visão de um Estado que sirva aos interesses das maiorias e não das atuais classes dominantes. Um Estado que, para ser eficiente e realizar uma adequada coordenação entre poder público e setor privado, entre planejamento e mercado e manter um forte papel orientador e gestor, seja capaz de definir claramente as áreas estratégicas da economia sobre as quais vai estabelecer sua propriedade e as áreas cujo espaço pode ser ocupado pela propriedade privada e por outras formas de propriedade (públicas, coletivas, mistas).

As próprias políticas neoliberais estão demonstrando que, em países como o Brasil, a propriedade estatal é essencial para alavancar programas de crescimento econômico que tenham em vista atacar a miséria e a pobreza e redistribuir a renda de forma mais eqüitativa. Sem tal base econômica, o Estado terá dificuldade para restringir a renda e o consumo desmesurado das camadas ricas e alcançar taxas de poupança e investimento que lhe permitam realizar aqueles programas.

Portanto, o que está em discussão é a necessidade de ter um Estado eminentemente democrático e popular, capaz de elaborar e legitimar um projeto nacional que reverta a atual política de total abertura econômica e completa privatização e que mantenha a soberania do país no processo de globalização, enfrentando as pressões, tanto dos Estados centrais quanto das corporações capitalistas.

Em outras palavras, trata-se de um Estado radicalmente diferente do atual. O que impõe à esquerda, especialmente ao PT, o entendimento de que não pode ser um Estado dirigido ou hegemonizado por algum segmento da burguesia brasileira. Nas atuais condições dessa classe, não há qualquer possibilidade de que um de seus setores assuma a direção contra a inserção subordinada do Brasil na ordem globalizada. O máximo que pode acontecer, desde que o movimento dos trabalhadores e dos marginalizados tenha suficiente força de atração, como ocorreu entre 1978 e 1989, é que alguns descontentes se aliem timidamente ao movimento dos de baixo.

Estamos falando, pois, de um Estado que tenha à frente as classes sociais trabalhadoras e, sob o impulso da participação democrática, popular e socialista, crie uma dinâmica interna que leve ao surgimento de novas estruturas sociais e políticas voltadas para superar o capitalismo.

Sem esclarecer as questões acima, dificilmente se poderá definir as políticas de aliança estratégica entre os trabalhadores, os marginalizados e as classes médias, ou de alianças táticas com setores da burguesia. E, muito menos, definir os diferentes aspectos táticos da luta contra os governos neoliberais, incluindo aí as táticas eleitorais e a conquista de governos municipais, estaduais ou central. Em resumo, sem enfrentá-las, será muito difícil sair da perplexidade atual e domar as forças da globalização.

Wladimir Pomar é jornalista e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo