Cultura

Che – Uma biografia, de Jon Lee Anderson (Editora Objetiva, 920 páginas, 1997) Che Guevara – A vida em Vermelho, de Jorge Castañeda (Companhia das Letras, 517 páginas, 1997)

Ao penetrar na região do lago Tanganica, no então Congo – próximo à fronteira com Ruanda e Burundi, onde se desenrola a ação do clássico de Joseph Conrad No coração das trevas –, em abril de 1965, Ernesto Che Guevara logo conheceu um dos grandes inimigos que enfrentaria na sua fracassada tentativa de ajudar a guerrilha congolesa: a dawa. Trata-se de uma feitiçaria na forma de poção mágica, sem a qual os guerrilheiros se recusavam a lutar, pois acreditavam que ela os tornava invulneráveis. Vários congoleses garantiam ao Che terem sido atingidos por balas, mas graças à dawa estas batiam em seus corpos e caíam no chão. Com a dawa não havia o que temer, pois tornavam-se totalmente imunes, e a vitória dos rebeldes ficava garantida.

Além de ser um fator inesperado para os cubanos que foram lutar no coração da África, a dawa mostrou ser um elemento de grande importância para o ânimo e o moral dos rebeldes locais. Se perdiam uma batalha era porque a dawa não tinha sido bem feita pelo muganga (feiticeiro), ou porque quem a recebeu não teve fé suficiente. Che acabou por resignar-se e ter um muganga na sua coluna guerrilheira. Foi uma das poucas concessões que fez durante a vida.

A ironia é que Che parece ter acreditado possuir a sua própria dawa. Em vez de primitiva e mágica, a dawa do Che unia fé e razão. A fé na vitória da Justiça, da verdade e dos pobres, tendo à frente um compacto e invencível exército guerrilheiro sustentado pela racionalidade do igualitarismo, por uma disciplina a toda prova e uma estratégia militar superior. Tudo isso teria como resultado a construção de uma nova humanidade.

Tal força tiveram essas idéias para Guevara que ele agiu como se também tivesse a proteção da dawa: era inatingível. Nada o dissuadia de sua intransigência e certeza em relação à idéia do foco guerrilheiro, do poder revolucionário da luta armada, da capacidade política de uma elite militarizada e coesa ideologicamente e da justeza e correção de sua causa. Nem os seguidos fracassos das tentativas concretas de colocar em prática tais idéias, nem os erros evidentes cometidos em nome dessas concepções, nem as repetições desses erros. O Che parecia acreditar que só seria vulnerável se faltasse ao compromisso assumido com seus princípios. Seguindo-os, as balas cairiam no chão ao atingi-lo, o imperialismo seria incapaz de derrotá-lo e o povo, com os camponeses à frente, o apoiaria até a vitória final.

“Che Guevara não morreu”

Hoje, 30 anos após a sua morte, o Che está em voga novamente e sem dúvida um dos fatores que colaboram para isso é que Guevara foi um homem que acreditou. Acreditou com uma fé absoluta em algumas idéias hoje pouco populares: o socialismo e o comunismo, o internacionalismo, a solidariedade militante, a luta armada, o desprendimento material e uma moral ascética. O que chama a atenção é que, se dependesse só de suas idéias, provavelmente o Che seria muito impopular hoje, época em que o parâmetro global é, mais do que nunca, o que cada um pode comprar.

No entanto, nos neoliberais anos 90, o Che volta à tona e parece dar razão ao compositor brasileiro Sérgio Ricardo, que no fim dos anos 60 cantava (sem ficar vermelho): “Che Guevara não morreu, não, não morreu, aleluia”. Depois do auge dos movimentos de contestação por todo o mundo em 1968, quando seu retrato tornou-se um ícone internacional da rebeldia, e de um certo ostracismo nos anos 70 e 80, o cubano-argentino que ao lado de Fidel simbolizou a Revolução Cubana parece dar a volta por cima. Virou até marca de cerveja.

Uma das melhores consequências desse fenômeno é o surgimento de boas biografias do personagem, sempre esmagado entre o panegírico cubano e o histerismo anticomunista ianque. No Brasil, até agosto último, duas obras de qualidade foram lançadas: Che – Uma biografia, do norte-americano Jon Lee Anderson, e Che Guevara – A vida em Vermelho, do mexicano Jorge Castañeda. São dois trabalhos de fôlego - e que exigem fôlego também do leitor -, resultados de anos de pesquisas, beneficiadas pela liberação de muitos documentos, até então secretos, dos diversos governos que se envolveram na trajetória de Che, seja para apoiá-lo, seja para persegui-lo. Talvez somente em Cuba parte da importante documentação que ajudaria a aclarar alguns capítulos de sua vida ainda seja mantida sob sigilo.

Ambos os trabalhos cumprem a tarefa de nos mostrar a singular trajetória do jovem argentino que sai da terra natal em busca de aventuras e novos horizontes, filho de uma família tradicional mas em decadência, que terá a asma como companheira de toda a vida; que desde a juventude mostra um forte antinorte-americanismo, um olhar solidário para os pobres e excluídos, uma força de vontade férrea, uma fé em si mesmo admirável; que vaga pela América Latina como que em busca de uma causa, com algumas idéias já em ebulição; e que encontra Fidel Castro no México em meados de 1955. A partir daí sua vida muda e começa a surgir o Che, o comandante da Revolução Cubana, o herói de Santa Clara, o mártir de La Higuera.

Informação e interpretação

Anderson traça um retrato minucioso e detalhado de Guevara. Para isso teve acesso a fontes inéditas, em grande parte fornecidas pela segunda esposa do Che e mãe de quatro de seus cinco filhos, a cubana Aleida March, e morou três anos em Cuba. No total, sua pesquisa durou mais de cinco anos.

O trabalho não foi em vão. Dele surge talvez o mais completo quadro da vida de Che e de sua trajetória política na Revolução, no governo de Cuba e nas articulações de guerrilhas em outros países, tanto aquelas nas quais ele participou pessoalmente (Congo e Bolívia), quanto nas que não participou (Guatemala, República Dominicana, Haiti, Venezuela, Peru, Argentina). Sua narrativa sobre a infância e a juventude de Che, sobre a disputa pela hegemonia política no movimento revolucionário durante a luta para derrubar a ditadura de Batista em Cuba e o papel que Che desempenhou nela – colaborando para que a guerrilha sobrepujasse os setores urbanos –, sobre a política de “exportação” da revolução para a América Latina, apoiada por Guevara desde a vitória na Sierra Maestra, além dos capítulos finais relativos à verdadeira odisséia guevarista no Congo e na Bolívia, permite que o leitor forme uma opinião muito bem embasada sobre o nosso personagem.

E é esse o ponto forte de Anderson. Mais do que analisar, ele dá ao leitor as informações para fazê-lo por conta própria. Isso não quer dizer que o autor se exima de ter também as suas opiniões e pontos de vista. Um dos mais discutíveis e que permeia toda a obra é uma certa predisposição a enfocar quase toda a trajetória política de Che a partir de um suposto marxismo/comunismo que estaria presente nele já desde muito cedo. Desta forma, o autor parece sempre estar buscando em fatos passados explicações e justificativas que sustentem o radicalismo político e ideológico que o Che manifestaria, principalmente, a partir de sua ascensão ao governo revolucionário em Cuba.

Já Castañeda enfatiza a interpretação mais do que a descrição. Seu livro é bem menos informativo em relação ao protagonista e bem mais analítico sobre sua vida, idéias e sobre o próprio mito Che Guevara. Claramente, Castañeda não teve acesso à mesma profusão de fontes pessoais e privadas que Anderson, mas provavelmente devorou e digeriu tudo o que já foi escrito sobre Che, venha de onde vier, diga o que disser.

Mas a grande novidade da obra do mexicano é que ele busca dar uma versão para a morte de Che: a de que ele foi deixado ao seu destino por Fidel e por Cuba. Estes não foram responsáveis por sua morte – se houve um responsável foi o próprio Che –, mas não a evitaram quando tinham essa possibilidade. Che já havia salvo pelos cubanos no Congo. Poderia ter sido salvo novamente na Bolívia? Difícil saber, mas não resta dúvida de que a idéia de Castañeda contribui para demonizar um pouco mais a figura de Fidel, aumentando seu aspecto maquiavélico, no mau sentido.

Castañeda faz um relato correto – porém bem menos detalhado que o de Anderson - da juventude de Che e de sua participação na guerrilha vitoriosa. Mas é na análise de Guevara como principal responsável pela economia cubana entre 1959 e 1963 (ele foi presidente do Banco Nacional de Cuba e ministro das Indústrias) e do papel importantíssimo que jogou nas relações Cuba/URSS, que o livro cresce.

Sua exposição das ortodoxas teses econômicas de Guevara – sempre submetidas mais aos princípios ideológicos do que aos econômicos – e das suas opiniões e idéias sobre a esquerda latino-americana, o socialismo soviético e da Europa Oriental, dão ao personagem uma dimensão política diversa aquela normalmente associada a ele.

De Cuba para o mundo

Juntando-se as duas obras temos um retrato bastante completo do Che e de sua época. Trata-se um personagem tão rico e de uma época tão fértil em transformações e em momentos dramáticos, que o resultado é uma aventura como poucas: pessoal, política, militar, cultural, ideológica. A trajetória de Che engloba de certa forma toda uma etapa da história mundial do pós-guerra. Ela está emaranhada - e acaba por colocar novos ingredientes nessa mistura - na Guerra Fria, nas lutas anticolonialistas da África e Ásia e na revolução cultural que marca os anos 60. E o que salta aos olhos é como um país tão pequeno e pobre como Cuba e um bando de barbudos audaciosos foi capaz de desempenhar um papel tão importante nesta história.

Para entender isso, assim como para entender a trajetória de Che, é preciso pôr em relevo um outro personagem: Fidel Castro. Não há exagero em dizer que Fidel foi o fator que mudou a vida de Che. Deu-lhe um rumo. Canalizou o extraordinário potencial pessoal de Guevara para uma causa, para um país, para um destino.

O Che, que queria tanto acreditar, viu em Fidel o líder em quem podia acreditar. Confiou em Fidel desde o primeiro momento e parece ter confiado até o final. Sua amizade resistiu às mais duras – e por vezes decepcionantes – provas políticas e pessoais.

E Fidel deu-lhe apoio até o final, mesmo quando acreditava que Che podia estar se metendo em aventuras trágicas, como no Congo e na Bolívia. Da primeira ele escapou. Da segunda não.

Essa relação pessoal talvez tenha um peso maior do que se possa imaginar para o ressurgimento do mito de Che. Porque o Che mitificado nas camisetas, pôsteres e outros produtos é antes de mais nada o Che-pessoa e não o Che-político. É o Che separado de suas idéias. É o Che que assume determinadas posturas: tem fé nos homens, acredita que pode mudar o mundo quase como por um ato de vontade, luta por seu ideal, faz política sem ser “político”, não tergiversa, não sai pela tangente. Como resumiu de forma brilhante o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a figura de Che ressalta por duas características muitos simples: “Dizia o que pensava; fazia o que dizia.”

Mas o fato é que dizendo o que pensava e fazendo o que dizia Che foi derrotado. Essa é a grande ironia e a grande verdade por detrás do mito redivivo e perfeitamente aceito e explorado pelo status quo: à exceção da guerrilha cubana, nas demais batalhas Che foi fragorosamente derrotado. Militarmente, politicamente, ideologicamente (inclusive em Cuba).

Em 1968 Che foi resgatado pelos movimentos rebeldes de todo o mundo de forma espontânea e autêntica: sua morte nos confins bolivianos – ocorrida pouco antes de se iniciarem as primeiras grandes manifestações de protesto na Europa - era resultado de um ato de rebeldia total: contra o imperialismo e os Estados Unidos, contra o comunismo burocrático e a URSS, contra o Partido Comunista Boliviano, contra a lógica militar, contra a exploração, contra a pobreza.

Já nos anos 90, o resgate de Che parece se dar mais por suas debilidades: um nobre e valoroso lutador solitário em busca de ideais generosos mas utópicos, em um tempo que acabou por consagrar a liberdade de mercado como sua maior conquista. Um modelo a ser admirado, não imitado. Nem aquela dawa de que falamos no início parece poder salvar o Che da sua última morte: virar herói graças a suas derrotas. Hoje, certamente, o Che seria o primeiro a rasgar o seu próprio pôster.

Flamarion Maués é coordenador editorial da Editora Fundação Perseu Abramo.