Cultura

O que aprendi lendo A Cor Púrpura me acompanha sempre

No final de 1988 fui eleita vereadora em Rio Branco, um mês antes de matarem Chico Mendes, num período de grandes confrontos em toda a Amazônia. Vivíamos com o espírito permanentemente armado para a luta, representávamos a história e o futuro, cultivávamos a linguagem e as atitudes de quem tinha o sonho de revolucionar o mundo. Meu mandato de vereadora era uma continuação das ruas, das escolas, dos sindicatos, dos movimentos que criávamos e mantínhamos com uma militância incansável, 24 horas por dia. No entanto, em meio a tantas decisões coletivas eu tinha a incômoda sensação de que alguma coisa importante corria o risco de se perder: a expressão de nossas individualidades.

Em geral, as mulheres sentem mais agudamente que os homens essa tensão entre o individual e o coletivo. Afinal, além de subirmos no palanque para falar nas assembleias, carregamos a responsabilidade de deixar pronta a mamadeira das crianças, fazer as compras da casa, ouvir as queixas dos parentes e todas essas coisas do “lado emocional” que são tão importantes e tão desprezadas na vida agitada dos militantes de esquerda.

Foi por essa época que li A Cor Púrpura, de Alice Walker. Não posso escolher apenas um livro que tenha “feito a minha cabeça”. Mas numa lista de cinco, esse romance certamente entraria. Porque veio no momento certo, em que acontecia na minha vida um salto semelhante ao que aconteceu com a personagem principal do livro. Minha identificação foi imediata. Eu chorava longamente a cada página pelos dramas que ali são narrados mas também pela semelhança com os sofrimentos que eu via na vida e nas pessoas que conheci em meu caminho do seringal para a cidade.

O que me tocou mais foi a afirmação lenta, silenciosa, da personagem do romance, depois de uma vida inteira de sofrimento. Era como me sentia: aquela coisinha insignificante, pequena, paralisada pelo medo, assombrada por todo tipo de fantasma, inferiorizada ao extremo e que, de repente, explode em mil possibilidades de afirmação, prazer, aceitação, conhecimentos, sabedoria. Uma força latente, quase oculta, que acaba transbordando como um lago depois das chuvas.

No drama daquelas negras norte-americanas eu via o meu próprio, da minha família, dos meus amigos e companheiros. Nas tragédias de outro povo, eu via a história do meu próprio povo. E lia, em palavras simples, o que as teorias não descreviam com tanta ênfase: o quanto a miséria e a opressão podem aviltar o ser humano, mutilá-lo, aniquilar seu brilho. E, no entanto, o quanto pode haver de esperança mesmo em meio à maior desgraça.

O livro me incentivou a perder o medo de demonstrar minhas emoções, de afirmar a importância do amor, de dar à ética mais importância do que à tática. E, como a maioria dos capítulos são cartas escritas para Deus, recebi também uma ajuda para a afirmação da minha religiosidade, coisa que era sempre encarada com preconceito nos círculos da esquerda “letrada”. Também pude olhar mais diretamente e com mais sinceridade para a sexualidade, especialmente o homossexualismo. Sempre tive amigos e amigas homossexuais mas, reconheçamos, fica sempre no ar um certo tabu. A gente não fala no assunto e “respeita” as opções de cada um de uma maneira puramente racional. Outra coisa é perceber o valor e o amor humanos, a privação e a liberdade que cada pessoa vive ou, como diz o Caetano, “a dor e a delícia de ser o que é”.

A história do livro se passa entre os negros norte-americanos na primeira metade deste século. E por tratar de comunidades etnicamente diferenciadas, com marcas da escravidão, acaba tocando numa questão universal: a identidade, o senso de pertença. Meus olhos se abriram para essa realidade que vivemos na Amazônia mas que é igualmente forte em todas as regiões. Qualquer luta está destinada ao fracasso se suas bandeiras não dizem respeito à cultura, à auto-estima, à valorização do saber dos povos. Nenhuma ideologia pode substituir a identidade. Às vezes nos perguntamos porque nossos movimentos e partidos já não arrebatam e seduzem as multidões como antes. Talvez seja porque temos insistido num racionalismo que vai ficando cada vez mais estéril, incapaz de gerar novas formas de contato com as pessoas e comunidades. Talvez pela estrutura patriarcal de nossas organizações, sua hierarquia vertical que cria inevitavelmente uma disputa interna pelo “poder”. Talvez pela idéia de que o poder baseia-se na força e na rigidez, não na sensibilidade e na flexibilidade.

A sabedoria oriental diz que a água é a coisa mais poderosa porque não oferece resistência. Compreendi isso no livro e também na observação da vida. Pude ver a força das pessoas que sofrem, as mais oprimidas, aquelas a quem ninguém dá importância. E fiquei mais atenta para a presença das pessoas “invisíveis”. Estamos rodeados por elas: o garçom no restaurante, a empregada doméstica, o passageiro no ônibus, o contínuo que traz o cafezinho, o tempo todo os que se sentem “importantes” agem como se essas pessoas não estivessem ali. Elas ocupam apenas espaço físico, não cognitivo.

Lembro de uma ocasião, quanto trabalhava como empregada doméstica e transitava pela casa, cuidando de meu trabalho em meio a visitas e familiares dos donos da casa. Eles conversavam algum assunto íntimo e delicado e alguém alertou para a minha presença, dizendo que poderia ouvir a conversa. Outra pessoa respondeu: “que nada, é só uma empregada abestada, nem entende o que estamos falando”. Fiquei calada e vi o tamanho da injustiça que aquela pessoa estava cometendo. Eu era uma pessoa jovem, tinha sonhos, estava estudando num curso supletivo, trabalhando, fazendo meu caminho na vida. Eu não era uma coisa. Ninguém é, acho que nem mesmo as coisas são “apenas coisas”.

O mais interessante é que esse tipo de injustiça costuma ocorrer mesmo entre aquelas pessoas que lutam pela justiça social. Lembro de um acampamento de agricultores na porta do Incra, há uns dez anos mais ou menos. Foram vários dias com aqueles trabalhadores dormindo em barracas e redes e um grande movimento de apoio na cidade. Havia uma disputa política pelo controle do movimento e o grupo ao qual eu pertencia ficava meio isolado pelas lideranças estabelecidas. De tanto me oferecer para ajudar, deram-me uma tarefa: sair pelos açougues, junto com o Abrahim Farhat, um militante histórico da esquerda no Acre, pedindo ossos para fazer a sopa dos acampados. Havia uma certa maldade na escolha dessa tarefa tão importante e subalterna, mas não me abati. E todos os dias chegávamos no acampamento carregando um enorme saco cheio de ossos para preparar a bendita sopa. Os agricultores nos recebiam com alegria, não me deixavam carregar o saco dizendo “a senhora é muito magrinha pra isso”, aproximavam-se para conversar e fazer amizade.

Pois bem. As lideranças haviam inflacionado as expectativas do movimento, radicalizaram nas palavras de ordem e reivindicações. No final das negociações, muitas vitórias haviam sido obtidas mas pareciam insuficientes diante das expectativas criadas. E quem vai convencer os trabalhadores de que a manifestação deveria se encerrar, que todos deviam voltar para casa contentes com o que havia sido conquistado? Ninguém queria “se queimar” e a saída foi apelar para a neguinha da sopa: “vai lá, eles escutam você”. Tive que subir no carro e falar para a assembléia, cantar a vitória e encerrar o acampamento elevando o moral das pessoas. Aprendi – e gostaria que todos aprendessem – que quem carrega os ossos também é liderança.

O que aprendi lendo A Cor Púrpura me acompanha sempre. São coisas que identifico no dia-a-dia, no fazer da política, no exercício do poder público, no contato com pessoas as mais variadas, desde o presidente da República até o seringueiro. Recomendo a leitura desse livro a todos, mas especialmente às pessoas excessivamente racionais, porque essas correm o grande risco de esquecer que os livros devem fazer não apenas a nossa cabeça mas também o nosso coração.

Marina Silva é historiadora, senadora pelo PT-AC