Economia

Teoria e Debate ouviu um dos mais importantes economistas brasileiros, Paul Singer

Paul Singer nasceu na Áustria, em 1932, numa família de pequenos comerciantes judeus. Iniciou seus estudos ainda em seu país de origem, tendo imigrado para o Brasil em 1940. Concluiu o equivalente ao primeiro grau já em São Paulo. Em seguida, fez o curso técnico de eletrotécnica na Escola Técnica Getúlio Vargas. De 1952 a 1956 trabalhou em indústrias como eletrotécnico, tendo se filiado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Liderou a greve de 1953 que paralisou a indústria paulistana por mais de um mês. Em 1954, filiou-se ao PSB, interessando-se progressivamente por economia. Fez o curso de ciências econômicas e administrativas da USP entre 1956 e 1959. Foi, então, convidado a integrar o quadro docente da Faculdade de Ciências Econômicas da USP, do qual se demitiu em decorrência do golpe de 1964. Voltou à USP em 1966 como professor da Faculdade de Higiene e Saúde Pública em cujo Departamento de Estatística instalava-se o Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (Cedip). No ano acadêmico de 1966-67, fez o curso de estudos populacionais da Universidade de Princeton. Retornou ao Brasil em 1967 e começou a lecionar no Cedip. Com o AI-5, em 1969, aposentou-se compulsoriamente. Então, com alguns dos demais colegas expurgados, entre outros, particularmente aqueles com quem tinha estudado a obra máxima de Karl Marx, no famoso Seminário de O Capital, fundou o Cebrap. Foi, também, um dos fundadores do PT, tendo sido secretário do Planejamento do Município de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina. Dentre suas obras, destacam-se estudos sobre agricultura, sobre população, sobre desenvolvimento, sobre socialismo etc.

Como economista ligado ao PT, você foi associado à tese que considerava a inflação no Brasil uma decorrência direta de conflitos distributivos, ou seja, da disputa dos agentes sociais em torno de uma melhor participação na distribuição do produto social. Essa disputa, entretanto, ocorre em qualquer sociedade moderna. Por que em algumas sociedades o conflito distributivo resultava em inflação crônica e em outras não?

Na década de 80, havia países com baixa inflação e outros com alta. O Brasil era um exemplo de inflação crônica, mas há outros, principalmente na América Latina, e também na Ásia. Havia países com inflação alta e com correção monetária e mecanismos de ajuste à crônica inflação. Havia outros países com uma inflação de menos de 5% ao ano.

Conflitos distributivos há nos dois, não é uma característica apenas dos países de alta inflação. Mas havia duas opções para os conflitos distributivos. Os países de baixa inflação não a usam para escamotear o conflito distributivo. Eles os enfrentam à medida em que tem que haver uma redistribuição de renda sempre que algum grupo inconformado com a que existia antes consegue se armar politicamente e impor uma mudança que tem que ser paga.

Nos Estados Unidos, houve um período de pleno emprego, pelo menos de grande situação favorável aos trabalhadores, em que houve um crescimento forte do salário real e uma compressão de lucros. O grande capital monopolista perdeu a batalha na década de 60, sofreu uma compressão de lucros, uma diminuição na acumulação, uma grande queda no nível de crescimento da produtividade. Lá houve um surto inflacionário na década de 70 que é estancado socialmente à medida em que ninguém queria mais inflação.

Nos países tipo Brasil, existia um impasse que era resolvido via inflação. E aí se criou uma situação muito peculiar, mas muito longa na vida brasileira - durou mais de vinte anos -, em que, na realidade, a distribuição de renda mudava todo mês. Ninguém era ganhador permanente, ninguém era perdedor permanente. Os conflitos distributivos eram escamoteados pela inflação. Essa é a relação umbilical entre a grande inflação e os conflitos distributivos. Essa forma de não enfrentar os conflitos distributivos, escamoteando-os via inflação, levou a economia e a sociedade a um impasse. Isso aconteceu na Argentina, no Brasil, no México, no Chile. Não havia crescimento econômico e muitas vezes havia decadência econômica. Havia uma paralisia agitante em que as energias sociais se esfumavam. Todo mundo corria para não sair do lugar. Com base nesta constatação sugeri que, via câmaras setoriais, via acordos sociais amplos, se procurasse superar aquela paralisia.

Ou seja, antes de considerar a inflação como um fenômeno monetário, você procurava entender as raízes políticas?

Eram mais sociais que políticas, de monetário não tinha nada. Nesta situação, a política monetária é totalmente passiva. A minha idéia era a de tentar saídas contrárias à experiência histórica anterior. Desde os anos 30 tínhamos a idéia de que uma inflação poderia ser a solução para a grande depressão. Houve momentos nessa época em que se procurou conscientemente inflacionar para ver se era possível reanimar a economia que estava prostrada.

A experiência latino-americana e a de outros países do Terceiro Mundo, na década de 80, é o oposto disso. A inflação era a causa de um impasse de não-crescimento, de não-acumulação e assim por diante. A idéia de jugular inflações dessa natureza mediante um artifício monetário existia, mas era uma loucura. E os próprios monetaristas reconheciam que daí adviria uma recessão absolutamente fantástica.

Havia uma crítica bastante forte, até dentro do PT, à idéia de que as câmaras setoriais pudessem ser um caminho negociado de saída da inflação. E a crítica era, basicamente, de que as soluções setor a setor não teriam um impacto econômico que desse conta do que se viva em termos inflacionários. Como você encara o Plano Real, que não foi uma solução negociada nos termos propostos pelos idealistas das câmaras setoriais? Como ele permitiu a queda da inflação sem negociação?

Este é o ponto em que faço autocrítica. Eu me enganei redondamente face ao Plano Real. Parecia-me que sem um acordo social, que no México bem ou mal se fez, seria quase impossível escapar da inflação, a não ser mediante uma mega-recessão. O erro que eu cometia, e suponho que outros também, foi imaginar que uma âncora cambial - que na verdade funcionou - não poderia ser suficiente em uma economia em que o coeficiente de importação não chegava nem a 10%. Eu sabia que em Israel um plano semelhante tinha dado certo. Eu tinha estudado o assunto, tinha estado lá na véspera do pacote que efetivamente acabou com a inflação, em 1985. Mas Israel é um país de 5 milhões de habitantes, em que o coeficiente de importação é de mais de 50%.

Eu achava que, num país tão pouco aberto ao comércio internacional como o nosso, uma âncora cambial não seria suficiente para conter a inflação. Eu estava enganado. Eu não considerei o fato de que era possível abrir de chofre o mercado interno e praticamente aumentar em 150% os valores das importações. Foi o que aconteceu entre o primeiro semestre de 94 e o segundo semestre de 95. Mais que dobrou o valor das importações em um ano e meio. Foi um negócio fantástico! Tinha havido um influxo muito grande de capital, criando para o Brasil reservas cambiais enormes, capazes de bancar portanto essa abertura do mercado interno. Estava sobrando capital no mercado internacional e o Brasil estava sendo visto com olhos gulosíssimos para se investir desde que houvesse alguma estabilização crível. Então, o capital internacional foi o fundamento do Plano Real. Eu não tenho dúvidas de que funcionou, e estou feliz, como brasileiro, de ter errado.

O programa de privatizações, que acabou atraindo o capital externo, seria um diferencial favorável ao Brasil em relação a Israel?

Eu acho que não. Eu percebi depois, reestudando os dados, que o capital estrangeiro já tinha voltado ao Brasil desde 1991, mesmo com toda aquela inflação descontrolada, com a loucura do Collor e com o impeachment. Todos estes motivos deveriam tê-lo afastado, mas ele voltou, e com muito ímpeto, por falta de opções. Existem hoje no mundo algumas centenas de bilhões ou trilhões de dólares que procuram lucratividade confiável, não em investimentos de longo prazo, mas em investimentos com taxas de câmbio e de juros lucrativas. Eles não têm tantas opções. Daí vem essa mania dos mercados emergentes. No fundo, são seis ou sete países asiáticos, um pouco menos de países latino-americanos, e é por aí que esse capital se move fundamentalmente, já que nos países centrais a taxa de juros está muito baixa.

Mas o fato concreto é que qualquer mercado emergente de grandes dimensões, como é o brasileiro, e que seja politicamente confiável para eles, pode atrair, pelo menos nesses anos, volumes inacreditáveis de capital.

Mesmo sem um programa de privatizações, você acha que isso seria possível?

Sim, porque o volume de capital que deu êxito ao Plano Real entrou em 1994 e 1995, e não houve nenhuma privatização importante nesses anos. Agora, provavelmente o programa de privatizações sustenta a contínua entrada de capital estrangeiro. Mas o Plano Real já deu certo. Como havia muita inércia inflacionária e os conflitos distributivos foram praticamente superados em 1995, a partir de agora não há a menor chance daquela enorme inflação voltar. Claro, tudo pode acontecer, mas se houver alguma pressão inflacionária é no sentido dela subir de 8% para 12%, mas não de 8% para 80% ou para 800%.

O que você está chamando de superação dos conflitos distributivos em 1995?

O governo foi muito hábil em duas coisas. Ele conseguiu equacionar os conflitos distributivos sem fazer um acordo social, sem negociar algo de mais longo prazo, como por exemplo colocar sob o controle dos parceiros sociais algumas variáveis macroeconômicas. Isso era o que eu propunha e não aconteceu. Houve a criação da URV, e com ela o governo deu aos salários o mesmo tratamento que deu ao dólar, ou seja, praticamente criou uma indexação diária. Com isso livrou os trabalhadores, por alguns meses, do ônus do atraso em relação a uma enorme inflação; e em segundo lugar, submeteu o Plano Real ao parlamento e este obrigou o governo a fazer algumas concessões, tais como indexar o salário por mais um ano pelo menos pela inflação total.

Esses acordos, que foram bem ou mal negociados no parlamento, e a sutileza que foi a URV, permitiram marchar para a estabilidade com o mínimo de conflitos, muito menos do que eu imaginava. O fato também de usar importações maciças criou um enorme choque sobre os oligopólios brasileiros, que são os mais ativos conflitantes. Na verdade, não é a classe trabalhadora; são os oligopólios, que costumam ter margem de lucro enorme no Brasil, que foram colocados em uma posição muito defensiva pela importação maciça de têxteis, comidas etc. Esse tipo de conflito intercapitalista, que era uma das maiores molas da inflação, foi eliminado pela própria pressão da globalização da economia brasileira. Por outro lado, o desemprego resultante da crise industrial foi muito forte e colocou os mais importantes sindicatos brasileiros também na defensiva, da qual estão saindo agora.

Você diz que o Plano Real deu certo face a seu objetivo, que era eliminar a inflação, mas evidentemente você não deixa de reconhecer as suas inconsistências internas de longo prazo ou as distorções do ponto de vista, por exemplo, da balança de pagamentos?

Sem dúvida. O preço que pagamos por este caminho de estabilização é uma dependência contínua de enormes influxos de capital, e eu sou cético quanto à possibilidade deles serem sustentados indefinidamente. Mas graças às privatizações - aí elas passam a ter um certo papel -, esses influxos são aparentemente sustentáveis a médio prazo. Eles se mantiveram de 94 a 97 e a perspectiva imediata é que continuem sendo mantidos. Mas esse é um capital extremamente volátil, sujeito a incertezas muito grandes, ultranervoso. Esse capital pode a qualquer momento forçar uma desvalorização do real, que é objetivamente necessária. Ela pode acontecer na semana que vem ou daqui a dez anos, nunca se sabe. Mas isso não é uma inconsistência do plano, é um preço. É um ônus que o plano impõe à economia: é necessário continuar o tempo todo ganhando o campeonato mundial de atratividade para o capital flutuante. O Brasil é um concorrente privilegiadíssimo nesse sentido; praticamente Brasil e China disputam esse campeonato nariz a nariz.

Em que medida soluções negociadas nos termos que você propunha poderiam agora servir de mecanismos de saída dessa armadilha cambial que nos torna mais vulneráveis?

Está todo mundo festejando a estabilidade - e eu festejo junto -, mas está crescendo o número de economistas que acham que é necessário desvalorizar o real e manter déficits em conta corrente da ordem de 30, 40 bilhões ao ano durante três ou quatro anos. Até ex-membros da equipe econômica, como o André Lara Rezende, estão dizendo que seria conveniente desvalorizar preventiva e controladamente, antes que isso nos seja imposto pelos especuladores com preço social e econômico pesadíssimo, como no caso da Tailândia, do México etc. Sempre o preço é muito alto. Se não fizermos a desvalorização preventiva e controladamente, vai haver uma desvalorização muito maior do que a necessária, que vai ser em parte compensada com uma inflação muito maior do que a que gostaríamos e com uma tremenda recessão para curar a inflação depois. É o que aconteceu no México e na Argentina. A dinâmica é bem conhecida.

Existe a possibilidade de se criar uma coligação de forças sociais, de classes, para ter uma outra política de estabilização, porque continua sendo necessário de alguma forma tratar os conflitos distributivos e impedir que eles gerem pressões inflacionárias incontroláveis. São duas condições essenciais para se ter algum desenvolvimento econômico e alguma repartição de renda no Brasil. É preciso ter segurança no setor externo, um balanço de pagamentos com algum equilíbrio, e alguma estabilidade de preços. A alternativa seria tentar, por intermédio de câmaras setoriais ou de outro mecanismo, criar algum controle sobre o capital por parte da sociedade, não do governo.

Uma das idéias que defendo há muito tempo, mas que provavelmente não vai voltar à tona, é criar um Conselho Monetário Nacional totalmente diferente desse. O Plano Real reduziu o CMN a três pessoas: os ministros da Fazenda e do Planejamento e o presidente do Banco Central. Toda a política de crédito no Brasil é decidida pelo governo federal, sem audiência nenhuma da sociedade. Se fosse criado um Conselho Monetário Nacional bem representativo, com setores da agricultura, pequena e média empresa, trabalhadores, a grande indústria e os grandes conglomerados financeiros, haveria um espaço de negociação não apenas da política monetária, da taxa de juros, mas também de políticas setoriais para a agricultura, para a indústria e para o comércio externo. Seria possível de alguma maneira criar uma parceria entre o governo, os setores econômicos mais importantes e os trabalhadores para pensar uma estratégia favorável à sociedade de inserção do Brasil numa economia mundial que está em profunda transformação.

A alternativa atual, do Plano Real, é deixar os mercados fazerem isso, doa a quem doer. Aí vem o desemprego, um monte de empresas quebradas, setores inteiros afundando etc., e ninguém sabe bem para onde isso vai. É necessário controlar o processo de forma mais consensual e coordenada, em que os mercados continuem funcionando mas onde exista algum poder sobre eles para que determinados objetivos coletivos possam ser alcançados. Por exemplo, uma política keynesiana de pleno emprego continua sendo importante: criar oportunidades para todos aqueles que precisam ganhar a vida. Não é possível fazer isso dentro dos parâmetros estruturais criados pelo Plano Real.

Como você vê os efeitos do Plano Real do ponto de vista social?

Quanto ao saldo social, o Datafolha divulgou um estudo quantitativo bastante interessante, no qual se constata que há uma certa porcentagem de pessoas que ascenderam economicamente, mesmo tendo baixo grau de escolaridade, no período do Plano Real.

A estabilização permitiu que 10 ou 15% da população melhorasse nitidamente de renda, de padrão de vida, de consumo. Mas o grupo que eles chamaram de decadentes - os expulsos do mercado de trabalho, pessoas qualificadas que foram simplesmente excluídas - chega a 25% na Grande São Paulo. Portanto, os efeitos negativos foram maiores que os positivos. Houve muita gente prejudicada também no campo, centenas de milhares de pequenos agricultores arruinados que perderam a terra, não puderam pagar os empréstimos bancários. E por outro lado houve, principalmente no setor de serviços, gente que foi muito beneficiada pelo aumento do preço dos serviços, desde garçons até empregadas domésticas, faxineiras, consertadores. Houve um grupo igualmente pobre que teve uma nítida melhoria.

Há uma porção de gente muito ressabiada, não com o real em si, mas com toda essa virada neoliberal - as privatizações, as reformas anti-sociais que o governo está querendo impor, como a da Previdência Social -, que só vê o lado negativo, os desempregados, os excluídos, os empobrecidos. Mas existe o outro lado também, senão o presidente e o Plano Real não teriam o grau de aprovação que têm. É preciso nuançar isso.

Você conviveu e estudou junto com Fernando Henrique. Como você vê um intelectual que passou boa parte de sua vida pensando a questão do desenvolvimento e denunciando o caráter dependente da nossa sociedade, criar agora condições para que essa dependência se exacerbe?

O presidente da República é meu velho amigo e companheiro de lutas políticas e de estudos há trinta anos. Entre as suas várias contribuições teóricas significativas para o pensamento latino-americano, uma delas, que tem alcance universal, é a idéia básica da teoria da dependência: que sempre a periferia tem um jogo dialético que leva à associação. Essa associação significa em última análise que há um desenvolvimento da periferia também, só que de forma dependente. Ele está levando essa descoberta às últimas conseqüências. Ele acha que para o Brasil se desenvolver tem que estar associado. O país poderia se desenvolver até mais do que o centro, à medida em que as possibilidades abertas pelo subdesenvolvimento atraem muito capital.

Ou seja, há coerência da política com a teoria?

É uma vertente de seu pensamento, na qual ele avançou até o fim. Como político, ele era um crítico da dependência e por outro lado um analista da associação. Ele fez uma longa carreira política, de 1978 - quando foi candidato ao Senado - até 90, numa posição de centro-esquerda. Mas a partir de algum momento em 1991, quando ele quis entrar no governo Collor e deu apoio ao seu programa, ele claramente foi para o outro lado. Ele está sinceramente convencido de que estamos diante de uma nova Renascença, que a globalização vai levar a uma grande fase de desenvolvimento econômico, que o Brasil vai se beneficiar disso à medida em que se integre exatamente nos termos que o Consenso de Washington propõe.

Até que ponto essa opção está fragilizando a posição internacional do Brasil?

Atualmente, a posição do Brasil se contrapõe à dos Estados Unidos. O Brasil está apostando todas as fichas no Mercosul, e mais que o Brasil, a Argentina está se salvando às custas do mercado brasileiro, que é muito maior que o argentino. Portanto, a possibilidade de exportação para o Brasil está tirando a Argentina do buraco. Essa associação Brasil/Argentina é um pólo que está atraindo outros parceiros: Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, quem sabe Venezuela.

Então, pela primeira vez na história há uma polarização Brasil/Estados Unidos. Nunca houve isso. No governo Geisel houve momentos de confronto por causa do acordo atômico Brasil-Alemanha, mas foi uma coisa menor, restrita à questão energética e militar; porque o Brasil estava querendo fazer a bomba atômica. Agora é uma questão seriíssima de estratégia econômica. Os Estados Unidos toleraram o Mercado Comum Europeu, toleraram o Mercosul, mas em algum momento eles vão dar um basta. O projeto Alca, de criar um mercado comum que envolva toda a América, praticamente submerge o Brasil diante dos Estados Unidos. Porque face a eles, o Brasil não é nada, mas excluindo-se os EUA o mercado interno brasileiro é um pólo importante. Se os EUA se abrem, o Brasil submerge, fica igual ao Chile. Portanto, há uma resistência muita clara do Brasil, da Argentina, enfim dos países do Mercosul ao Alca, e o Fernando Henrique está nessa.

Resistindo?

Resistindo. Ele está tentando criar um bloco até que o Alca comece a funcionar. A resistência ao Alca dentro dos Estados Unidos também é muito forte. Houve uma resistência enorme à inclusão do México no Nafta. O Mercosul era, na verdade, um embrião, uma tentativa de unificação política e econômica de toda a América Latina, só que o México foi para o lado de lá e o governo Clinton conseguiu superar as resistências e aprovar a sua inclusão no Nafta. Com o México do lado de lá, o que sobra é a América do Sul, porque a América Central é muito pequena e politicamente muito complicada. Portanto, está surgindo a América do Sul como uma nova entidade regional, capitaneada pelo Brasil por meio do Mercosul.

O Fernando Henrique está querendo um pouco jogar cartas de potência média dentro do jogo da globalização. Ele está perseguindo o sonho do Brasil como potência, que sempre foi uma aspiração. O Brasil foi um dos poucos países que saiu da Liga das Nações porque não lhe deram um cargo permanente no que seria o Conselho de Segurança daquela época. Nós estamos mais uma vez, 60 anos depois, batendo às portas da ONU, querendo um lugar permanente no Conselho de Segurança. O Brasil sempre procurou uma posição um pouco maior. Isto sempre esteve ligado a posições nacionalistas, ou latino-americanistas, ou terceiro-mundistas, e agora, aparentemente não. Agora, o jogo do governo brasileiro é dizer: nós somos capazes de atrair esses capitais multinacionais, sejam japoneses, americanos ou europeus e fazê-los investir no Brasil a ponto de transformar o país em uma economia corrente. O que implica a suposição de que a globalização é para valer. Evidentemente, ela é uma tendência muito forte, mas que está longe de ter chegado aonde logicamente pode chegar. Esse é o erro maior do nosso governo. Ele está abrindo mão de uma agenda nacional e continental que poderia ser bem mais forte se ele fosse menos liberal, no sentido estrito do termo, ou seja, se confiasse menos nos capitalistas e no mercado.

Ou seja, se ele ampliasse a negociação com a sociedade civil?

Exato. Essa é a única opção dentro da democracia, que aliás, curiosamente, está sendo praticada no âmbito do Mercosul. Lá existem câmaras setoriais e cada vez mais os chamados conselhos da sociedade civil se envolvem na negociação. O movimento sindical dos países do Mercosul está muito organizado. Eles estão continuamente se reunindo e tomando posições comuns. Os empresários também. Mas no plano nacional isso não é feito.

Depois de sua participação no governo Erundina, você escreveu um livro chamado Um governo de esquerda para todos relatando a experiência. Em que medida sua participação como secretário de Planejamento da Prefeitura de São Paulo contribuiu para esta idéia da importância da criação de conselhos?

Eu vou citar um dos exemplos que mais deu certo, que foi o chamado conselho de tarifas, uma proposta minha aceita pelo governo. Ele foi constituído para negociar todas as tarifas da prefeitura, embora as de ônibus fossem o quente, o que mais dava lugar a conflitos. Esse conselho de tarifas tinha representação dos motoristas de ônibus, da própria Transurb (associação dos empresários de transportes coletivos), do comércio, das indústrias, do movimento sindical, enfim, de todos os setores organizados da sociedade.

A política de transporte coletivo foi uma das melhores coisas que fizemos, e foi feita por intermédio do conselho de tarifas. O programa básico da Erundina para a área era mudar toda a sistemática de pagamentos: a prefeitura passou a ficar com toda a receita operacional e pagava as empresas de acordo com os serviços por elas prestados. Isto só se viabilizou porque no conselho de tarifas conseguimos unificar a chamada planilha de custos, para negociar, inclusive, o valor da passagem de ônibus e o valor dos serviços prestados. A partir daí, pudemos fazer a mudança legal e revolucionar todo o sistema de transporte coletivo na cidade, elevando o número de ônibus de 5.500 para 8.500. Esse mesmo conselho negociou depois as tarifas de táxi e de lixo, com resultados também positivos. Enfim, o conselho de tarifas foi muito eficiente como prática de política negociada e consensual envolvendo todos os setores da sociedade da cidade.

Na campanha que marcou a sucessão da Erundina, a crítica que era feita é que a política de transportes custava ao erário público municipal um milhão de dólares por dia...

O valor é este mesmo, mas isto não foi negociado no conselho. Foi uma decisão de governo, incansavelmente discutida no secretariado, que tinha na própria Erundina sua maior defensora. Nós decidimos subsidiar mais ou menos a metade do valor do transporte coletivo. Essa era a principal medida de inversão de prioridades, porque quem anda de ônibus em São Paulo é pobre. Isso era uma prioridade política construída ao longo do tempo. Houve idas e vindas no secretariado, muita gente que era contra porque isso tirava recursos das outras pastas etc.

Você acha que haveria condições de transpor experiências como a deste conselho de tarifas para o plano nacional?

O princípio poderia ser transposto, mas a forma de fazer é muito importante e pode pôr o princípio a perder. Por exemplo, o projeto de um conselho monetário nacional bem representativo é talvez a coisa mais ambiciosa que se possa imaginar. Em última análise, um conselho monetário nacional poderia programar a alocação dos investimentos brasileiros. Deixaria evidentemente as empresas tomarem as decisões finais, mas estas seriam condicionadas. Isso é possível, mas demanda muito compromisso por parte das classes sociais. Isso não pode ser feito apenas por uma decisão política. Seria necessário ganhar uma batalha ideológica antes.

Sua reflexão sobre o socialismo deriva de toda essa reflexão sobre a negociação. E você chegou a defender publicamente a idéia de que o socialismo deveria eventualmente conviver com o mercado...

Eu estou convencido de que o mercado é essencial ao socialismo.

Mas, em certo plano, você está sempre enfatizando a idéia de que tem que haver uma carga grande de planejamento através da negociação; em outro plano, você parece dizer que isso tem um limite. Qual a solução?

Na realidade, eu concordo com os liberais quando dizem que os indivíduos existem. Não é o zero infinito. É importante dar um espaço para a escolha individual. Por exemplo, existir o mercado de trabalho é absolutamente essencial. A idéia de ter um grande escritório que aloca o trabalho de cada indivíduo de uma sociedade de dezenas de milhões é absurda, é algo muito próximo à escravidão. É necessário deixar os indivíduos optarem, decidirem sobre o que vão fazer e eventualmente se arrependerem, ficarem desempregados por algum tempo. Mercado de trabalho é condição de liberdade humana e alguns mercados de bens e de serviços me parecem igualmente essenciais, porque uma das liberdades interessantes é a de iniciativa. O indivíduo tem o direito de tomar uma iniciativa, abrir uma empresa ou vender o fruto do seu trabalho. O mercado não é um mal, ele é uma forma de realização individual. Eu penso o socialismo, de acordo com Marx, como uma sociedade em que os indivíduos têm muita liberdade de se realizar e eventualmente de errar, de fracassar. O que o socialismo tem a mais é que, depois que o jogo do mercado é feito, depois que os ganhadores e os perdedores estão definidos, deve existir uma instituição que tira uma grande parte dos bens materiais dos ganhadores e dá para os perdedores. Não é necessário ter uma sociedade de milionários e de miseráveis para ter esse espaço de liberdade individual que é absolutamente essencial. Lendo algumas obras fundamentais que saíram recentemente sobre experiências nos países de economia centralizada, estatizada, eu me convenci de que isso é um retrocesso em relação ao capitalismo.

Seu ideal de socialismo estaria muito próximo do que teria sido a social-democracia mais avançada....

Muito mais avançado do que isso. Pode haver um sistema em que as empresas são cooperativas, por exemplo, e não autoritariamente dirigidas. Por isso eu tenho entusiasmo pelo cooperativismo. Se conseguíssemos democratizar a própria organização da produção, aí sim, teríamos uma boa sociedade. Pelo menos, esse é o caminho.

Você diz que, além do mercado, o Estado tem que ter um papel na redistribuição da renda. Isso pode existir nos marcos do capitalismo...

Eu tenho dúvidas por causa do problema dos incentivos. Onde se foi mais longe foi na Suécia, que chegou a esbarrar numa situação em que se começa a não ter incentivos suficientes para uma economia do tipo capitalista. A socialização dos meios de produção, ou seja, a existência de empresas em que o próprio trabalhador, junto com os consumidores, tome decisões coletivas que levam a definir o dinamismo da economia, é essencial. Sem isso, se cai no exagero e se cria uma crise - a Suécia entrou em crise feia e deu uma recuada - ou você mantém na verdade grandes desigualdades sociais que são incompatíveis com o socialismo.

Mas essas cooperativas precisam ser financiadas...

O financiamento é o mais fácil. Essa crise do capitalismo está produzindo uma exclusão em massa muito grande. Está havendo uma ressurgência em muitos países do movimento cooperativista como resposta ao desemprego. Mas as cooperativas precisam de trabalhadores que queiram fazer isso. O pressuposto é que eles aceitem a idéia de serem os patrões de si próprios. Na prática, isso não acontece, por incrível que pareça. Os fundos em geral são muito burocráticos. Eles pressupõem que se os trabalhadores recebem a propriedade da empresa eles vão assumir e ser patrões de si próprios. Não vão, essa é a questão. Nós temos várias experiências. Há cerca de quinze anos, existe uma legislação nos Estados Unidos que dá uma vantagem fiscal importante para planos de participação dos trabalhadores no capital acionário das empresas. Milhares de empresas estão aproveitando essas vantagens fiscais e criando planos para que os trabalhadores comprem suas ações. A grande maioria compra 10%, 15%. Mas há empresas que se deram mal e passaram ao controle acionário dos trabalhadores em condições praticamente dadas. Os trabalhadores ganham a empresa, têm de fazer sacrifício, têm que produzir os salários. A empresa não está dando lucro, o único jeito é reduzir custos. Então, eles agüentam, em 10 anos recuperam inteiramente a empresa, compram equipamento novo, ela passa a ser lucrativa, eles voltam a ter os salários normais. Aí eles vendem a empresa de novo e voltam a ser operários alienados, como sempre quiseram ser.

Nós estamos tendo essa experiência no Brasil hoje. Há vinte empresas aproximadamente, tipo cobertores Paraíba, Facit, Conforja, que estão sendo geridas pelos seus trabalhadores ou em co-gestão. São pessoas qualificadas, que tinham trabalho, férias, um salário decente para poder criar sua família. Agora, eles não ganham mais salários, têm participação nos resultados e a preocupação de participar de assembléias, ter que decidir se aumenta o capital, se demitem pessoas, se admitem, como selecionar etc. A grande maioria está com saudades da época em que tinha salários e ponto final, sem nenhuma preocupação. Pelo que dizem os companheiros que estão mais diretamente envolvidos, o que parece existir é uma acomodação, essa é a palavra certa, muito forte à situação do trabalhador qualificado. Isso está mudando lentamente, em várias empresas, através de uma ação educativa intensa, mas esse processo é muito lento.

Nós estamos descobrindo que as cooperativas têm que ser democráticas. Ou há o patrão ou a cooperação. Só que na cooperação todo mundo tem que participar, mesmo que alguns sejam os gestores mais diretamente responsáveis por alguns setores. Mas em algum momento é necessário chamar os outros para tomar decisões fundamentais. E as pessoas em parte estão participando só porque essa é alternativa para não ficar sem o emprego.

Portanto, o problema não é criar um fundo para dar direitos aos trabalhadores de mandarem na empresa; é criar uma consciência nos trabalhadores para que eles queiram mandar na empresa.

Esse é um caminho para o Brasil?

Em um programa alternativo hoje da esquerda para disputar um governo no Brasil ou em qualquer outro lugar, essa questão da autogestão devia ter uma posição de bastante destaque. Não é dizer: vamos resolver o problema do desemprego com autogestão; isso seria leviandade. Mas dizer, se formos governo, vamos dar apoio financeiro, técnico, logístico etc., a tudo que é forma de autogestão, à livre iniciativa dos próprios trabalhadores. Assim como a livre iniciativa dos capitalistas tem montes de apoio, e deve continuar tendo, a livre iniciativa dos trabalhadores vai merecer no mínimo tanto apoio. Isso distinguiria e faz todo sentido.

Fernando Haddad é professor de Ciência Política na USP.