Internacional

O governo de esquerda na França surge como encarnação de uma aspiração popular a uma mudança radical expressa não somente nas urnas mas também nas ruas e nas greves. Será no enfrentamento à questão do desemprego que se julgará sua capacidade de acabar de vez com o neoliberalismo.

A todos os que pensavam que a coabitação entre um governo de esquerda apoiado numa maioria na Assembléia Nacional e um presidente de direita, debilitado pela derrota do seu campo nas recentes eleições, se daria sem dificuldade maior, Jacques Chirac veio lembrar em sua primeira intervenção pública após as eleições legislativas, no dia 14 de julho, que ele pretende utilizar seus direitos constitucionais para se opor ao governo de Lionel Jospin. Um discurso não é suficiente para apagar as relações políticas criadas com a vitória da esquerda, mas permite compreender o eixo da luta que a direita entende desenvolver para tentar mudar a correlação de forças.

Em outra parte de sua apresentação televisiva, ele criticou abertamente todas as medidas tomadas pelo governo e reivindicou o direito de criticar e questionar as que vierem. Segundo ele, a coabitação será construtiva. Caso contrário, ele poderá, como o autoriza a Constituição, dissolver a Assembleia e convocar novas eleições.

Esta é a pose de Chirac, mas ela sofre de uma grande falha: ele já dissolveu a Assembleia e o povo rejeitou a sua “idéia” de como devem ser conduzidos os destinos da nação francesa. Quando isto aconteceu com De Gaulle em 1969, o fundador da V República francesa tirou as conclusões lógicas e demitiu-se. Chirac, ao contrário, utiliza sua função para tentar negar o sufrágio universal que elegeu uma nova maioria. Ele deixa de encarnar a nação como um todo para representar o campo da direita, hoje minoritário. Agindo assim, Chirac desestabiliza as instituições políticas do país, abrindo espaço para uma crise do Estado.

A crise do regime, por sua vez, expressa um processo bem mais profundo de desestabilização do capitalismo francês. Este encontra-se face às exigências de desmantelamento do Estado de bem-estar, através da ação coincidente da globalização de signo neoliberal da economia mundial e da política de convergência econômica da Comunidade Européia, enquanto vetor do liberalismo monetarista e desregulador.

O impacto desse processo, em termos de desemprego, estagnação, desmantelamento dos serviços públicos e confisco da democracia em proveito das forças descontroladas da rentabilidade financeira, é o que levou à derrota eleitoral dos socialistas em 1993, acomodados ao thatcherismo dominante e incapazes de formular uma resposta alternativa. A vitória da direita, naquele ano, ocultou parcialmente o fato de que as eleições não traduziam a força do liberalismo, mas sim sua rejeição, em condições de ausência de alternativas de esquerda. O crescimento do abstencionismo e do voto de protesto, canalizado em parte pela extrema direita, já expressava de maneira confusa essa realidade.

Em 1995, Chirac se elegeu vencendo outro candidato de seu próprio partido porque soube expressar essa rejeição ao liberalismo. Tal posição logo mostrou-se demagógica, sem tradução na política governamental. Em menos de dois anos a rejeição passou a se expressar em importantes greves e manifestações que acabaram paralisando o governo Juppé e levando à decisão de dissolver a assembléia.

O governo de esquerda surge como encarnação de uma aspiração popular a uma mudança radical de orientação política, econômica e social. Aspiração expressa não somente nas urnas, mas também na rua e nas greves que marcaram o fim do governo de direita de Juppé, e uma clara rejeição às conseqüências sociais do liberalismo praticado nos últimos quinze anos, e não só pelos governos de direita, mas também pelos governos socialistas sob a presidência de François Mitterrand.

Jospin soube encarnar esta dupla ruptura: com a direita e em parte com seu próprio campo, e está mostrando, por enquanto, que sua ação corresponde aos compromissos assumidos.

A renovação do PS e a unidade da esquerda

O que foi ignorado pelos observadores e desprezado pelos grupos radicais de extrema-esquerda era o lento processo de renovação, marcado por crises sucessivas, do Partido Socialista, e igualmente o processo de recomposição de uma unidade no campo da esquerda que correspondia a mais do que uma simples preservação eleitoral.

A derrota eleitoral de 1993 e a morte de Mitterrand precipitaram o questionamento interno do mitterrandismo e da «cultura do poder» no PS. As mudanças na composição da direção e a decisão de apresentar Lionel Jospin como candidato presidencial em 1995, distanciado da “corte” e identificado com uma posição profundamente ética e de superação dos erros anteriores, tiveram um resultado inesperado. Contra todos os prognósticos, o PS obteve uma votação que, já em 1995, o designava como o maior partido político da França em número de votos. Com 47% dos votos no segundo turno, ganho por Chirac, Jospin emergiu como líder indiscutível da oposição.

Com o lançamento dos fóruns de discussão da esquerda – agrupando PS, o Partido Comunista Francês e os Verdes –, para a formulação de uma nova política, foi-se forjando o caminho da unidade. O PCF – consciente de que sem o PS qualquer política de esquerda estaria condenada à esterilidade e ao aprofundamento de seu próprio declínio –, e os Verdes, aceitando que uma política ecologista só poderá vingar graças a um posicionamento claro no campo da esquerda, fariam o resto.

Porém a esquerda não conta com apoio incondicional da população. Ela só foi majoritária pelo desgaste da direita, pela recusa de Le Pen em apoiar os candidatos do governo no segundo turno e devido a uma abstenção de 31% do eleitorado.

Como Chirac perdeu a eleição

Em meritório trabalho, o companheiro Sérgio Weigert resumiu as contradições do presidente francês:

“Jacques Chirac assumiu o poder presidencial na França ao fim de uma campanha em que se apresentou aos franceses como o candidato da verdadeira mudança. Com esta palavra-de-ordem ele marcava a diferença não só, e principalmente, com os 14 anos do governo socialista de François Mitterrand como também com Edouard Balladur, o outro forte candidato da direita que havia sido primeiro-ministro de Mitterrand no segundo governo de coabitação.

Os franceses desejavam a mudança e o demonstraram, preferindo, por 52,64% no segundo turno, a coalizão dos partidos de direita liderada por Chirac.

As razões da vitória não são difíceis de entender: Chirac propunha mudanças em relação àqueles problemas que os franceses desejavam, efetivamente, ver mudados. Por exemplo, segundo pesquisa realizada pelo reputado instituto de sondagem Sofres e publicada no Le Monde, em 11 de maio de 1995, quatro dias após a eleição de Chirac, o desemprego, principal bandeira de sua campanha, era considerado por 92% dos franceses a questão prioritária, imediatamente seguida pela proteção social com 55%.

Da mesma maneira, o significado de sua vitória ultrapassava as fronteiras políticas entre os partidos ou as diferenças ideológicas entre direita e esquerda. Apenas 26% dos franceses consideravam que a eleição de Chirac era uma vitória da direita, enquanto que 68% a interpretavam como a expressão da vontade de mudanças e de reformas do país. Neste mesmo sentido, 67% dos eleitores haviam votado em Chirac para que ele realizasse tais reformas, enquanto somente 30% o haviam escolhido a fim de evitar uma vitória da esquerda. (…)

Pouco depois de comemorar 200 dias no poder, Chirac e Juppé decidem romper a paralisia. Em dezembro de 1995 é apresentado pelo primeiro-ministro um projeto que visava uma reforma abrangente de todo o sistema previdenciário francês. As obrigações do Estado eram radicalmente diminuídas em relação a aposentadorias e à saúde; a questão do desemprego não era sequer tocada e os auxílios para moradia sofriam também drásticas reduções.

O Plano Juppé, como ficou conhecido o projeto, recebeu uma resposta imediata. A França inteira parecia ter entrado em erupção. As grandes centrais sindicais convocaram uma greve (com a exceção notável da CFDT, que apóia abertamente o governo Juppé. Nota de L.F.) que atingiu praticamente todos os serviços, desde os transportes até o serviço postal chegando a médicos, professores, lixeiros etc. A solidariedade da população foi imediata e se manteve inalterável durante todo o período da paralisação. Pesquisas dão conta que, mesmo depois de duas semanas de transtornos e soluções de emergência, 63% dos franceses ainda apoiavam os grevistas. E, de fato, o espetáculo de uma cidade como Paris, vivendo cotidianamente em engarrafamentos monstruosos, sob o bom humor de sua população, não deixava dúvidas sobre o destino de um programa político capaz de suscitar tanta resistência em seus cidadãos.

Ao mesmo tempo, espoucaram manifestações de apoio em todas as grandes cidades européias. Os analistas políticos começaram a fazer analogias com maio de 68. A França se transformara no palco da primeira grande manifestação de oposição ao Tratado de Maastricht.

Quando a greve completava um mês, ainda em plena vitalidade, o governo jogou a toalha. Juppé declarou-se disposto ao diálogo e, como prova de boa vontade, convocou uma reunião com os líderes sindicais em que a ordem-do-dia foi aberta com o empoeirado projeto sobre o desemprego dos jovens. Mas o governo não conseguiu convencer ninguém de que estava realmente disposto a implementar seus antigos projetos de campanha e os resultados do encontro foram tão magros quanto pesadas as conseqüências do conflito com os trabalhadores.(…)

Chegando ao final do ano de 1995 isolado dos movimentos sociais, Chirac, em 1996, iria se isolar dos intelectuais. Desta vez, a propósito da questão da imigração, que aparecia em terceiro lugar (com 38%) entre as prioridades, segundo a pesquisa da Sofres.

De fato, a imigração é um dos mais espinhosos problemas atualmente na França. A política colonialista francesa do início do século levou à destruição dos modos de vida das populações da África do Norte engendrando um movimento social que, grosso modo, podemos comparar àquele que ocorre no Brasil com o deslocamento das populações nordestinas para os estados do sul, notadamente São Paulo.

No caso da França, entretanto, além do fato de que é preciso atravessar o Mediterrâneo, e não apenas o rio São Francisco, existem as dolorosas seqüelas políticas que permaneceram dos não menos dolorosos processos de independência de países como a Argélia, por exemplo. E ainda, se quisermos acrescentar as diferenças culturais - verdadeiros abismos -, que separam sociedades tribais e poligâmicas do modelo ocidental francês, poderemos entender o quanto pode ser complexo um tal coquetel.

De qualquer maneira, por mais difíceis que sejam suas soluções, certamente as menos indicadas são as de ordem policial. No entanto, foi este o caminho escolhido por Chirac e Juppé.

Em agosto, depois de um longo processo de pressões e ameaças, os batalhões da polícia invadiram a igreja Saint Bernard, em Paris, onde se abrigavam emigrantes africanos que realizavam uma greve de fome a fim de que o governo regularizasse seus papéis de permanência em território francês. Ato contínuo, Juppé ordenou sua expulsão.

As imagens da invasão foram transmitidas ao vivo pela televisão e as repercussões foram intensas. A intelectualidade francesa denunciou a brutalidade e assinou manifestos lembrando que a França pretendia ser a pátria do respeito aos direitos do homem. O governo, que já havia se afastado de suas bases sociais, começava a se afastar da intelectualidade. A ruptura definitiva, entretanto, teria que esperar até o próximo ano.(…)” (A respeito do haraquiri político da direita francesa – notas à margem das eleições legislativas de 1997).

A crise das instituições da 5ª República francesa, instaurada por De Gaulle em 1958, aparece assim no primeiro plano da nova situação política na França. As conseqüências imediatas no campo da direita foram a perda de controle do aparelho do RPR (o partido do presidente) pelos seus partidários, e uma pressão maior da extrema-direita para participar da reestruturação de um pólo radical com um setor da ex-maioria presidencial.

De outro lado, a coabitação agora instaurada deixa pouca margem ao presidente, diferentemente das duas experiências anteriores durante o reino de Mitterrand. Isso significa que os entraves institucionais à maioria parlamentar de esquerda e ao governo Jospin estão hoje reduzidos e devem permitir uma ação duradoura do governo, mesmo que formalmente o presidente ainda possa, após um ano, voltar a dissolver a Assembléia, o que é pouco provável.

A onda rosa

As recentes vitórias eleitorais do trabalhismo na Inglaterra e da esquerda na França, longe de serem um simples acidente na vida política européia, mostram que o velho continente está assistindo a um processo de mudanças radicais nas relações de força entre os setores conservadores e aqueles que procuram dar um rumo diferente ao curso imposto pela hegemonia liberal.

Apenas constituído, e antes mesmo do seu discurso perante a Assembléia Nacional francesa, o novo primeiro-ministro Lionel Jospin foi confrontado, na questão da Europa, por uma ofensiva das bolsas de valores, da mídia conservadora, dos governos liberais – principalmente o do chanceler Kohl – para que nada seja alterado na política que deverá desembocar na criação da moeda única em 1999. A simples solicitação por parte do novo ministro da Economia da França de um prazo maior para estudar os documentos constitutivos do chamado Pacto de Estabilidade, que deveria ser adotado pela conferência dos governos, provocou uma queda do franco, dos valores na Bolsa e uma agitação sem precedentes em todas as chancelarias.

Mas o fato novo é que, desta vez, ao que tudo indica, a idéia de mudar as regras de austeridade fixadas pelo Tratado de Maastricht, interpretando-as de maneira menos rígida, encontra apoio em vários governos que contam com uma forte presença social-democrata (os partidos socialistas ou social-democratas participam do governo de 10 dos 15 países membros da Comunidade Européia).

Um compromisso necessário

Após ter mostrado claramente que o Pacto de Estabilidade negociado em dezembro de 1996 em Dublin por Chirac e Juppé não dava resposta às necessidades de uma verdadeira política de emprego, Lionel Jospin aceitou assinar o mesmo na reunião de Amsterdã. Ficou evidente que o principal oponente a qualquer mudança na política de austeridade selada no dito Pacto é o governo liberal alemão. As exigências francesas foram aceitas, em parte, na decisão de convocar uma cúpula especial sobre a questão social e nos considerandos a respeito da necessidade de uma política comum em matéria de criação de emprego. Mas a recusa do chanceler Kohl em investir fundos comunitários novos para impulsar uma política ativa na matéria tira força das afirmações adotadas.

Aparentemente estaria se repetindo a experiência dos anteriores governos socialistas: a proclamação de uma série de exigências na oposição e o “realismo” no governo, reforçando a idéia de que uma única política é possível. No entanto, esta leitura deixa de lado a questão política central: o problema para Jospin, nos marcos das relações de força políticas, institucionais e jurídicas na Europa, era evitar uma crise política na construção européia que seria atribuída ao governo de esquerda francês (com conseqüências imediatas no plano da estabilidade financeira do país) e, ao mesmo tempo, introduzir um pé na porta do monetarismo, para começar a modificar o curso atual. Um passo atrás para evitar uma desestabilização prematura, mas a proclamação pública de que este compromisso fora imposto pela Alemanha, para logo poder questionar a sua própria aplicação.

O pacto de estabilidade exige a aplicação dos critérios de convergência não só na fase de estabelecimento da moeda única, mas também uma política permanente de restrição orçamentária que garanta um Euro (nome da moeda única) forte, sob controle do Banco Central europeu, instituição juridicamente independente do poder político. É significativo o fracasso da cúpula em reformar o funcionamento das instituições da Comunidade e em abrir-se aos países do leste. Poucos são os países, a começar pela própria Alemanha, que estão em condições de atingir este ano os objetivos fixados por Maastricht. Nestas condições, a discussão sobre os famosos critérios e a reforma das instituições voltará a ser posta na mesa e a renegociação dos diversos pactos estará na ordem-do-dia. Só que no ano próximo acontecem as eleições na Alemanha e dificilmente a coalizão de direita será reeleita se tentar aplicar, contra vento e maré, a política de austeridade.

Outro sinal das mudanças em curso foi o imediato cumprimento de um dos compromissos assumidos durante a campanha, e de grande valor simbólico perante o crescimento da repressão aos imigrantes e da xenofobia. Trata-se do anúncio da regularização de todos os estrangeiros sem papéis legais de residência, de acordo com critérios estabelecidos pela Comissão de Direitos Humanos da França. Ao que tudo indica, o próximo passo será a abrogação das leis Pasqua e Debré, que transformavam o imigrante no bode expiatório da crise social do país.

Mas será no plano do desemprego que se julgará a capacidade da esquerda em acabar de vez com o neoliberalismo. Os eixos centrais da política econômica da plataforma eleitoral do PS são: a redução da semana de trabalho a 35 horas, sem redução de salário (proposta esta que será negociada numa conferência nacional de representantes das organizações sindicais e patronais); um aumento do salário mínimo e do poder aquisitivo dos assalariados em geral; e a utilização de uma parte do orçamento, até agora usado para financiar planos ineficazes de redução do desemprego, para a contratação imediata por cinco anos de 350 mil jovens em trabalhos municipais ou de interesse público. Evidentemente, seu ritmo de implementação deverá levar em conta a necessária convergência das políticas econômicas na Europa e o resultado das eleições do próximo ano na Alemanha, mas há urgência em responder ao drama social de 5 milhões de desempregados e também à turbulência que agita o mundo do trabalho.

A união das forças de esquerda na França, necessária à existência de uma maioria parlamentar para o governo – o PS não detém a maioria sem os deputados verdes e comunistas – será posta à dura prova nos próximos meses. Serão exigidas maturidade e flexibilidade política muito grandes para não levar ao fracasso uma experiência-chave para as forças populares e que, na França, poderia trazer conseqüências extremamente negativas para os trabalhadores e imprevisíveis para a democracia, vista a força adquirida pelo nacionalismo racista e xenófobo da extrema-direita de Le Pen.

Luis Favre é militante do PT na França.