Cultura

Entrevista com José Miguel Wisnik

Durante muitos anos José Miguel Wisnik, 49 anos, estudou piano para ser concertista. Primeiro em sua cidade natal, São Vicente, depois em São Paulo, com o maestro Souza Lima. Mas sua vida tomaria outro rumo a partir do momento em que resolveu estudar Letras. Seu destino seria a sala de aulas, não os palcos. Foi na Universidade de São Paulo, na cadeira de Literatura Brasileira, e como ensaísta que primeiro firmou sua reputação.

Mas a música continuaria ocupando lugar destacado na vida do professor José Miguel, como “segredo bem guardado ao qual só alguns amigos tinham acesso”. Ou então como objeto de pesquisa acadêmica, paralelamente aos estudos de teoria literária. Sua tese de mestrado versará sobre “a música em torno da semana de 22”, introduzindo-o num dos seus temas prediletos, a relação entre música e literatura.

Quanto à sua criação como músico, deixou de ser privilégio dos amigos em 1993, com o lançamento do CD que leva seu nome, em que canta e participa ao piano. Se bem que antes algumas de suas canções já tivessem chegado ao disco nas vozes de Cida Moreira, Ná Ozette e Vânia Bastos.

Recentemente foi a vez de Zizi Possi, que incluiu duas músicas suas em CD elogiado. Há ainda realizações como a trilha para o filme Estrangeiro e “Nazareth”, “uma interpretação de Ernesto Nazareth em contraponto com certos temas musicais de Machado de Assis”, para o Grupo Corpo. E em preparação, outra trilha para o Corpo, em parceria com Tom Zé e, prontas para serem gravadas, as canções do próximo disco.

O conceito MPB nasceu para se referir a uma música que expressava, além de uma determinada forma estética, algum sentimento político de afirmação nacional. Mas, MPB ganhou outros sentidos, hoje se usa de uma forma muito mais vasta. Então, MPB pode ser genericamente toda a música produzida no Brasil, de Chico Buarque a Skank ou Leandro e Leonardo. Como poderíamos falar hoje numa MPB? 

A sigla MPB data da época dos festivais dos anos 60 e portanto da primeira geração pós-bossa nova. A bossa nova criou um patamar de música urbana diferente de tudo que existia desde que se formou a música popular urbana, o samba no Rio de Janeiro e tudo que se criou nos tempos da Rádio Nacional.

Desde a década de 30, a música popular urbana veio sendo reconhecida ou construída como símbolo nacional. De Noel Rosa a Dorival Caymmi, Ary Barroso, e o samba-canção. Tudo isso dá um salto na bossa nova, que faz uma releitura radical dessa tradição por intermédio de João Gilberto, criando uma nova concepção harmônica que está ligada a Debussy, assim como também ao jazz (por Tom Jobim). Mudam-se as letras das canções, que passam a ser feitas por letristas com alguma formação literária, que leram Drummond, Mário de Andrade, ou como o próprio Vinícius de Moraes, que era um poeta do livro que migrou para a canção.

Portanto, formou-se um tipo de música popular urbana dotada de uma nova concepção harmônica, poética, rítmica, vocal, e que teve enorme conseqüência sobre as gerações seguintes. Entre estas, aquela geração que se formou na bossa nova, mas com as inquietações políticas que estavam presentes na década de 60. Estas inquietações, que fermentavam no meio universitário, foram desaguar nos festivais universitários da canção e naqueles promovidos pela televisão. Foi aí que surgiu a sigla MPB, como se fosse uma frente de afirmação e defesa da música brasileira, consolidando a impressão de uma música urbana de nível universitário, como se dizia, acima da música de massa, de Roberto Carlos a Nelson Ned, marcada ao mesmo tempo por uma proposta de cultura brasileira que se opunha à pressão da música estrangeira.

Como o tropicalismo entra nisso?

O tropicalismo atuou nesse mesmo território dos festivais, mas dissolvendo a idéia defensiva da música brasileira como uma categoria especial. Para a tropicália, a música brasileira tinha que se pensar como parte do fenômeno da música industrial, ao lado do romantismo de massas que vai bater em Nelson Ned e Waldick Soriano, junto com samba de roda e Jimmy Hendrix. Na verdade, é uma música urbana que tem inserção no processo de transnacionalização da música, mas com força criativa e crítica, uma intervenção claramente brasileira num quadro internacional. Essa intervenção punha em discussão os pressupostos político-estéticos da MPB como sigla de uma frente que se afirmasse pelo combate às impurezas do mundo. Mas, o AI-5 veio interromper, entre muitas outras coisas, essa discussão. Depois disso, a idéia de MPB vai perdendo sentido, e é usada com diferentes acepções e alcances. Mais tarde, vem o rock nacional, a moda sertaneja, o pagode, ao mesmo tempo que prossegue uma coisa que, na falta de outro nome, continua a se chamar de MPB.

De certa forma, é isso que mais interessa: existe uma música no Brasil que o mercado não consegue rotular inteiramente, o que é um sinal de vitalidade da música popular no Brasil. MPB pode servir para Edu Lobo, Guinga, Caetano, com as reservas que eu já apontei. E para Skank, Chico Science, Ed Mota, Cássia Eller, Titãs, Paralamas e Sepultura? Quais são as fronteiras que distinguem claramente uma coisa da outra? MPB serve e não serve para definir uma produção de música urbana vital, em processo de transformação, com muita absorção de diferentes sons e dotada de diferentes sotaques, que vão se modulando, se combinando e se contrapondo.

Ao contrário de quem acha que a música no Brasil teve grandes momentos e depois uma decadência, há diversidade e qualidade muito grandes, hoje, embora isso tenha perdido muito da evidência, e principalmente muito daquele poder de galvanização que foi marca das possibilidades e também das ilusões de um outro período.

É verdade também que a segmentação do mercado isola a música de qualidade mais densa num bolsão de consumo, quando uma das originalidades da música popular brasileira que veio da bossa nova foi ter criado a possibilidade de colocar às vezes canções da mais alta qualidade à vista de muita gente. Isso já aconteceu no Brasil, e não é fácil que aconteça quando a indústria cultural se instala pra valer: música que dá dinheiro é uma coisa e música de qualidade é outra. Em poucos lugares qualidade e ressonância se cruzam de fato, e no Brasil muitas vezes isso pôde acontecer de uma maneira que deixou marcas profundas. A gente poderia até imaginar que estávamos numa linha completamente descendente e que não viriam gerações novas que ocupassem o lugar daqueles que continuam produzindo até hoje. Mas não, de fato houve uma última leva que transformou…

Quem, por exemplo?

Carlinhos Brown, Chico Science, Arnaldo Antunes. Outras figuras menos conhecidas, mas fortes, como o Chico César, que fez sucesso, e quem não fez ainda, como Lenine e Marcos Suzano. Tudo isso são sinais de vitalidade, indicadores de uma nova leva de criadores de qualidade. Sem falar na música instrumental.

Nos anos 60, foi formulada a idéia de que a música brasileira teria uma linha evolutiva. Essa ideia é válida para a época e para agora?

Linha evolutiva significa que a música popular no Brasil desenvolve um grau de autoconsciência que caracteriza os momentos de maturidade de certas expressões artísticas, quando estas têm uma consciência de si mesmas, a consciência de que não são apenas entretenimento, mas de que fazem parte da constituição de uma linguagem. Essa expressão foi usada por Caetano Veloso no momento em que diz que estava querendo fazer algo que retomasse a linha evolutiva de João Gilberto. O que na verdade era o tropicalismo.

A linha evolutiva significa que João Gilberto faz uma coisa que representa uma atualização do samba no Brasil, algo que foi buscar em Caymmi, Ary Barroso e Assis Valente, e em Ciro Monteiro por um lado e em Orlando Silva por outro. Ele lê Orlando Silva como o cantor que tem o senso da melodia contínua no arco da voz e Ciro Monteiro como o cantor rítmico, da voz quase percussiva. Como se um fosse a voz dos instrumentos de cordas e de sopro; o outro, a voz dos instrumentos de percussão. João Gilberto sintetiza e combina uma voz que tem ao mesmo tempo a possibilidade de usar a melodia como ritmo e o ritmo como melodia. Há aí então uma leitura da tradição que a leva a dar um salto qualitativo.

Falamos em linha evolutiva na medida em que a existência de uma espécie de reflexão sobre a produção anterior leva o sujeito a selecionar, escolher e fazer daquilo uma coisa nova. O tropicalismo, então, retoma a bossa nova, faz uma reflexão sobre o que é a canção, o que é o choque entre o arcaico e o moderno no Brasil, vanguarda e massa, populismo e luta de classe, lirismo e mercado. A paródia no tropicalismo põe em contraponto o iê-iê-iê romântico e a seresta, a canção brasileira e o pop, problematizando o campo da música popular e da cultura, o que só foi possível depois da reflexão sobre o samba contida na bossa nova. Essas coisas pressupõem uma consciência do processo, e é isso que define a “linha evolutiva”, o amadurecimento de uma autoconsciência da canção.

É importante observar também que o tropicalismo falou em retomar a linha evolutiva da bossa nova, mas o faz no sentido da diversificação, de uma multiplicidade de linhas. A influência de João Gilberto se abriu num leque que vai de Chico Buarque e Caetano Veloso a Roberto Carlos e Jorge Benjor. Podemos dizer que é uma linha que se abre em quatro diferentes linhas, no mínimo, que por sua vez se multiplicam em tantas outras. E este é um reconhecimento também do modo de ser da música do Brasil, a multiplicidade das expressões culturais do país e dos tempos em que vivemos, desde o tempo do samba ou da música regional, até o da música mais contemporânea e experimental, que também é uma variação da cultura brasileira.

Podemos dizer que temos também as grandes gerações de sínteses, com João Gilberto e Tom Jobim, com Chico Buarque e Caetano Veloso, e com os que vieram um pouco depois, uma geração importante que encontrou as sínteses já feitas: Luiz Melodia, Djavan, Alceu Valença, João Bosco e tantos outros.

Agora temos a geração do rock nacional, que passou pela experiência de incorporar o rock, e também pela decorrência natural de incorporar a conversa com a música brasileira, que se pode ver nos Paralamas do Sucesso ou no Lobão, por exemplo; em Ed Mota, que é ligado ao soul, mas que de repente se volta para Tom Jobim, Chico Buarque ou Guinga. O importante é que esse diálogo continua e tem passado também por Arrigo Barnabé e por Itamar Assunção, a música paulista, coisas que não alcançaram quantidade mas que são marcantes. Esse diálogo está também no Carlinhos Brown, no Mangue Beat, em Arnaldo Antunes.

Estas pinceladas mostram que a música urbana no Brasil tem enorme importância e riqueza, além de ser, ao lado do futebol, a forma privilegiada pela qual o país fala com o mundo e expressa sua singularidade, dialogando com as manifestações de ponta sem carregar obrigatoriamente o estigma de país periférico.

Existe um pensamento com certa influência que, recorrendo aos conceitos de música artística e música de entretenimento, situa como expressão da primeira a música européia, de concerto, às vezes o jazz; e como expressão da segunda, o resto, inclusive Tom Jobim, Caetano, Chico Buarque, concebidos como algo menor. Você vê fundamento neste raciocínio?

Não temos nenhum critério para definir de antemão a fronteira entre a música de entretenimento e a artística. Diria que a música de entretenimento é aquela que tem uma função basicamente passageira; ela distrai, dá prazer num determinado momento e, uma vez usada, cumpre sua função e é esquecida, dando lugar a outra. Fica só uma memória residual com uma conotação de época, digamos um folclore de época. Já a música artística é aquela que, ao contrário, transcende à época, permanece na memória coletiva como algo que continua a fazer sentido.

Nas manifestações da linguagem humana existem aquelas que se limitam a uma função imediata e que uma vez usadas são dejetadas. E existem aquelas que ficam guardadas, porque têm a capacidade de ultrapassar a sua função imediata. É o fato de elas terem algo que não se gasta com a mesma facilidade que lhes dá um valor diferente.

Podemos dizer que na música brasileira há uma memória viva de canções que todo mundo conhece e que atravessam décadas e continuam a falar para a gente. Essas canções não são mero entretenimento, embora tenham sido feitas para isso. São dotadas de um valor poético, musical, que continua a interessar como forma de interpretação da realidade, objetos de consumo não inteiramente identificados, isto é, nunca inteiramente consumíveis, portando a contradição de serem passageiros e duradouros. O tempo vai dizer do alcance deles, e também do alcance de músicas consideradas “elevadas”.

No pensamento de esquerda, esta tendência a negar valor artístico à nossa música com base no conceito de “música de entretenimento” se apóia na crítica à indústria cultural formulada pela Escola de Frankfurt, particularmente em Adorno. Como você analisa isso?

Na década de 60, o pressuposto dominante na crítica de esquerda era o nacionalismo da cultura popular genuína, com base no qual se fazia oposição à música de massas internacional. Mas, as gerações são cada vez mais formadas e forjadas sob a pressão da música pop internacional e na porosidade das culturas: duas coisas opostas e combinadas, que se anulam e misturam em alguma medida que ninguém sabe determinar. O certo é que quase ninguém vive mais em nichos nativos que teriam como valor a pureza originária. O que desloca o problema para um outro lugar que poderia, agora, ser colocado em termos frankfurtianos.

Surge aí a questão de que o suporte da transnacionalização da cultura é a indústria cultural. Esta, segundo a crítica de Adorno, promove um fenômeno que ele chama de regressão da escuta, ou seja, o efeito que consiste em não se ouvir mais música, ou melhor dizendo, só ouvir nela o que tiver de exterior: moda, novidade, rótulo, impacto, enfim, mercadoria. Ato que viria sempre acompanhado da sensação frustrante que por sua vez realimenta o consumo. O ouvinte formado, ou forjado na indústria cultural, não estaria escutando a música mesmo, porque não faz o silêncio interior necessário, mas busca de antemão o reconhecimento de alguma fórmula estereotipada à qual a música ouvida teria que corresponder. É a idéia da estandardização inerente ao domínio da indústria cultural, ao lado da sua outra decorrência mais complicada ainda, a regressão da escuta.

O diagnóstico de Adorno sobre esse efeito é preciso e descreve um fenômeno que de fato ocorre em níveis de realidade que são de um certo modo avassaladores. Mas não descreve tudo, e se a gente achar que descreve tudo, perde o pé de qualquer atuação política bem como o senso da identificação das forças em jogo, que não são essas. E elas estão também no coração da música de massas, no mundo. Pode-se pensar isso como uma luta de forças de diferentes naturezas.

Exemplificando, um fato que corresponde à análise de Adorno da regressão da audição é a forte tendência a escutarmos música erudita como se ela fosse chupada pelo uso que os meios de massa fazem dela. Quem ouve Debussy não ouve mais a sua música, mas só os efeitos que as trilhas de cinema extraíram e estandardizaram. Isso é regressão da escuta: Debussy vira cinema (insisto: na própria percepção do ouvinte); Stravinski vira desenho animado; música eletrônica vira vinheta de televisão. Em vez da criação de sonoridade e linguagem, a escuta consumística só vê e só quer ouvir efeitos hedonisticamente confortáveis ou, de uma forma masoquista, violentos. Não deixa de ser interessante reconhecer que Stravinski tem de fato algo a ver com o mundo de massas e o desenho animado (o próprio Adorno o disse, criticamente), a música eletrônica com efeitos técnicos de música de fundo, e que no próprio Wagner havia em potência todo Walt Disney. Mas, reconhecer isso já demonstra capacidade de hiper-escuta pós-pop, como aquela praticada pelo próprio tropicalismo. A regressão da escuta propriamente dita seria a incapacidade de ouvir a não ser efeitos imediatistas. Diante dela, qualquer música vira imediatamente trilha, desenho animado, videoclipe, publicidade, e lixo. Tudo isso não está só no consumidor, mas pode ser reconhecido também e talvez cada vez mais na produção.

Tudo isso daria razão total a Adorno se não existisse dentro da música atual, de massa ou não, a condição e a capacidade de exercer a consciência de seus próprios processos, de fazer as músicas dialogarem entre si, e de não caírem na mera estandardização. A música do Carlinhos Brown, que é maravilhosa, que não é pagode, sertanejo, nem axé music, ocupa algum lugar no coração da música de massas, tem uma presença e representa algo. Chico Science, antes de morrer, iria fazer no Carnaval de rua em Recife uma coisa com Antônio Nóbrega, para puxar por um outro carnaval que se contrapusesse ao puro tchan, à dança da garrafa e à música baiana de massa com metaleira, paixão nacional e jingle. Seria o experimento de uma outra força, ir para a rua de uma forma não ressentida, mas para trazer à tona o desejo de um outro carnaval. Retomando aquela oposição da década de 60, entre “apocalípticos” (os que são contra a cultura de massas) e os “integrados”, eu diria que há um processo geral de integração ao mercado, que talvez seja justamente “apocalíptico”, mas apocalipse significa difusamente tanto catástrofe quanto revelação, e o destino do apocalipse que estamos vivendo e que vamos viver ainda não está decidido, e é isso que interessa.

Como você vê a crise profunda pela qual passa a escola tradicional de música, o conservatório?

Na verdade, a vida musical funciona através de grandes “escolas”, no sentido de tradições que se mantêm muitas vezes de maneira informal e paralela à existência de escolas. A tradição que mais exige escola sistemática é a da música de concerto ocidental: é preciso aprender leitura, teoria, é preciso ter orquestras sinfônicas, instrumentistas, solistas, cameristas, é preciso preservar e manter vivo um repertório. Ela é também, às vezes, uma base para o desenvolvimento de outros estilos e repertórios.

O jazz, por outro lado, é uma grande escola, que teve uma grande irradiação. Especialmente entre instrumentistas é quase que necessário que se aprenda algo da técnica da improvisação jazzística. Ainda no sentido lato da palavra, há a escola do samba (além da escola de samba), do blues, do rock, da canção brasileira e da música instrumental brasileira, a escola do choro. E além dessas diferentes tradições existe também, o que é um traço da música de hoje, a escola da mistura dessas escolas. As pessoas se interessam e se formam ouvindo muitos repertórios e estilos, tocam um e outro e os misturam.

As instituições escolares tradicionais perderam a capacidade de dar conta desse processo. O conservatório, que tinha uma função de manutenção da tradição européia – o pianista num curso de 9 anos, que obedecia o programa do Conservatório de Paris – foi perdendo espaço à medida em que crescia a preferência das pessoas por tocar teclado, música pop, música evangélica etc. Na medida em que o conservatório foi deixando de corresponder aos novos padrões, foram surgindo escolas livres que se transformavam para atender a essas demandas do mercado, aumentando assim a dificuldade de se manter aquele caráter da escola tradicional, de “conservadora da tradição da música erudita”. Mesmo conservatórios antigos de São Paulo, que são fortes na formação de instrumentistas de música clássica, foram tendo dificuldade de sustentar esse perfil.

Essa situação supõe que a escola precisa mudar de cabeça, e que ela teria que ser repensada por uma nova pedagogia, que não está sistematizada em lugar nenhum, embora muitos elementos para isso estejam dados.

Como esta situação se manifesta?

São dois movimentos complicados de se definir e entender bem, porque são contraditórios e complexos. Por um lado, a decomposição do ensino tradicional, onde ele existiu, e, por outro, a formação crescente de jovens músicos de orquestras, ou instrumentistas em vários gêneros, técnicos de gravação mais conscientes e às vezes dominando múltiplos repertórios que vão da canção popular à música eletrônica. Uma coisa que participa disso é a existência de faculdades que bem ou mal contribuem para renovar o ambiente e diversificar a formação de instrumentistas, não só de pianistas, como era dominante até a década de 60, mas também de outros instrumentos, até mesmo capacitando-os para transitar por esses cruzamentos de linguagens a que me referi.

Precisamos de um pensamento sobre a música e sobre a pedagogia musical, por meio do amadurecimento e da interligação dessas várias contribuições. Seja a contribuição daqueles que estão produzindo livros sobre harmonia, sobre arranjo, repertórios de música popular brasileira, como os songbooks feitos pelo Chediak; sejam as contribuições sobre a teoria da música e da canção, como os trabalhos do Luiz Tatit, a Semiótica da Canção: Melodia e Letra e Cancionista: Composição de Canções no Brasil; seja o trabalho de pedagogia musical que foi desenvolvido por Ricardo Breim, Hermelino Neder e Elisa Zein. Esta equipe desenvolveu o chamado Projeto de Alfabetização Musical, encomendado alguns anos atrás pela Secretaria de Educação do estado de São Paulo, que consiste num método original e precioso para trabalhar com música com crianças do primeiro grau. Infelizmente, a Secretaria de Educação, incoerentemente, arquivou o projeto, que resultou numa verdadeira conquista prática e teórica, além de ter representado um investimento material e simbólico desperdiçado. Mas mesmo assim as potencialidades do método vêm sendo desenvolvidas na prática por alguns professores animados e animadores, em escolas de diferentes cidades, com resultados notáveis.

Esse método, um verdadeiro achado, não é casual, é resultado de um amadurecimento do pensamento sobre música nos últimos tempos em São Paulo. Ele poderia e deveria ser potencializado, pois é uma alternativa que se contrapõe à experiência musical da mídia bruta. Não acho que se deva restringir a presença de música estrangeira no rádio, por exemplo, porque essa triagem será sempre suspeita, sempre estará sendo feita por critérios discutíveis. O que devemos é disseminar um modo de trabalho com música que ofereça isso que a escola faz, que é valorizar a qualidade do repertório, fazer experiência sobre a linguagem. Se você trabalha com métodos desse tipo, o resultado é que as crianças poderão contrapor essa experiência direta com aquilo que a TV, o rádio etc. trazem de maneira maciça e imediata. Passa-se a praticar uma experiência formadora que coloca a criança em relação com uma tradição e a torna capaz de se apropriar dela e fazê-la presente.

Coisas desse tipo existem. Não estamos inteiramente destituídos de ferramentas, estas vêm sendo fabricadas. Os songbooks não existiam, faltam muitos, existem lacunas enormes, mas vai se ganhando terreno com isso. A reflexão sobre a canção não existia, mas vai se fazendo, assim como as alternativas para se trabalhar com musicalização. Ao mesmo tempo que as intervenções também educadoras, como a que o Carlinhos Brown realiza no bairro do Candial, em Salvador, e o que Chico Science estava querendo fazer em Recife. São artistas que sentem o compromisso com a cidade de onde vem sua experiência musical e trabalham com isso. Devemos tomar esses sinais como mostra de alguma coisa que se contraponha tanto à falência das instituições, ao desinteresse público, como à dificuldade até de se compreender esse estado de coisas e a própria confusão do mundo contemporâneo, o poder da mídia etc. Eu acho que se devem criar experiências de educação artística e musical que virem referências e que façam uma nova análise desse quadro da música artística e da indústria cultural. Que não seja uma intervenção que se pretenda colocar idealmente fora do mundo da cultura de massas, mas que se proponha a estabelecer contrapontos vivos.

Ozeas Duarte é assessor da Executiva Nacional do PT.

Paulo Baía é economista, professor na PUC-SP.