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Para o pintor baiano T.Gaudenzi, a leitura de Os Sertões despertou sua paixão pelo episódio histórico ocorrido em Canudos há cem anos. Seu trabalho "Projeto Canudos" reúne mais de quatrocentos desenhos, entre os quais os que ilustram este texto.

O tema Canudos é apaixonante1. Em torno dele, as discussões são acirradas. A existência de milhares de estudos sobre o Conselheiro e seu arraial não esgotaram o debate. Há quem diga que há ainda um bom meio século de pesquisa pela frente para que se elucide o que ocorreu por detrás das paredes do Belo Monte, como era também conhecido. Não foi uma tragédia pequena: milhares de pessoas foram massacradas pelo Exército brasileiro, que também não perdeu pouca gente. Foram necessárias quatro expedições militares, um ano de combate e o envolvimento de um terço da força militar do país. No dia 5 de outubro de 1897, restavam cinzas e milhares de corpos dos insurretos.

Canudos não se rendeu! Ficou o grito, que ecoa até hoje, a desafiar os contemporâneos, a provocar os estudiosos de diferentes matizes. O curioso a destacar em Canudos é que a lembrança não tem apenas o sentido historiográfico. Não se trata apenas da busca do indispensável conhecimento, do resgate da memória histórica. Canudos permanece como fenômeno político, como, podemos dizer assim, instrumento nas mãos dos que desenvolvem a luta política nos dias de hoje. Se nos detivéssemos na Bahia, todo ano, em outubro, em Canudos, há comemorações de claro conteúdo político-religioso, encabeçadas tanto diretamente pela Igreja Católica, com a bênção da CNBB, quanto pelo Movimento Histórico de Canudos, este dirigido pelo ex-padre Enoque José de Oliveira, que se considera um dissidente da Igreja Católica e parte do que chama Igreja Popular.

Claro que nos anos mais recentes houve esforços, tímidos ainda, do Estado brasileiro para se apropriar do tema, quem sabe com o objetivo de domesticá-lo, enfrentá-lo mais como algo museológico, e não como um fenômeno que ainda provoca conseqüências políticas, como de fato provoca. Financiamentos de filmes, a criação do Parque Estadual de Canudos, entre outras coisas, indicam que o Estado não está indiferente ao episódio. E essas tentativas não querem dizer, também, que elas sejam negativas para o próprio resgate histórico de Canudos. Apenas querem significar que, centenário, o fato histórico já pode ser disputado por diversos atores políticos. De alguma forma, sem a pretensão de ser esquemático, pode-se dizer que há uma disputa de hegemonia em torno de Canudos, em torno de sua interpretação e no que se refere ao seu significado para os dias atuais.

Para além do fenômeno religioso em si, absolutamente essencial no caso, o fato de Canudos ainda ocupar tanto espaço político, especialmente nos movimentos populares ligados à questão da terra, está vinculado obviamente à concentração da propriedade, à miséria e ao desemprego no campo. Quando milhares de pessoas se reúnem todo ano na Bahia nas comemorações de outubro – e para ficar só no exemplo baiano – evocam a fome, a falta da terra, o analfabetismo, a ausência de assistência médica, que são gritantes nos confins de Canudos, de Uauá, de Euclides da Cunha, de Monte Santo, de Queimadas, de Cansanção, entre tantos municípios que formavam o entorno do Belo Monte. Sem qualquer exagero, no caso baiano as condições de miséria e abandono da população do campo são muito semelhantes às do século XIX. Só não sabe quem acredita ingenuamente na propaganda desenvolvida pelo poder político local, que é extremamente incompetente quando se trata de enfrentar problemas sociais. Ou, dito de outra maneira, mais correta, um poder que não tem qualquer sensibilidade para tais problemas.

Que homem foi o Conselheiro? Terá sido simplesmente um místico ensandecido que, ao voltar-se contra a República, juntou gente em torno de si? Ou seu significado vai muito além disso? Claro que não se pretende responder a isso de modo exaustivo porque o editor é rigoroso no espaço concedido.

Antônio Vicente Mendes Maciel, que foi também Santo Antônio dos Mares, Santo Antônio Aparecido, Santo Conselheiro, Bom Jesus Conselheiro, mas que foi especialmente Antônio Conselheiro, nasceu em Quixeramobim, em 1930, e desde menino gostava de pregar. O pai, Vicente Mendes Maciel, queria vê-lo padre. Fez o filho iniciar-se nas letras, no português e no latim. Se não conseguiu torná-lo sacerdote, formou um homem de muitos conhecimentos, de muita leitura, e que ao menos tornou-se um herdeiro do que poderia ser chamado catolicismo popular, ou devocional, que cresceu na esteira da crise e degradação moral da Igreja Católica de então – ou do farisaísmo dela. Antes de fixar-se inteiramente na condição exclusiva de pregador, Conselheiro fez de tudo um pouco para sobreviver: amansou cavalos, foi caixeiro, rábula, professor primário.

Quando Conselheiro surge como pregador, os padres viviam uma crise moral de bom tamanho. Pregavam uma coisa e faziam outra. Do púlpito, defendiam o celibato mas espalhavam filhos pelo mundo. Queriam-se pastores de um amplo rebanho, mas privilegiavam os poderosos, acumpliciando-se nitidamente com o latifúndio. Conselheiro surge pregando, defendendo o catolicismo e sua moral rígida – e seguindo-a. Não era, no entanto, apenas um pregador. Caminhando pelo Nordeste, ia dirigindo a construção de açudes, de barragens, de igrejas, sempre em regime de mutirão.

Em Monte Santo, já na Bahia, reformou toda a via sacra, que serpenteia o morro contíguo à cidade. Construiu inúmeras igrejas, entre as quais a de Senhor do Bonfim, em Chorrochó, e a de Crisópolis. Tem, assim, um discurso religioso coerente, contrastante com o da Igreja Católica, e uma prática solidária, generosa, atenta tanto às necessidades devocionais do povo quanto às materiais – e as barragens e açudes são um exemplo disso. Seus exageros – como o de não admitir que se usasse pente de osso, ou pedir um rigor absoluto no vestir – vão diminuindo enquanto vai tomando contato com o povo.

Ao contrário do que às vezes se difunde, não estimulava nenhuma deificação de si próprio. Quando alguém se ajoelhava diante dele, alertava: – Não se ajoelhe diante de mim que eu não sou Deus. Não tinha a pretensão de substituir os sacerdotes da Igreja Católica. O padre Vicente Sabino, do Cumbe (atualmente Euclides da Cunha), prestava assistência religiosa aos insurretos de Canudos, e vai pagar com a prisão, por essa atitude, quando da expedição Moreira César.

Em 1877, um ano depois de chegar à Bahia, Conselheiro vai se defrontar com a grande seca. É um momento, assim, de grande mobilidade, de populações inteiras correndo em busca do que beber e do que comer, errantes. Ele, ao tempo em que punha mãos à obra na construção de açudes e barragens, pregava. E os camponeses o ouviam, certos de que ali estava a esperança. Era em Deus que se devia buscar o conforto, defendia. E o povo o seguia. O seu séquito crescia em meio a uma ordem coronelística injusta, massacrante, cruel. E na Bahia a sua pregação já se modificara. Sua fala já flui com muito mais facilidade, já se sabe um líder. Ele não tem dúvida em louvar a abolição da escravatura. É um ponto de convergência para os explorados, para os negros, para os índios, para os excluídos de todas as origens.

Não aceita a República. Ela afronta seus princípios religiosos. É, na visão dele, uma intervenção temporal nos negócios divinos. Não aceita o casamento civil. Não concorda com o ensino laico. E prega o não-pagamento de impostos, já que a considerava ilegítima. Quando ele pára em Canudos, e decide ali construir uma cidade, dá um sinal às classes dominantes. A terra que os seguidores de Conselheiro ocupam era simplesmente do todo-poderoso Barão de Geremoabo, título nobiliárquico de Cícero Dantas Martins, um dos maiores latifundiários da Bahia. As fazendas Canudos, Cocorobó e Poço de Cima eram, mais precisamente, da sobrinha dele, Mariana Fiel Dantas de Carvalho. Os sem-terra, aceitando a liderança poderosa de Conselheiro, tomaram conta daquela imensidão. E o Barão de Geremoabo se irritou muito, disse que aquilo só podia ser coisa de comunista – o que indica que o barão era homem de poucas leituras.

Não se sabe exatamente o tamanho da terra ocupada, mas sabe-se que de Canudos até o final da Fazenda Cocorobó era necessário percorrer dezoito quilômetros. E que quase 9 mil hectares dessas terras eram muito férteis, às margens do Rio Vaza-Barris. Toda pessoa que chegava a Canudos recebia uma espécie de cesta básica, possível porque havia um fundo comum, e uma sorte de terra, de 2,47 hectares, que pode parecer pouco, mas que, num vale fértil, e para dar os primeiros passos, não é. Canudos montou uma estrutura produtiva muito solidária – e isso tem a ver com as próprias necessidades de sobrevivência da comunidade e, naturalmente, da liderança de Conselheiro.

Há notícias de grandes safras de feijão gurutuba, de cana, de milho, de mandioca. Do desenvolvimento da criação de caprinos. Neste caso, vendia-se a pele para os mercados vizinhos, particularmente para Juazeiro, e a carne servia para a alimentação. Desenvolveram-se, também, pequenas indústrias de sal, de pólvora, de curtumes. O Barão de Geremoabo, nas denúncias que faz de Canudos, diz que o arraial estava desorganizando a produção da região porque os trabalhadores o seguiam e porque muitos proprietários pequenos e médios vendiam seus bens e levavam o dinheiro para Canudos, colocando-se sob a liderança do Conselheiro. E havia, ainda, muitos que permaneciam com suas propriedades, mas eram fiéis do Conselheiro.

O fato é que os moradores de Canudos, com estrutura, não viviam na miséria e muito menos viviam de roubos, como seus inimigos chegaram a dizer à época. Por incrível que possa parecer, o gado do Barão de Geremoabo, solto naquela imensidão, era preservado por ordem do Conselheiro. Não há uma sociedade de cuscuz e mel, um paraíso na terra. Não há uma sociedade sem diferenças, sem comércio, autóctone, fechada em si mesmo, onde não corria dinheiro. Nada disso. A existência de um comerciante poderoso, como Antônio Vilanova, e de vários outros, como Antônio da Mota e Joaquim Macambira, é demonstração disso tudo. Muitos dos comerciantes não tinham outro objetivo senão os comerciais. Até mesmo coronéis da região, mais pragmáticos, estabeleciam fortes laços comerciais com o arraial, sobretudo comprando peles.

Mas há inegavelmente um esforço bem-sucedido de não reproduzir as relações de propriedade e poder vigentes na sociedade global. Mostra-se que isso era possível, e perigoso para a nova ordem, que continuava oligárquica. E, além de tudo, montou-se um mini-Estado no interior de Canudos, onde Conselheiro era a grande autoridade moral e política; João Abade, uma espécie de prefeito; Antônio Vilanova, o correspondente a um secretário da Fazenda, e Pajeú, o comandante militar. Até uma espécie de exército regular se criou, que era a Guarda Católica, que vai desempenhar papel fundamental na guerra contra o Exército brasileiro.

Sem nenhuma dúvida, Canudos é reflexo de uma estrutura social profundamente injusta. De um Nordeste assentado no latifúndio e imerso na estagnação. A pregação do Conselheiro encontra eco. Havia a possibilidade do conforto em Deus – e aquele fantástico pregador, cheio de conhecimentos, era a demonstração de que tal conforto não era um delírio – e, ainda, quando surge Canudos, demonstra-se que, dividindo-se um pouco o que todos tinham, dava para viver bem melhor.

Em nome da República, todos vão se levantar contra os conselheiristas. Era necessário massacrá-los tanto porque eram contra a República como porque tinham dado um perigoso exemplo de auto-organização. No decorrer da luta, entre os intelectuais apenas Machado de Assis mostra-se contrário àquele massacre. Depois, Euclides da Cunha, com seu Os sertões.

Dizer, como disse recentemente o vice-presidente da República, Marco Maciel, que sem a derrota de Conselheiro a República não teria se consolidado, é parte da visão profundamente autoritária das classes dominantes brasileiras. Canudos não era uma ameaça à República. Poderia, sim, se o seu exemplo se espraiasse, se o sertão virasse mar e o mar virasse sertão, se a terra fosse mais compartilhada, criar problemas para uma República oligárquica que, de alguma forma, persiste até os dias de hoje. Quem sabe teríamos, então, uma república mais democrática. Exterminar Canudos foi um crime que contou com a colaboração de todo o aparato dominante brasileiro – o Estado em si, a Igreja Católica, os meios de comunicação, os intelectuais, todo mundo – e do qual até hoje ninguém fez autocrítica. Lembre-se – essa observação é do professor Manoel Neto, da Universidade Estadual da Bahia – que o cardeal D. Lucas Moreira Neves, primaz do Brasil, por exemplo, nunca escreveu uma única linha sobre Canudos, apesar de outros bispos participarem ativamente da organização da Romaria de Canudos. Canudos entra a história brasileira, como diz o professor José Calasans, talvez o maior estudioso do tema no Brasil, "como uma página de inconcebível violência dos vencedores". Estes, degolaram combatentes, crianças, velhos, mulheres, quem encontrassem pela frente. Sobraram muito poucos para contar a história.

A recorrência a Canudos hoje pode ser tomada, e o é, como um exemplo de resistência. Os movimentos populares retomaram-no, às vezes como uma boa fonte de inspiração. Mais do que tudo, valoriza-se o exemplo da luta, a disposição para o combate em condições adversas. Também, microscopicamente, como a demonstração de que é possível uma sociedade alternativa, solidária, especialmente nesses tempos em que se descarta qualquer experiência que não seja aquela baseada na desigualdade como alavanca para o desenvolvimento.

E só é possível tanta presença de Canudos atualmente por conta de que os problemas sociais, de variada natureza, nas cidades e nos campos, continuam agudos e sem perspectiva de solução. Ou os excluídos se organizam e lutam, ou a miséria cresce, a fome aumenta, a terra escasseia. E cabe dizer, também, que Canudos está tão presente por conta da religiosidade do povo brasileiro. As romarias anuais da Bahia, por exemplo, se têm um lado profano forte, têm também um conteúdo religioso bastante acentuado. De alguma forma, pensando de outra maneira, Canudos é um exemplo de que não é possível fazer política sem conhecer as raízes culturais e religiosas do povo.

Claro que Canudos pode, também, prestar-se a equívocos. Como o da idealização, o de acreditar na existência de uma sociedade socialista, quase comunista, igualitária, nos sertões baianos, o que, em si, não acarreta grandes conseqüências políticas. Pode, ainda, e aí as conseqüências podem ser de monta, induzir a políticas de confronto, aquelas do combate frontal e que não levam em conta a correlação de forças e a eventual necessidade de recuo ou o recurso da negociação, da mediação. Conselheiro, a seu tempo e levado por sua visão mística e religiosa, optou pelo tudo ou nada. Acreditou que maiores eram os poderes de Deus. Ignorou as forças postadas do lado de fora de seu arraial. Não admitiu o recuo e, parece, não pensou em negociar.

Nas condições do Brasil atual, se é essencial, e é, uma atitude ousada e de luta, o é também uma outra: aquela que saiba analisar as forças em conflito, que saiba reconhecer quando as forças populares estão fracas e quando estão fortes, que saiba estabelecer alianças com atores diversos, obter vitórias parciais, caminhar na construção de uma nova hegemonia, recuperar a força e a dignidade da política. No primeiro caso, Canudos nos deixou um exemplo extraordinário a seguir. No segundo, ficou a lição da derrota, de um procedimento heróico mas não adequado às condições de luta do Brasil de hoje.

Não se pretende, ao dizer isso, anacronicamente ficar a perorar sobre o que ocorreu, como se pudesse haver outra história e não aquela. É sempre problemático olhar o que aconteceu com os olhos de hoje, como se fosse possível emprestar aos nossos antepassados os conceitos que temos atualmente. Como, no entanto, Canudos é sempre relembrado, é importante discuti-lo à luz da luta política em curso, e isso não raramente é feito por muitos movimentos populares.

Nada, nessas discussões, pode obscurecer o feito heróico de Canudos, a capacidade de resistência do povo, a firmeza de sua liderança, a evidência de que nunca há um único caminho a seguir – há sempre alternativas, e às vezes melhores do que as dominantes. Resta que saibamos hoje ser dignos daquele exemplo.

Emiliano José é jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da UFBA, um dos autores de Lamarca - O Capitão da Guerrilha