Na última semana de outubro de 1997, como se fosse para comemorar os 10 anos de outro crash memorável, as bolsas do mundo inteiro caíram sincronizadamente, sinalizando pânico no mercado mundial de capitais. Os crashes foram precedidos por ataques especulativos – que continuam – contra diversas moedas do Sudeste asiático. Quando em seguida começou um ataque especulativo ao real, o que forçou o governo a vender parte das reservas cambiais e depois a decretar um aumento de 100% das taxas básicas de juros. Como esta medida não bastou para restabelecer a confiança, o governo baixou um ‘pacote’ de medidas fiscais com a pretensão de cortar 20 bilhões de reais do déficit público federal.
A desregulamentação financeira
Tudo começou quando, no fim dos 60, as EMNs (empresas multinacionais) dos EUA colocaram grande parte de suas reservas financeiras no euro-mercado, um mercado até então inexpressivo e completamente excluído de qualquer supervisão e controle por autoridades monetárias nacionais. Este começou a crescer rapidamente, atraindo dinheiro particular e público de todos países, até se transformar no grande mercado financeiro internacional, cuja rentabilidade sobrepujava à dos mercados nacionais porque os bancos que nele operavam estavam dispensados de manter reservas obrigatórias proporcionais ao valor dos depósitos. No início dos 70, os governos dos grandes países poderiam ter instituído o controle do euro-mercado por parte do FMI (Fundo Monetário Internacional) ou de alguma outra entidade intergovernamental, mas não o fizeram. Esta não-decisão está custando caro à economia mundial, que ficou cada vez mais sujeita às vicissitudes da especulação financeira internacional.
É interessante observar que a desregulamentação financeira só se tornou política explícita dos principais governos capitalistas na década dos 80. Ela se impôs de forma casual, como efeito lateral da crise do sistema internacional de pagamentos erigido em Bretton Woods, em 1944. Este sistema tinha por base taxas cambiais não propriamente fixas mas negociáveis apenas multilateralmente. Isto significava que um país poderia alterar sua taxa cambial desde que contasse com o consentimento dos outros países-membros do FMI. Alterada a taxa, cabia ao governo intervir no mercado de câmbio – vendendo ou comprando divisas – para manter a taxa de câmbio de sua moeda dentro de uma estreita faixa de variação ao redor do novo valor ‘declarado’.
A desregulamentação financeira só se tornou explícita dos principais governos capitalistas na década de 80. Ela se impôs de forma casual, como efeito lateral da crise do sistema internacional de pagamentos erigido por Bretton Woods em 1944. Esse sistema tinha por base taxas cambiais não propriamente fixas mas negociáveis apenas multilateralmente; pressupunha que cada governo não só dispusesse de reservas cambiais suficientes para regular adequadamente o mercado de divisas mas que ele pudesse em última análise subordinar o movimento internacional dos capitais controlados por seus cidadãos a objetivos nacionais. O sistema era administrado pelo FMI mas a moeda chave era dos EUA, cujo governo deveria dar o exemplo, ao garantir a conversibilidade do dólar em ouro a uma taxa ‘declarada’. Mas, em 1971, o governo de Nixon foi incapaz de resistir ao ataque especulativo contra o dólar e também não teve competência para negociar com os outros governos um realinhamento das taxas cambiais que permitisse reequilibrar as contas externos do país. Preferiu então quebrar unilateralmente o compromisso da conversibilidade do dólar, liquidando assim em parte o sistema internacional de pagamentos até então em vigor.
O sistema de pagamentos que foi improvisado então, para substituir o de Bretton Woods, consagrou a livre flutuação das taxas de câmbio, deixando a cargo de cada governo adotar o regime cambial que desejasse. Deste modo, os governos ficaram descomprometidos de controlar e monitorar os fluxos internacionais de valores. Cada um seguiu o exemplo dos Estados Unidos, cujo governo gradualmente revogou as sanções fiscais que havia adotado com a finalidade de coibir a exportação de capitais, na vã tentativa de defender a paridade de 35 dólares por onça-ouro. Os governos que constituíam a Comunidade Européia resolveram manter paridades cambiais relativamente fixas entre suas moedas, o que acabou desembocando na unificação monetária do continente, a ser inaugurada em 1999.
A desregulamentação dos mercados financeiros acabou se impondo, a cada um dos governos, de fora para dentro, em função da disputa por um mercado mundial em que as trocas comerciais iam sendo liberalizadas através de um laborioso processo de negociação multilateral. A crescente liberdade de comércio permitia às EMNs construir uma divisão internacional de trabalho entre suas filiais, situadas em dezenas de países. Tratando-se de oligopólios internacionais, o ganho proporcionado pelas vantagens comparativas não tinha de ser repassado aos clientes, podendo ser incorporado aos lucros. Surgiu desta forma um segmento específico da economia mundial, formado pelas EMNs, que se apoderava de uma parte do valor produzido em inúmeros países por ser capaz de tirar proveito das diferenças entre eles.
À medida que este segmento se fortalecia, ganhava autonomia em relação aos governos, inclusive dos países em que residiam os grupos controladores. A economia das EMNs passou a apresentar uma lógica que se opunha à dos interesses ‘nacionais’, mesmo considerando que entre estes interesses prevaleciam os dos capitais. Em outras palavras, a possibilidade de coordenar produção, distribuição, investimento, pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e novos processos etc. em muitos países diferentes suscitou uma lógica maximizadora de taxa de lucro para o conglomerado empresarial, formado por cada EMN, que jamais coincidiria com a de empresas circunscritas a uma única economia nacional.
A desregulamentação financeira não se restringe evidentemente às EMNs. Ela concede a todos os capitais – grandes e pequenos, nacionais e multinacionais, produtivos e financeiros – a liberdade de se deslocar no espaço global para maximizar seu retorno. Mas, sua instituição só se explica pelas exigências da luta inter-oligopólica das multinacionais. O governo da maior economia, quando ela ficou inferiorizada na competição internacional, tentou conter a saída dos capitais unilateralmente, como vimos acima. Se tivesse tido êxito, as EMNs ‘americanas’ teriam sido rapidamente suplantadas pelas EMNs de outros países – a não ser evidentemente que os outros países tivessem adotado medidas análogas de contenção. Mas, disso não se cogitava mais, pelo menos desde os 70. As possibilidades de desenvolvimento nacional foram sendo subordinadas cada vez mais ao desempenho competitivo das EMNs no mercado global.
Uma vez desregulamentada a movimentação internacional dos capitais, tornou-se insustentável a regulamentação financeira interna a cada país, pois a diferença de custos levaria os intermediários a globalizar todas as operações. De modo que dentro dos vários países, pouco a pouco se processou uma verdadeira regressão institucional: os bancos centrais foram sendo privados dos principais instrumentos de controle da oferta monetária, exceto a administração da dívida pública e sua manipulação diária no ‘mercado aberto’. Embora o sistema monetário atual seja completamente diferente do padrão-ouro, que vigia até 1931, os dois se assemelham pela liberdade desfrutada pelos intermediários financeiros. A autoridade monetária se limita a administrar a oferta de liquidez ‘formal’ (a base monetária) e a taxa de juros básica, que é a que o governo paga aos detentores de títulos da dívida pública.
No Brasil, como o sistema financeiro ainda não foi inteiramente globalizado, não chegamos a este ponto. Aqui, o banco central ainda conserva poder para controlar a oferta de crédito mediante as reservas obrigatórias e outros instrumentos. Com a crescente penetração de bancos multinacionais, controlados por residentes no Primeiro Mundo, é provável que a possibilidade de fazer política monetária no Brasil também venha a ser esvaziada.
O ciclo financeiro internacional
A desregulamentação do mercado financeiro ensejou um movimento cíclico de euforia prolongada que é periodicamente interrompida por pânicos. Este ciclo resulta da regressão institucional acima descrita. Todos os capitais são pela sua natureza financeiros e portanto são suscetíveis de se valorizar na esfera das aplicações – em que dinheiro se troca por dinheiro diferente – tendo em vista as expectativas. Tendo cada vez mais liberdade de fluir desta esfera à da produção e vice-versa e podendo escolher num imenso cardápio de inversões produtivas, aplicações em empréstimos de diferentes espécies, opções por transações a termo etc., os capitais se dirigem em bando mais ou menos às mesmas aplicações, na esperança de que elas se valorizem. O que realmente acontece, porque a forte demanda pelos mesmos ativos não pode deixar de elevar-lhes as cotações. De modo que torna-se aparentemente muito fácil ganhar dinheiro especulando com ações, títulos de crédito, divisas, contratos futuros etc.
Esta é a base da euforia que se auto-alimenta. As bolsas constituem um exemplo ilustrativo. Em tese, dever-se-ia esperar que elas alcancem certo equilíbrio quando o valor das ações nelas transacionadas atinge uma proporção ‘razoável’ ao retorno esperado [=dividendo distribuído+lucro retido]. Como a economia está sempre mudando, seria de se esperar que algumas empresas sejam favorecidas pelas transformações, o que faria aumentar o seu retorno esperado; outras em compensação seriam desfavorecidas, acarretando a redução do seu retorno esperado. Haveria em conseqüência, procura maior pelas ações das primeiras e procura menor pelas das últimas, do que resultaria a subida da cotação daquelas e queda da cotação destas. Mas o índice representativo das ações de todas as empresas ou das empresas mais importantes não deveria mudar, pois o efeito líquido das subidas e descidas de cotações seria próximo de zero.
Mas, não é isso o que se observa. As bolsas, sobretudo em virtude da globalização, são cenários de freqüentes manobras especulativas, que visam ao controle de grandes empresas, inclusive de multinacionais. Como vimos, a globalização acirra a competição entre as EMNs, o que induz sua permanente reestruturação mediante fusões e aquisições. Como o lucro destes conglomerados depende da divisão de trabalho que eles montam em seu interior, ele cresce com o número de empresas que os compõe, de países em que atuam e de produtos que manejam. De modo que as EMNs estão sempre procurando se expandir, inclusive e sobretudo adquirindo outras EMNs ou se fundindo entre si.
As disputas pelo controle elevam a cotações das ações das empresas disputadas, proporcionando ganhos inesperados a todos os seus felizes possuidores. Tais ganhos tornam-se conhecidos, atraindo novos capitais às bolsas. Ao adquirir ações, estes capitais ampliam a subida das cotações, o que se reflete no aumento acelerado dos índices como o Dow Jones em Nova Iorque ou o Bovespa em São Paulo.
Efeitos análogos têm as privatizações de empresas estatais, muitas sendo de economia mista. A participação estatal é vendida em leilão, que eleva a cotação de todas as ações da empresa sendo privatizada, com ganhos inesperados para os que as adquiriram antes. A crescente quantidade de privatizações avolumou a torrente de fusões e aquisições, das quais a venda de empresas do setor público ao privado é um caso particular.
Como resultado, as bolsas no mundo inteiro estão em maré alta há anos. Mesmo após as quedas recentes, as cotações na maioria delas estão muito acima do que seria normal por qualquer critério razoável. Surpreendente é a longa duração do boom e a ausência de mais ataques baixistas, que proporcionam grandes ganhos aos que os desencadeiam. Basta que um grupo de grandes operadores resolva colocar coordenadamente à venda uma quantidade significativa de ações para provocar uma grande baixa das cotações, exatamente porque estão exageradamente altas. Poucos dias depois, o grupo pode recomprar as ações que vendeu a preços muito inferiores, embolsando a diferença. Dada a simultaneidade das quedas em todas as bolsas do mundo, em outubro e depois em novembro, há razões para suspeitar que algo desta natureza tenha ocorrido.
Mas, o boom não se limita às bolsas. Houve também uma expansão extraordinária da oferta de crédito nos mercados internacionais. O total de fundos levantados nestes mercados em todo mundo passou de 279,1 bilhões de dólares em 1985 a 361,4 bilhões em 1990, o que representa um crescimento de 29,5%. Mas, no quinquênio seguinte – 1990/1995 – este total subiu para 832,2 bilhões de dólares, com um crescimento de 130,3%! Em 1985/1990, o valor dos fundos levantados pelos países desenvolvidos aumentou 35,5% ao passo que o levantado pelos subdesenvolvidos caiu 4%. Em 1990/1995, os países desenvolvidos ampliaram o valor levantado nos mercados internacionais de crédito em 132,7% e os subdesenvolvidos em 180,6%. (United Nations, 1996, Tabela A.31) É inegável que houve um boom de oferta de crédito internacional neste último quinquênio e que uma parcela crescente do mesmo se dirigiu ao Terceiro Mundo.
Estes dados ajudam a entender o relativo sucesso da política de sobrevalorização cambial posta em prática pelo governo federal desde a implantação do Plano Real. Em 1994, havia enorme oferta de crédito que aparentemente não encontrava escoadouros nos países do Primeiro Mundo. Por isso, tão logo o Plano Real entrou em vigor, abrindo a perspectiva de uma próxima estabilização relativa dos preços, uma verdadeira enxurrada de capitais externos invadiu o país. Foi a grande procura por ativos denominados em reais que derrubou a cotação do dólar e sobrevalorizou a moeda brasileira. Obviamente, as autoridades econômicas podiam ter colocado à disposição dos investidores quantidades suficientes de reais para manter a paridade anterior de R$ 1,00=US$ 1,00. Mas, elas preferiram permitir que o dólar caísse até R$ 0,83 provavelmente para maximizar o potencial estabilizador da importação de toda espécie de produtos do exterior, a preços vis.
A euforia financeira tem sido uma característica freqüente no capitalismo globalizado, desde a superação das crises ocasionado pelos dois choques do petróleo e o enorme aperto de liquidez promovido por Paul Volker, presidente do Federal Reserve System (o banco central dos EUA) a partir de 1979. Mesmo a gravíssima crise do endividamento externo de grande parte da América Latina não interrompeu inteiramente a euforia. E a crise que atingiu em fins de 1994 o México e por extensão a Argentina e o Brasil, também foi circunscrita no espaço e limitada no tempo. Dados estes precedentes, é possível que os crashes de 1997 também possam ser circunscritos ao Sudeste da Ásia, onde tudo começou. Mas, há elementos para crer que desta vez a restauração da euforia será muito mais difícil.
O epicentro da crise: o Sudeste da Ásia
Os países que compõem o SE da Ásia – Coréia do Sul, Filipinas, Hong-Kong, Indonésia, Malásia, Singapura, Tailândia e Taiwan – constituem, ao lado da China, o grupo de maior crescimento econômico do mundo. Em 1990-96, o maior incremento do PIB (Produto Interno Bruto) foi da China (86,2%), seguido pelo SE da Ásia (42,7%), que contrastam com a expansão muito menor nos países desenvolvidos (10,1%) e na América Latina (17,2%), sem falar no encolhimento do PIB nas economias em transição da Europa Central e Oriental (-31,7%). (United Nations, 1996, Tab.A2, A3 e A4). Um desequilíbrio tão acentuado é no mínimo estranhável numa economia mundial em avançado estado de globalização.
A explicação é que o mercado global de capitais é o grande canal de inversões, que se dirigem dos países ricos mas estagnados à periferia emergente, em que se destacam China e SE da Ásia. O Primeiro Mundo constitui não apenas o manancial de capitais que impulsiona a expansão daquelas economias mas também grande parte do mercado que lhe absorve a produção. Em 1990-96, o valor (em dólares) das exportações mundiais cresceu 56,7%, o dos países desenvolvidos cresceu 46,6%, o do SE da Ásia 132,7% e o da China 178,0%. No mesmo período, o valor (em dólares) das importações dos países desenvolvidos cresceu 38,6%, o do SE da Ásia 130,6% e o da China 193,2%.
Estes dados revelam o rápido aprofundamento da divisão de trabalho entre os países desenvolvidos e a periferia chinesa e do SE asiático. Enquanto os primeiros exportam produtos que incorporam tecnologia de ponta, os últimos vendem produtos industriais ‘maduros’ tecnologicamente, inclusive muitos em que o uso ainda intensivo de mão-de-obra lhes oferece uma vantagem comparativa. Em complemento, um vasto excedente de capitais dirigiu-se àquela parte do mundo, atraída obviamente por um crescimento econômico excepcionalmente vigoroso.
A euforia que caracterizou a maioria dos mercados financeiros em todo o mundo atingiu seu paraxismo na região em que o crescimento tem sido três ou quatro vezes maior do que no resto da economia mundial. Só que em 1997, as bolhas especulativas começaram a estourar. A abundância de capitais provocou enorme alta dos imóveis (algo quase obrigatório quando a economia se expande velozmente) e das ações transacionadas em bolsas. Quando a expeculação atingiu seu ápice, o influxo de capitais decaiu, o que provocou crashes (quedas súbitas e violentas das cotações) nos mercados de imóveis e nas bolsas.
Uma crise semelhante ocorreu cinco anos antes no Japão de forma paradigmática, não só porque antecede à dos outros países do SE da Ásia mas também porque o Japão liderou e em certa medida patrocinou o desenvolvimento destes outros países. Há fortes semelhanças institucionais e históricas entre o Japão e os seus vizinhos do SE asiático. Nestes países, os governos nacionais se empenharam fortemente no desenvolvimento, sobretudo orientando o crédito bancário para os setores e empresas favorecidos pela estratégia de industrialização. Estabeleceu-se uma relação íntima de colaboração e cumplicidade entre governos, intermediários financeiros e empresas. Quando ocorreram os crashes nos mercados imobiliário e nas bolsas, os bancos sofreram perdas importantes, à medida em que tinham financiado investimentos nestes mercados.
A crise financeira se transmite à economia ‘real’ através da insolvência do sistema bancário. Os bancos não conseguem recuperar créditos de mutuários arruinados pelos crashes e portanto não podem honrar suas obrigações com os depositantes. Se houver bancarrotas em grande escala, muitas das empresas produtivas inevitavelmente são atingidas. A inadimplência do setor financeiro contamina o setor ‘real’, causando a falência em série de empresas, desemprego em massa, queda vertical da demanda etc.. Esta foi a grande lição da crise dos 30, que por enquanto ainda não foi esquecida. Por isso, os governos não deixam os bancos falir.
Os ataques especulativos contra as moedas da Tailândia, Malásia, Indonésia, Filipinas e mais recentemente da Coréia do Sul e de Hong Kong devem estar ligados à crise financeira. É preciso entender que qualquer discussão sobre as ‘causas’ de tais ataques têm um elevado teor de presunção, pois os operadores empenhados em vender baths, ringgits, wons etc. não fazem declarações a respeito dos motivos que os levam a agir. Mas parece lógico que a ameaça de inadimplência dos intermediários financeiros de um país leve os investidores, tanto nacionais como estrangeiros, a fugir das aplicações denominadas em moeda nacional. É esta fuga que ameaça a moeda, ou melhor, ao elevar a procura por dólares, pressiona para baixo a cotação cambial da moeda nacional.
Fuga ou ataque são duas maneiras diferentes de descrever a mesma coisa, cada uma enfatizando determinada motivação dos operadores. Como se sabe, estes são movidos pela ganância e pelo medo. Os que falam de ataque referem-se à ganância, ou seja, à previsão de que a crise financeira imporá a desvalorização da moeda nacional. Para ganhar com a desvalorização é preciso antecipá-la. O ataque especulativo força o governo a vender as reservas, a elevar a taxa de juros e, se nada disso adiantar, a deixar que a taxa de câmbio [valor do dólar em moeda nacional] suba. Os que falam de fuga referem-se ao medo dos aplicadores de não receberem de volta os seus valores por causa da inadimplência virtual dos bancos e demais intermediários. O mais provável é que o medo de uns estimule a ganância dos outros. A fuga dos primeiros facilita a armação dos ataques especulativos dos últimos.
As duas crises – a dos ativos reais (imóveis e bolsas) e a cambial – se realimentam mutuamente. Ao governo interessa sobretudo defender a cotação externa de sua moeda, o que ele faz elevando a taxa de juros. Estimula com isso a ganância dos aplicadores, procurando persuadí-los a reter ativos denominados na moeda nacional. Mas, a elevação dos juros pune os endividados, eleva a inadimplência e induz a saída dos capitais das bolsas e do mercado imobiliário. Inclusive para usufruir os juros altos. O resultado é o crash das bolsas.
Foi isso que desencadeou o crash das bolsas em outubro. Um ataque especulativo à moeda de Hong Kong foi respondido com aumento da taxa de juros, o que acarretou a queda da bolsa em seguida. O crash se propagou em questão de horas pelo mundo. As grandes bolsas globalizadas de Londres, Nova Iorque e Tóquio desabaram, arrastando bolsas regionais na Europa, América do Norte e Latina etc. Desta forma a crise financeira do SE asiático ocasionou um crash global.
A crise financeira global
A possibilidade de uma crise financeira global é dada pela própria globalização. As fronteiras nacionais tornaram-se permeáveis à passagem dos fluxos financeiros, o que vem provocando a unificação dos mercados de capitais e de moedas. É lógico que as bolsas do mundo todo, em que grande parte das transações é feita com ações e títulos das mesmas empresas e governos, entrem em fase. Mas, apesar de dadas as condições de possibilidade, até recentemente a queda da bolsa de Tóquio e de outras do SE asiático não tinha se alastrado ao resto do mundo. De modo que algo aconteceu que transformou a possibilidade em realidade.
As hipóteses a este respeito giram ao redor do que teria predominado na motivação dos operadores, que os levou a vender ações em quantidades tais que as cotações desabaram. Alguns acham que foi o medo: aplicadores que sofreram perdas em Hong Kong tiveram que vender ações e títulos em Tóquio ou Seul para cobrir empréstimos bancários; a baixa de cotações assim provocada nestas bolsas amedrontou outros operadores globais, que passaram a vender também em Londres ou São Paulo e assim por diante.
Outros acham que foi a ganância: operadores que têm plena consciência de que na maior parte das bolsas as ações estão cotadas muito acima do seu valor ‘real’ resolveram apostar em sua baixa para abocanhar ganhos especulativos. Aproveitaram o ensejo da crise cambial do SE asiático e especificamente da queda na bolsa de Hong Kong para colocar coordenadamente grande volume de ações à venda nas principais bolsas provocando os crashes. Depois puderam recomprar as ações por valores muito menores, realizando grandes lucros.
Seja qual for a combinação de medo e ganância que presidiu os dois crashes mundiais, um em fins de outubro e outro em começo de novembro, é muito provável que a queda das bolsas vai continuar. Em primeiro lugar porque as cotações ainda continuam altas, tendo inclusive se recuperado parcialmente após cada crash (a própria recuperação indica que a ganância está muito viva; a realização dos lucros implica em recompra das ações). Em segundo lugar porque o sistema bancário continua vulnerável à crise, não só na Ásia mas também nos outros continentes. O enfraquecimento dos bancos centrais, visto acima, fragiliza potencialmente toda intermediação financeira. Mesmo nos EUA e na Grã-Bretanha tem havido falências bancárias em grande escala, desde os 80, e nada garante que a queda das bolsas não venha a acarretar outras.
Há urgente necessidade de transformar o FMI de bombeiro em líder e coordenador do sistema financeiro global. Ou então, que governos nacionais retomem o controle sobre moeda e crédito em seus países, reduzindo de novo a permeabilidade de suas fronteiras aos fluxos de valores. Enquanto isso não acontecer, a única ação consistente contra o aprofundamento da crise financeira global parece ser a dos pacotes armados pelo FMI para salvar as economias mais afetadas. Até o momento operações desta natureza beneficiaram a Tailândia e a Indonésia e no momento em que este texto está sendo redigido a Coréia do Sul entrou na fila.
A julgar pelas experiências anteriores, sobretudo pela do México em 1994, as operações de salvamento do FMI costumam dar certo. A injeção de dezenas de bilhões de dólares permite formar um colchão de liquidez para salvar, no curto prazo, o sistema financeiro. Além disso, o governo em troca deste montante de recursos assina uma carta de intenções, pela qual se compromete em geral a equilibrar as contas públicas, a adotar medidas cambiais e de outra natureza para equilibrar as contas externas e a ‘sanear’ o sistema financeiro, o que significa em geral manter taxas de juros reais positivas e liquidar as instituições falidas, socializando as perdas especulativas de forma explícita e transparente (o que não quer dizer justa: pagam os setores politicamente mais fracos).
Mas as cartas de intenções dirigidas ao FMI tendem a ser recessivas. Juros altos, tributos elevados e corte do gasto público resultam em queda da demanda total, o que significa redução de consumo, de produção e de emprego. E é claro que, se as economias que formam a parte mais dinâmica da economia mundial mergulharem em recessão, esta tenderá a se difundir pelos outros países, o que transformaria a crise financeira global numa crise econômica global.
Neste sentido, é importante registrar que a crise financeira do SE asiático já atravessou o Pacífico e o Atlântico e atingiu em cheio o Brasil e, por tabela, a Argentina. As bolsas brasileiras, estimuladas possivelmente pelas privatizações da Vale do Rio Doce, de companhias de eletricidade e no futuro das telefônicas, tiveram fortes altas e receberam fartos influxos de capitais externos. Quando ocorreram os crashes, a queda nas bolsas de São Paulo e do Rio foram as maiores do mundo, o que induziu à retirada de muitos aplicadores estrangeiros. O que produziu uma vaga de compra de dólares, que em poucas horas se tornou um vasto ataque especulativo contra o real.
O governo reagiu de acordo com o figurino habitual. No início da crise negou a possibilidade de que pudéssemos ser atingidos. Chegou a aventar a hipótese de que os capitais em fuga da Ásia poderiam ser aplicados aqui. Quando finalmente a queda das bolsas desencadeou o ataque ao real, o governo fez inúmeros leilões de dólares para defender a taxa cambial, sabidamente sobrevalorizada. Em seguida, dobrou a taxa de juros, o que – ao menos no curto prazo – parece ter surtido efeito. E para consolidar a credibilidade da política de juros, baixou um pacote fiscal visando a economizar R$ 20 bilhões, entre aumentos de impostos e cortes de gastos.
O pacote tornou-se necessário porque o aplicador estrangeiro só ganha os juros dobrados se no vencimento do empréstimo o dólar puder ser comprado barato, próximo ao nível atual. Se o real no ínterim se desvalorizar, o montante da desvalorização terá de ser deduzido dos juros para se chegar ao rendimento em dólares.
O pacote fiscal visa convencer os aplicadores que o governo brasileiro tem condições de manter sua política cambial. Como não há possibilidade de negociar diretamente com os aplicadores, o governo age à base de suposições. A reação do ‘mercado’ mostrará se elas foram corretas ou não. Mas, não cabe dúvida que a duplicação da taxa de juros e o pacote fiscal, em conjunto, são fortemente recessivos. A retração de compras foi imediata, assim como as férias coletivas nas indústrias e o anúncio de demissões. Neste momento, recessões continentais se anunciam tanto no SE asiático como na América do Sul, especificamente no Brasil e na Argentina.
O que virá em seguida é difícil prever. Há sinais claros de superprodução em diversos países da Ásia, na Tailândia e Indonésia, na Coréia do Sul e – sem surpresa – na China. Como vimos acima, as exportações chinesas cresceram substancialmente mais do que as de seus vizinhos do SE da Ásia, o que fez com que vários deles apresentassem grandes déficits em conta corrente. Daí os ataques especulativos às suas moedas. Mas, agora estas foram desvalorizadas, o que torna as exportações destes países mais competitivas no mercado mundial. A perspectiva agora é que o crescimento das exportações chinesas se reduza e o mesmo deverá acontecer com o influxo das inversões diretas do exterior.
Além disso, conforme The Economist de 22.11.97, "o maior furacão vem duma crise bancária que poderia fazer a do SE asiático parecer uma brisa gentil. (...) Se houvesse um levantamento honesto, descobrir-se-ia que os créditos podres chegam talvez a 30% do PIB - duas vezes o nível do Sudeste da Ásia." Mas, não se trata apenas da China. A Rússia e outras economias chamadas ‘em transição’ também apresentam fragilidade financeira e graves sintomas de superprodução.
Além da Tríade de países desenvolvidos, que ainda representam dois terços da economia mundial, formou-se uma Tríade de ‘emergentes’, cujos vértices são a Ásia do Leste (China mais o SE asiático), a América Latina e a Europa Central e Oriental. A crise financeira já cobre grande parte do primeiro vértice e acabou de atingir o segundo. É difícil encontrar razões convincentes para supor que ela não irá atingir também o terceiro vértice. A não ser que o FMI, com o apoio dos principais governos da Tríade desenvolvida, venha a comandar uma ação preventiva, de apoio e saneamento das economias ameaçadas, antes que submerjam na crise. E que esta ação, em vez de propagar a recessão, vise evitá-la.
Não se trata, evidentemente, de uma perspectiva realista, mas antes de um programa. As forças políticas que representam os setores sociais que inevitavelmente serão as principais vítimas da crise precisam se convencer que esta não é uma fatalidade e que é possível projetar um cenário de economia global muito menos suscetível a crises que o atual. A luta contra o perigo de crise global é possível e necessária.
Paul Singer é economista, professor da FEA-USP e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.