Política

A história do capitalismo confirma seu caráter contraditório básico apontado no Manifesto

Os 150 anos de publicação do Manifesto do Partido Comunista são uma ocasião para discutir sua importância. A importância histórica, naturalmente, está fora de discussão: o Manifesto, neste século e meio, foi uma das obras mais difundidas de toda a literatura mundial, senão a mais difundida. Contribuiu para moldar um dos movimentos políticos decisivos da segunda metade do século XIX e do século XX; expressou o grande projeto emancipador de nosso tempo; teve, ao lado de outras obras de Marx e Engels, uma influência fundamental nas ciências sociais e nos estudos de história.

Assim, o que é interessante discutir agora é em que medida esta importância deve se manter nas próximas décadas; em outras palavras, avaliar a atualidade do Manifesto.

Com relação à visão expressa por Marx e Engels em 1848 quanto ao caráter geral e às potencialidades da economia capitalista, o mínimo que se pode dizer é que ela mostrou-se quase profética e pouco envelheceu nas últimas quinze décadas.

Não era uma visão simples ou unilateral. Em primeiro lugar, eles enfatizam o dinamismo da economia capitalista, sua enorme capacidade de criar riquezas. Muitas das frases do Manifesto poderiam ter sido escritas por entusiastas do capitalismo, como por exemplo:

"[A burguesia] foi a primeira a mostrar o que pode realizar a atividade humana: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas…"; "A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto - que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?".

O que era verdade na época do telégrafo e da navegação a vapor vale mais ainda na época da internet e das viagens aéreas. Além disso, nenhuma obra enfatizou com mais vigor que o Manifesto a tendência da economia capitalista de revolucionar constantemente suas próprias condições de produção, incorporando progresso técnico, e a partir daí a tendência de também revolucionar toda a sociedade:

"A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, e logo as relações de produção e todas as relações sociais. (...) Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes".

Essa tendência, impulsionada pela concorrência, leva à permanente redução dos custos. A esse propósito, o Manifesto faz uma colocação brilhante sobre a força fundamental da burguesia: "Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros". A grande capacidade do capitalismo de produzir a baixo custo foi um dos elementos que lhe permitiram derrotar os regimes burocráticos do chamado "campo socialista".

Os 150 anos de publicação do Manifesto do Partido Comunista são uma ocasião para discutir sua importância. A importância histórica, naturalmente, está fora de discussão: o Manifesto, neste século e meio, foi uma das obras mais difundidas de toda a literatura mundial, senão a mais difundida. Contribuiu para moldar um dos movimentos políticos decisivos da segunda metade do século XIX e do século XX; expressou o grande projeto emancipador de nosso tempo; teve, ao lado de outras obras de Marx e Engels, uma influência fundamental nas ciências sociais e nos estudos de história.

Assim, o que é interessante discutir agora é em que medida esta importância deve se manter nas próximas décadas; em outras palavras, avaliar a atualidade do Manifesto.

Com relação à visão expressa por Marx e Engels em 1848 quanto ao caráter geral e às potencialidades da economia capitalista, o mínimo que se pode dizer é que ela mostrou-se quase profética e pouco envelheceu nas últimas quinze décadas.

Não era uma visão simples ou unilateral. Em primeiro lugar, eles enfatizam o dinamismo da economia capitalista, sua enorme capacidade de criar riquezas. Muitas das frases do Manifesto poderiam ter sido escritas por entusiastas do capitalismo, como por exemplo:

"[A burguesia] foi a primeira a mostrar o que pode realizar a atividade humana: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas…"; "A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto - que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?".

O que era verdade na época do telégrafo e da navegação a vapor vale mais ainda na época da internet e das viagens aéreas. Além disso, nenhuma obra enfatizou com mais vigor que o Manifesto a tendência da economia capitalista de revolucionar constantemente suas próprias condições de produção, incorporando progresso técnico, e a partir daí a tendência de também revolucionar toda a sociedade:

"A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, e logo as relações de produção e todas as relações sociais. (...) Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes".

Essa tendência, impulsionada pela concorrência, leva à permanente redução dos custos. A esse propósito, o Manifesto faz uma colocação brilhante sobre a força fundamental da burguesia: "Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros". A grande capacidade do capitalismo de produzir a baixo custo foi um dos elementos que lhe permitiram derrotar os regimes burocráticos do chamado "campo socialista".

Outra consequência do dinamismo da economia capitalista é sua tendência à expansão geográfica permanente, até dominar todo o mundo, e unificá-lo em um mesmo mercado mundial. A atualidade das frases seguintes do Manifesto é evidente:

"Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. (…) Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações".

Esta citação um tanto longa justifica-se porque ninguém negará que estas frases poderiam ter sido escritas hoje. E, além disso, ela é útil para lembrar aos ideólogos da "globalização" quão pouco novos são os fenômenos que têm alimentado sua ideologia. Contudo, é importante notar que nesta análise das relações entre os vários países falta um elemento decisivo, para o qual ainda não se havia atentado na época em que o Manifesto foi escrito, que só se tornaria visível muito mais tarde: o do imperialismo e das hierarquias internacionais, da assimetria e da dominação nas relações entre as nações. A análise de Marx e Engels em 1848 é brilhante, mas parcial. Aliás, curiosamente, essa mesma lacuna aparece nas teorias dos globalizadores. Para estes, contudo, não há justificação: há muito que a existência do imperialismo, da assimetria e da dominação nas relações internacionais é uma coisa evidente.

Dinamismo, capacidade de revolucionar as condições de produção e de promover modernização, portanto, são as grandes vantagens do capitalismo, que lhe dão inclusive um grande ímpeto para derrubar as barreiras que se erguem diante dele. Mas o Manifesto, como seria de se esperar, não descreve apenas esta face do capitalismo. Pinta também um quadro de suas características negativas.

As crises do capitalismo

A primeira delas, já mencionada de passagem em uma das citações anteriores, alude à falta de segurança, vale dizer, à instabilidade. Este é outro tema de grande atualidade, é claro, e se encadeia com o da ocorrência inevitável de crises periódicas:

"(…) a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências infernais que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção e de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande massa das próprias forças produtivas já desenvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se reconduzida a um estado de barbárie momentânea; dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhes os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações de propriedade burguesas; pelo contrário, tornaram-se por demais poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes em que as forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipitam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. De que maneira consegue a burguesia vencer estas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isto? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las".

A idéia central deste parágrafo continua hoje a ser necessária para a compreensão da dinâmica da economia capitalista: a lógica da produção capitalista e da concorrência leva periodicamente a um fenômeno novo na História, típico do capitalismo, e realmente paradoxal, que é a crise de superprodução. A economia, por assim dizer, se afoga em produção que não pode ser absorvida pelo mercado. E a saída destas crises só é possível com uma grande destruição de mercadorias e de forças produtivas, por um lado, e com uma nova expansão, prenunciadora de novas crises.

Este tema foi depois retomado e aprofundado na obra econômica madura de Marx, especialmente em passagens das Teorias da Mais-Valia e na seção sobre a "Lei da Tendência Decrescente da Taxa de Lucro" no Livro III d'O Capital.

De todos os modos, avaliemos apenas a formulação mais simplificada do Manifesto. A economia capitalista conserva até hoje o padrão de crises periódicas em que são destruídas mercadorias e forças produtivas, e até os anos 30 deste século a tendência foi de fato de que isto se agravasse progressivamente, como o Manifesto afirmou. A partir daí, contudo, os governos capitalistas dotaram-se de meios muito mais amplos para intervir e limitar o alcance das crises.

Mas mesmo que esta intervenção tivesse conseguido controlar completamente as crises, isto não tiraria a validade da análise do Manifesto. Apenas indicaria a necessidade de completá-la. O Manifesto descreveu uma tendência geral decorrente da lógica do capitalismo, que a intervenção estatal não anularia, apenas compensaria. Além disso, nas duas últimas décadas as possibilidades de controle das crises pela ação dos governos (e dos bancos centrais) têm sido mais limitadas do que em geral se supunha durante os chamados "trinta anos gloriosos" do pós-Segunda Guerra, que foi um período excepcional dentro da história do capitalismo. Há muitas indicações de que a economia capitalista mundial se encaminha de novo para uma crise de graves proporções. Em vários setores há um grande excesso de capacidade produtiva (como na indústria automobilística). Claramente, a economia capitalista sofre hoje de "demasiada indústria".

Ou seja, a visão simplificada da tendência da economia capitalista às crises formulada no Manifesto mostra-se de grande atualidade, mesmo se levamos em conta a capacidade muito maior dos governos de intervirem. E a acuidade da teoria marxista das crises fica ainda mais clara quando comparada com a teoria alternativa da economia convencional, a dos "ciclos econômicos". A teoria marxista mostra que a economia capitalista não é apenas "cíclica" - ela tem uma contradição muito mais profunda que a leva a destruir periodicamente mercadorias e capacidade produtiva.

Uma segunda característica negativa do capitalismo é a de coisificar as relações humanas, "só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do 'pagamento à vista'. (…) [fazer] da dignidade pessoal um simples valor de troca (…)". Esta questão foi depois tratada com muito maior profundidade n'O Capital, a partir das várias passagens em que o fetichismo da mercadoria é abordado.

Este é um traço bastante reconhecido do capitalismo. Não há nenhuma dúvida de que permanece inteiramente atual, e não é preciso desenvolver a argumentação.

Miséria e alienação

"O produtor passa a ser simples apêndice da máquina, e só se requer dele a operação mais simples, mais monótona, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua existência. (…) Massas de operários, amontoados na fábrica, são organizados militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre, e sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo".

Esses temas decisivos foram retomados no Livro I d'O Capital, nos capítulos sobre a cooperação, a manufatura e a grande indústria, e no capítulo sobre a "lei geral da acumulação capitalista". E aí foram feitos dois acréscimos importantes: o conceito de mais-valia relativa (a extração da mais-valia através de um progresso técnico que barateia os meios de consumo dos trabalhadores), e o de exército industrial de reserva. Com o primeiro, Marx introduz no seu quadro teórico a possibilidade de que os salários dos trabalhadores tenham seu poder aquisitivo ampliado. Com o segundo, enfatiza a tendência permanente de algum nível de desemprego na economia capitalista. Desta maneira, a miséria dos trabalhadores é vinculada ao desemprego. Os empregados podem escapar dela; ficam sujeitos, contudo, à submissão ao despotismo da fábrica.

As frases do Manifesto são um tanto imprecisas, e mesmo O Capital é incompleto, pois não se refere às possibilidades de mudanças na "lei geral" quando se concretiza mais a análise, e se tomam em consideração a organização dos trabalhadores, a legislação e a intervenção do Estado. Mas podemos avaliar o sentido geral da formulação, que é o mesmo n'O Capital e no Manifesto: o desenvolvimento do capitalismo gera a tendência à acumulação de riqueza em um pólo e de miséria (material e moral) no outro.

O crescimento da produtividade do trabalho desde o século passado, a luta sindical e política permitiram um crescimento importante dos salários reais da maioria ou de parte dos trabalhadores (conforme os países). Do mesmo modo, foi reduzida a opressão nas fábricas. Além disso, nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a intervenção do Estado levou a uma grande redução do desemprego, e nos países centrais foram construídos sistemas de proteção contra ele, e contra a pobreza em geral, de modo que a miséria material diminuiu.

Como foi observado acima, o crescimento dos salários reais é uma possibilidade incluída no quadro teórico d'O Capital, embora seja negada no texto do Manifesto. E quanto à redução do problema do desemprego, e à adoção de mecanismos de proteção contra ele e de redução da pobreza, podemos analisá-los como fizemos com a intervenção para amenizar as crises: como acréscimo de aspectos que se contrapõem à tendência mais geral apontada por Marx, que não é portanto anulada, mas apenas compensada.

Por outro lado, também nestas questões devemos assinalar que as décadas mais recentes têm reforçado o quadro pintado por Marx e Engels. Desde 1980 a tendência dos salários reais nos EUA e na maioria dos países centrais (e mais ainda nos demais países) é de queda, apesar de ter prosseguido (mais lentamente) a elevação da produtividade. Em geral, o desemprego voltou a aumentar, e a assumir um caráter catastrófico em muitos países; a proteção social tem sido reduzida. Fala-se em uma "nova pobreza" nos países centrais, enquanto pelo mundo afora a miséria explode. Muitos dos novos métodos empregados para aumentar a produtividade acentuam significativamente o despotismo na fábrica. São fenômenos que a teoria econômica convencional tem grande dificuldade em explicar, e que são perfeitamente inteligíveis no quadro da análise marxista.

Em resumo: a economia capitalista desenvolve uma capacidade de produzir riqueza que as próprias relações capitalistas obrigam a destruir parcialmente de modo periódico; e estas mesmas relações, além de desumanizarem a sociedade, impedem que a riqueza criada seja aproveitada em benefício de toda a humanidade.

Isto justifica a conclusão do Manifesto, de que o capitalismo deve perecer e que o futuro pertence ao comunismo? Esta é uma discussão mais complicada, porque o que chegou a ser construído como alternativa ao capitalismo (o "socialismo realmente existente", um grosseiro arremedo de comunismo) demonstrou ter problemas maiores, em muitos aspectos, do que o capitalismo.

Mas a questão pode ser colocada da seguinte maneira: a história do capitalismo até hoje confirma seu caráter contraditório básico, apontado no Manifesto. Este caráter decorre diretamente da lógica do mercado e dos capitais. É admissível que a humanidade não possa encontrar uma maneira melhor de organizar sua vida social?

João Machado é professor de Economia na PUC-SP e membro do Diretório Nacional do PT