Cultura

Escrevendo o texto esotérico "Transgredindo Fronteiras: Rumo a uma Hermenêutica da Gravidade Quântica", o físico Alan Sokal satirizou os pós-modernistas e ocupou a grande mídia

Em abril de 1996, o físico norte-americano Alan D. Sokal, professor da Universidade de Nova Iorque, publicou um texto na importante revista teórica Social Text e criou um grande caso. Neste texto, intitulado "Transgredindo Fronteiras: Rumo a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica", assumiu concepções de teóricos pós-modernistas (predominantes no conselho editorial), reforçando-as com argumentos da física e da matemática. Porém, semanas depois, em artigo para a Língua Franca, disse que o primeiro texto estava "repleto de absurdos" e que seu objetivo era testar os critérios científicos da Social Text. Isto criou uma grande polêmica no meio acadêmico e, mais que isto, ocupou as primeiras páginas da grande mídia nos EUA e em nível internacional.

O artigo, réplicas e tréplicas

No primeiro artigo (de 41 páginas, sendo apenas 12 de texto, com 220 referências bibliográficas e 109 notas) o autor diz, entre outras coisas, que a "existência de um mundo externo" ao homem é um "dogma imposto pela longa hegemonia pós-Iluminista sobre o ponto de vista da intelectualidade ocidental" e endossa uma série de concepções de intelectuais genericamente considerados "pós-modernos", fundamentando-as com base na matemática e na física quântica. O sentido era comprovar a possibilidade de superar "os cânones matemáticos capitalistas" e afirmar uma "física libertária", que teria conseqüências radicais para a ação política e cultural. Foram citados muitos dos mais importantes autores contemporâneos nas áreas das ciências naturais e sociais, como Stanley Aronowitz, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jacques Derrida, Jacques Lacan, Jean-François Lyotard, Edgar Morin, Andrew Ross e Paul Virilio.

No segundo artigo, publicado na Língua Franca, disse que fez esta "modesta mas incontrolável experiência" para verificar se uma revista norte-americana de primeira linha, voltada para os estudos culturais, publicaria um artigo composto com absurdos se isto "a) soasse bem; b) lisonjeasse os preconceitos ideológicos dos editores". E concluiu que "a resposta, infelizmente, é sim". Acrescentou, então, que seu artigo era uma paródia, seu método satírico e seu texto um pastiche, mas que sua motivação era intelectual e politicamente séria e todas as citações eram autênticas. Num outro artigo, viria acrescentar que todas as referências bibliográficas eram "perfeitamente genuínas de proeminentes intelectuais norte-americanos e franceses (...) escrevendo bobagens sobre a matemática e a física, tudo acompanhado de blandícias rasgadas". Visava, além de atacar o relativismo, criticar os métodos dos pós-modernistas. Num "Pós-Escrito", que tentou publicar na Social Text mas não foi aceito (e acabou publicado na Dissent), acrescentou que seu primeiro artigo era "uma mistura de verdades, meias-verdades, um-quarto-de-verdades, falsidades, inferências não-válidas e frases corretas sintaticamente mas sem nenhum sentido". Disse ainda que também empregou "algumas outras estratégias que estão bem consolidadas (...) no gênero: apelos à autoridade em vez da lógica; teorias especulativas passadas como ciência estabelecida; forçadas e até absurdas analogias; retórica que soa bem mas que tem significado ambíguo; e confusão entre o significado técnico e o vulgar das palavras em inglês".

Os co-editores da Social Text (Bruce Robbins e Andrew Ross) responderam com o artigo "Mystery Science Theater" em que explicam porque publicaram "Transgredindo Fronteiras...". Nele, negam que a paródia de Sokal os tenha pego "dormindo no serviço" pois ele havia mostrado que tinha sacado o "clima da linguagem profissional do campo" (pós-moderno); que seu artigo estava dentro dos "critérios para publicação reconhecidos por Social Text"; e que "o status de paródia não muda substancialmente nosso interesse por sua peça como um documento sintomático". Sokal responde na ofensiva, afirmando que "Mais interesse do que o escândalo provocado pela aceitação de meu artigo, eu acho que deveria ser provocado por seu conteúdo. Meu ensaio (...) é também uma anotada bibliografia de charlatanismo e disparates fornecidos por dezenas de proeminentes intelectuais franceses e americanos." E, na continuação da polêmica, afirmou ainda acreditar que "este debate é principalmente sobre a natureza da verdade, da razão e da objetividade; questões que eu acredito são cruciais para o futuro da política de esquerda"; que seu motivo é "basicamente político" pois o "subjetivismo e o relativismo filosófico são em minha opinião incompatíveis com a produção de uma realística análise convincente da sociedade". E que Robbins "sistematicamente confunde verdade com afirmações da verdade, fato com asserções de fato e conhecimento com pretensões de conhecimento". Na mesma linha criticou o intelectual francês Bruno Latour (que o acusou, no Le Monde, de ser um "muito pequeno nome da física teórica") de confundir profundamente "a representação da natureza com a natureza" e de reduzir o relativismo "a uma banal capacidade de mudar pontos de vista, como se isto não fosse, depois de longos tempos, uma das características por excelência da atitude científica". Finalmente, num ensaio posterior, retomou a ironia: "Antes de tudo, eu não sou um historiador, nem um sociólogo, nem um filósofo, sou meramente um físico teórico com um interesse amador na filosofia da ciência e talvez alguma modesta habilidade para pensar claramente. O co-fundador de Social Text, Stanley Aronowitz estava, ai de mim!, absolutamente certo quando me chamou de mal-lido e semi-educado".

Amplas repercussões

Um ano depois, o affair continuava repercutindo. Durante este período, o fato ocupou espaços no debate acadêmico (com o autor sendo convidado para inúmeras atividades nos EUA), e em revistas teóricas, mas chegou também às páginas dos principais jornais de todo o mundo, inclusive às primeiras páginas de publicações como o New York Times, o Internacional Herald Tribune e o Observer e ainda a editoriais de órgãos respeitados como o Le Monde. Em maio de 1997, já eram 5.360 as citações sobre Sokal na Internet. Recebeu ainda amplo apoio no meio acadêmico e científico, entre eles do Prêmio Nobel de física, Steven Weiberg e gerou o prêmio Ig Nobel de Literatura para a revista Social Text.

No Brasil, várias matérias na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo motivaram as mais diversas e controversas abordagens, analogias e conclusões. Entre elas, Gilberto Dimenstein, depois de dizer que a experiência de Sokal produziu sucesso, escândalo e gargalhadas, aproveitou o fato para defender o ensino pago nas universidades públicas brasileiras. Cláudio Weber Abramo, numa matéria bem abrangente, saudou a iniciativa de Sokal e criticou o relativismo dos pós-modernistas de modo geral e da intelectualidade brasileira em particular. Roberto Campos viu o fato como oportunidade para atacar a esquerda de todo o mundo "e os intelectuais desta turma engajada" (sem ter percebido que a grande parte dos pós-modernistas é efetivamente defensora do "desengajamento"). O próprio Alan Sokal, na Folha de S. Paulo, rebateu o artigo de Roberto Campos e disse que seu objetivo era criticar uma parte da esquerda norte-americana, que "combina a submissão disfarçada à autoridade com o mais alucinado radicalismo de fachada". Jesus de Paula Assis só aceitou parcialmente o sucesso de Sokal, à medida em que este estaria colocando no mesmo saco tanto o "relativismo ensandecido e obscuro quanto aquele relativismo civilizado". Sérgio Augusto criticou os intelectuais franceses ("que receberam com desmedida indignação" a paródia de Sokal), citando, entre outros, dois autores: Jean Bricmont que, em defesa de Sokal, se referiu aos intelectuais franceses dizendo que "é preciso atacar o exército da inépcia em seu quartel-general"; e Régis Debray que afirmou que "Nós deixamos de ser importantes porque o verdadeiro debate intelectual na França foi trivializado e esvaziado pela mídia".

Modernidade e "Pós-modernidade"

A atitude de Sokal só pode ser melhor entendida no quadro do cenário cultural e político da contemporaneidade e do significado do pós-modernismo que, para David Harvey, desde o início dos anos 70 tem se manifestado nas artes, ciência, filosofia, política etc. e vem determinando os parâmetros para o debate cultural. Hoje, há sinais de que a hegemonia cultural do pós-modernismo "está perdendo força no Ocidente" mas seu estudo é fundamental para investigar as raízes de uma desestabilizadora fase do desenvolvimento econômico, político e cultural à medida em que é o estudo de mudanças profundas nas práticas culturais e político-econômicas desenvolvidas em reação ao modernismo – especialmente da alta modernidade –, que em grande parte foi cooptado e absorvido pelo status quo e acabou perdendo seu potencial de contestação. Mas o pós-modernismo é também continuidade em relação ao modernismo. A modernidade é uma radical ruptura com os tempos anteriores, mas está recheada de contradições. No dizer de Baudelaire, a arte é, por um lado, transitória, fugidia e contingente e, por outro, traz o imutável e eterno. Há uma fragmentação, que atingiu não somente produtores culturais, mas também analistas e críticos. É um eterno, vinculado ao iluminismo e sua busca racional de alternativas progressistas globais para a humanidade. Marx já havia dito no Manifesto Comunista (1848) que "tudo que era sólido se evapora no ar, tudo que é sagrado é profanado". E Berman, a partir daí, afirma que "ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo, ao mesmo tempo que ameaça destruir tudo o que temos, o que sabemos, o que somos". Por outro lado, o modernismo passou por diversas fases. De meados do século XIX ao final do século XX, conviveu com lutas políticas e sociais, guerras mundiais, transformações tecnológicas e experimentou um sem-número de correntes e modas estéticas. Tudo isto sofrendo o impacto e mantendo relação simbiótica com manifestações de "destruição criativa", do crescente peso do mercado, da reprodução mecânica e do advento da cultura de massa, que se combinam para fazer da arte e da cultura uma mercadoria como outra qualquer.

Assim, para Harvey, o pós-modernismo é uma reação nova e diferente a um processo imutável de modernização capitalista. Surge num momento particularmente caracterizado por um novo ciclo de compressão espaço-temporal na organização do capitalismo, ligado à emergência de modos mais flexíveis de acumulação e a uma nova revolução tecnocientífica especialmente na comunicação e informação. Mas estas são mais transformações da aparência superficial do que sinais de uma sociedade pós-capitalista ou pós-industrial inteiramente nova. Aparece, portanto, dentro de condições históricas, estruturais e culturais novas, mas não é uma resposta coerente ou que pretenda apresentar uma alternativa global ao sistema atual. Já para Scoth Lash, enquanto a cultura modernista desestabilizava a identidade burguesa, a pós-modernista está associada, em grande parte, a esta identidade. Harvey apresenta várias manifestações, discursos, práticas e estilos pós-modernistas, em diversos campos, que seriam suas características, como, entre outras: o efêmero, o fragmento, a auto-ironia, a indeterminação, a dispersão, a antinarrativa, o estético em prejuízo do ético, a colagem/montagem, a desconstrução e a dupla leitura de textos, o pastiche, a sátira, o humor, a anarquia e quebra de hierarquias, o rompimento de fronteiras do gênero literário, o rizoma (superfície) e não a raiz (profundidade), a mutação e esquizofrenia, a performance e interpretação recombinada da obra, o marketing, o espetáculo etc. Mostrando ser um campo minado de noções conflitantes, filosoficamente confluiu para uma aversão a alternativas de emancipação humano-universais. Reconhece a alteridade e em muitos casos estimula lutas sociais e culturais parciais, mas evitando a questão do poder global.

Mas, o pós-modernismo acaba se vendo "como um movimento determinado e deveras caótico voltado para resolver todos os supostos males do modernismo" e, apesar de fazer um radical discurso antiteleológico, se apresenta como portador de uma teleologia do fim da história. Absorvendo o que há de fragmentário no mundo contemporâneo e negando a possibilidade de alternativas humanas globais (ficando assim apenas com a primeira parte da constatação de Baudelaire), acabam somando ao status quo. É neste aspecto que se coloca a atitude – a um só tempo científica, política e cultural – de Sokal. Ao escrever seu primeiro artigo, ele estava montando a sua trincheira avançada na guerra de posição cultural que passa a travar contra o relativismo e o pós-modernismo.

O estilo "pós-modernista" de Sokal

Mas, para colocar em prática o seu projeto de crítica às concepções dos pós-modernistas, Sokal se utilizou do que é visto por eles como aspectos, gêneros, práticas, métodos ou estilos da "pós-modernidade". Tudo dentro de uma clara estratégia de marketing, para ocupar um espaço que não seria obtido se fosse utilizada uma maneira tradicional de enfrentar o debate teórico a partir de um ensaio com uma crítica racional e sistemática como a que veio fazer nos textos seguintes. Sokal, para ocupar este espaço e obter audiência midiática para seu discurso, relegou aquilo que seria formalmente considerado "ético", pelo estético. Priorizou um texto "bem feito" e que desse os resultados pretendidos a um com o qual tivesse concordância, exprimisse o seu pensamento e respeitasse os editores da revista. Enfim, seu primeiro texto é mais uma obra de arte, uma criação literária e uma peça de marketing do que um "trabalho científico". Nesta obra literária ele usou a forma de colagem/montagem (de inúmeros fragmentos de outros 220 textos) que, segundo Jacques Derrida, é "a modalidade primária do discurso pós-moderno". É a arte desconstrucionista de dissolver e embutir um texto no outro. Por outro lado, o texto "desconstruído" permitia uma dupla leitura: a) dos editores da revista e dos que o leram como sendo ciência; b) do próprio autor que sabia tratar-se de uma paródia. Enfim, usou um pastiche, o humor, a travessura, a ironia, mesmo levando às últimas conseqüências a auto-ironia e provocando uma radical quebra de autoridade dos editores da revista. Assim, Sokal aqui foi a anarquia e o rompimento das formalidades contra a hierarquia. E a resposta dos editores pós-modernistas acabou ficando com aparência de uma coisa antiga, o que também não deixa de ser uma das facetas do pós-modernismo. É também radical o rompimento de fronteiras com o conceito de gênero literário, chegando a criar a insólita situação em que, mesmo depois de dizer que se tratava de uma paródia, de uma peça de humor, seu texto continuava sendo considerado pela Social Text como estando dentro dos seus critérios científicos. Ao fazer um texto bem feito na superfície mas sem profundidade, reforça a idéia de que na "pós-modernidade" o importante é o rizoma e não a raiz. E, para se encaixar em mais dois caros conceitos pós-modernistas, Sokal aparece ainda como mutante e esquizóide pois não poderíamos encontrar melhor exemplo de mutação e esquizofrenia do que a dupla identidade antagônica entre os "autores" de "Transgredindo Fronteiras..." e do "Pós-Escrito", por exemplo. Sua ação foi performática, na medida em que, a partir do segundo texto, o fato passou a ser de domínio público e sua obra passou a ser interpretada e "recombinada" a partir de diversas abordagens, cada uma destacando os aspectos considerados mais pitorescos ou mais importantes teoricamente.

E, por outro lado, por mais bem acabado que parecesse o seu primeiro texto, na realidade este era apenas um fragmento de sua obra que só se completaria e se mostraria com toda força no decorrer do processo. À medida em que assumiu que um de seus objetivos centrais era político, também aqui Sokal não fugiu de uma das características da política contemporânea. Ao invés de uma retórica tradicional ele criou um caso, montou uma peça, fez uma encenação e deu um verdadeiro espetáculo.

Pós-modernismo efêmero

E o efêmero, fugidio e descartável? Bem, efêmera foi a "passagem" de Sokal pelo pós-modernismo. Pois tudo foi feito para defender ideias racionalistas e "modernas" de um projeto social universal e não fragmentário: "Eu pertenço à esquerda – entendida amplamente como corrente política que condena as injustiças e as desigualdades do sistema capitalista e que procura eliminá-las, ou ao menos minimizá-las".

Reconhecendo que há uma "crise intelectual e estratégica da esquerda", que tem que ser enfrentada "com trabalho sério, baseado em fatos, na ciência e na razão", denuncia que "Hoje o Fundo Monetário Internacional organiza a redistribuição da riqueza dos pobres aos ricos, destruindo as economias do Terceiro Mundo em nome de ‘estabilizá-las’. Os sacerdotes do Deus Mercado inventam belos encantamentos para disfarçar seus efeitos sobre os seres humanos".

Assim, a atitude de Alan Sokal mostra que se, para os pós-modernistas, "acabou-se a transcendência, a finalidade, o objetivo", "Transgredindo Fronteiras..." acabou transcendendo esta opinião. Mas, por outro lado, mostra também que ele pode estar radicalmente fora do espaço dos filósofos "pós-modernos", mas está dentro do tempo atual, do ‘clima’, em pelo menos uma questão fundamental: é um mestre da comunicação e do marketing. Utilizando-se de um meio dirigido a uma faixa super-seletiva de público como a revista Social Text, e a partir de uma linguagem esotérica e ininteligível se fez entender claramente através da grande mídia internacional.

Jorge Almeida é secretário nacional do Formação Política do PT.