Cultura

Antes da Chuva e Underground-Mentiras da Guerra abordam questões da ex-Iugoslávia

Os países dos Bálcãs estão localizados na fronteira da história do mundo moderno. Entre o mundo muçulmano do Oriente e o cristão do Ocidente, entre o comunismo do Leste europeu e o capitalismo do Oeste, essa região foi ponto de passagem obrigatória de todas as questões políticas, religiosas e étnicas mais importantes vividas pelo homem nos últimos séculos. Ali, os conflitos explodem com a máxima crueza, como atestou a guerra entre bósnios e sérvios, que nesta década tirou a Iugoslávia do mapa.

Talvez porque nessa região os conflitos sociais estejam mais expostos que em outras partes do mundo, a produção de cineastas da ex-Iugoslávia tenha recentemente chamado tanto a atenção do público do Ocidente.

Dois filmes excelentes, disponíveis em vídeo, constroem um painel no mínimo intrigante da situação da ex-Iugoslávia, que pode ser vista como uma alegoria da condição de muitos outros países neste final de século.

Antes da Chuva, do diretor Milcho Manchevski, foi o filme preferido do público na 18ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, há dois anos. Foi ta mbém vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 94 e indicado ao Oscar 95 de melhor filme estrangeiro. Underground - Mentiras da Guerra, de Emir Kusturica, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1995. Uma reincidência, já que Kusturica recebera a Palma de Ouro em 1984 por Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, que lhe deu fama internacional.

Os países dos Bálcãs estão localizados na fronteira da história do mundo moderno. Entre o mundo muçulmano do Oriente e o cristão do Ocidente, entre o comunismo do Leste europeu e o capitalismo do Oeste, essa região foi ponto de passagem obrigatória de todas as questões políticas, religiosas e étnicas mais importantes vividas pelo homem nos últimos séculos. Ali, os conflitos explodem com a máxima crueza, como atestou a guerra entre bósnios e sérvios, que nesta década tirou a Iugoslávia do mapa.

Talvez porque nessa região os conflitos sociais estejam mais expostos que em outras partes do mundo, a produção de cineastas da ex-Iugoslávia tenha recentemente chamado tanto a atenção do público do Ocidente.

Dois filmes excelentes, disponíveis em vídeo, constroem um painel no mínimo intrigante da situação da ex-Iugoslávia, que pode ser vista como uma alegoria da condição de muitos outros países neste final de século.

Antes da Chuva, do diretor Milcho Manchevski, foi o filme preferido do público na 18ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, há dois anos. Foi ta mbém vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 94 e indicado ao Oscar 95 de melhor filme estrangeiro. Underground - Mentiras da Guerra, de Emir Kusturica, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1995. Uma reincidência, já que Kusturica recebera a Palma de Ouro em 1984 por Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, que lhe deu fama internacional.

O sucesso desses cineastas no Ocidente certamente não tem explicação apenas no indiscutível talento de Kusturica e Manchevski. A condição de expatriados - Kusturica vive fora de seu país desde 92 e Manchevski está nos Estados Unidos há dezesseis anos - de uma nação que já nem mais existe, a Iugoslávia, talvez seja decisiva para a criação de comunicação tão eficiente entre seus filmes e o público do Ocidente, para quem as referências nacionais estão cada vez mais embaralhadas pela globalização.

Antes da Chuva é uma reunião de três histórias interligadas que se complementam. São histórias de amor interrompidas pelo ódio, seja ele motivado pela religião ou pela gratuidade. A iminência da guerra - o "cheiro de sangue no ar" - contamina a intimidade dos personagens.

Numa cena da segunda história, uma mulher grávida convida o marido para jantar e anuncia: "Eu quero me divorciar de você." Em seguida, declara com sinceridade: "Eu te amo." Não há mentira em nenhuma das frases, apenas contradição.

É da justaposição de elementos aparentemente desconexos que o filme extrai sua força: num primeiro episódio, uma terrorista albanesa muçulmana e de aparência andrógina veste uma camiseta da Adidas; em outro momento, a câmera registra num mesmo travelling a imagem de um tanque das Nações Unidas seguida pela imagem de um caminhão de Coca-Cola, como quem pergunta: Qual a diferença? Qual é, nesse caso, o refrigerante?

O tom de Underground - Mentiras da Guerra é infinitamente mais grandiloqüente que o de Antes da Chuva. O filme é grandioso tanto no período de tempo que focaliza (começa no início dos anos 40 e vem até a data de sua realização, 1995) quanto na localização de sua ação, que se passa em várias cidades iugoslavas. Além disso, a ficção é entremeada por imagens documentais que revelam a intenção de se criar um grande painel sobre a história recente da Iugoslávia até sua dissolução.

O filme começa com a investida alemã contra Belgrado em 1941. A cena inicial já sugere ao espectador o tom do filme. A invasão nazista é percebida a partir da reação dos animais do zoológico da cidade, que pressentem e se desesperam com a aproximação de aviões em vôo rasante sobre Belgrado. A irracionalidade, inicialmente confinada em suas jaulas e tratada com dedicação pelo tratador do zoológico Ivan, um dos protagonistas da história, está liberada com a chegada dos nazistas. Com essa metáfora, Kusturica introduz o público na insânia da história iugoslava dos últimos 50 anos: os nazistas, a Resistência, o longo governo do Marechal Tito, sua morte, a guerra étnica e a dissolução do país.

Na França, Kusturica foi acusado de ter se posicionado a favor da Sérvia, a grande vilã da guerra étnica contra a Bósnia, embora ele tenha nascido em Sarajevo, capital da Bósnia. A acusação veio de intelectuais que posteriormente confessaram não ter assistido ao filme. É provável que não tenham nem passado pela porta do cinema. Underground - Mentiras de Guerra pode até ser considerado longo demais (o filme dura mais de três horas), às vezes excessivamente complexo em sua trama mirabolante, delirantemente alegórico. Mas, é difícil assisti-lo sem ficar com a impressão de que Kusturica faz ali uma elegia sentida ao seu país de origem, a Iugoslávia, que já não existe mais.

Apesar de atacado pela crítica francesa, Mentiras de Guerra conseguiu chegar ao grande público e fazer muito sentido. Num momento em que as antigas noções de país, de nação, se desmancham no ar, Kusturica constrói uma obra que procura encontrar a gênese da dissolução e encará-la de frente.

Na cena final, os personagens principais estão numa festa numa pequena península - uma representação da península balcânica - que aos poucos vai se destacando e se deslocando da terra. A cena pode ser vista como metáfora de um desejo separatista. Mas é infinitamente mais interessante se pensada como uma constatação e um convite: o país imaginado e desejado já não existe mais; e é preciso repensá-lo a partir desse fato. No caso do filme, esse país é a Iugoslávia. Mas poderia ser qualquer outro.

Hélio Guimarães é jornalista, editor de Variedade do Jornal da Tarde.