Internacional

Num momento em que as guerrilhas saem de foco em toda a América Latina, o EZLN faz uso desta forma de luta, combinando-a com a utilização da Internet. Caracterizando-se pela criatividade na ação, pretende avançar na formação de uma intergalática Internacional da Esperança

O Primeiro Encontro Intercontinental contra o Neoliberalismo e pela Humanidade, convocado e realizado pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), no México, no estado de Chiapas, entre 27 de julho e 3 de agosto de 1996, representa uma boa oportunidade para uma tentativa de avaliação desse movimento e de compreensão do seu projeto político.

O movimento desencadeado pelo levantamento do EZLN em 1º de janeiro de 1994 (data da entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, entre os EUA, o Canadá e o México) surpreendeu o mundo. Uma nova guerrilha em plenos anos 90, quando as guerrilhas mais tradicionais da América Latina pareciam ir em sentido contrário (acordos de paz em El Salvador, desarmamento de vários - embora não de todos - movimentos armados colombianos, negociações difíceis entre a URNG guatemalteca e o governo ...)! Pior ainda, justamente no México, que era então o grande modelo de êxito dos países emergentes, que se supunha estava caminhando a larguíssimos passos para a modernidade, cujo governo (Salinas de Gortari) tinha enorme apoio internacional (e parecia ter grande apoio interno), que entrava no TLC com os EUA e o Canadá, que estava sendo admitido no clube dos países ricos (a OCDE)!

Posteriormente, ficaria claro que a imagem do México produzida pela ideologia neoliberal e projetada pelos grandes meios de comunicação não poderia estar mais distante da realidade e que debaixo da casca de modernização havia não apenas muita miséria, mas também muita coisa podre. Ainda assim, o espanto diante do EZLN permaneceria.

A evolução do movimento do EZLN daria lugar a mais surpresas. Seu líder não se apresentava como comandante, mas como subcomandante (para indicar que o comando do movimento está com os chefes das comunidades indígenas). O EZLN logo obteve um enorme apoio popular, o que obrigou o governo mexicano a iniciar negociações. Daí em diante, ficou claro que se trata de uma guerrilha que luta muito mais com a força moral e política do que com as armas. Que tem sólida base social e representa de fato comunidades indígenas. Que a sua ligação com tradições culturais indígenas (maias) não a impede de se utilizar dos mais modernos meios de comunicação - uma guerrilha na era da Internet!

As formas de linguagem usadas pelo EZLN mostraram-se em muitas questões inovadoras. Por exemplo, na combinação tanto de referências da cultura maia quanto de sofisticadas abordagens literárias ocidentais (com citações de Cervantes, Brecht, Cortázar ...). E também na utilização da poesia e do humor.

Por exemplo, alguns meses depois do levantamento permanecia ainda na imprensa a busca de "quem estava por trás" dos zapatistas. E em 10 de abril de 1994 estes responderam com um comunicado do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comandância Geral do EZLN:

"(...) Havemos de dizer a verdade por nossa boca, havemos de pôr o coração nas nossas mãos. Irmãos, queremos que saibam quem está por detrás de nós, quem nos maneja, quem caminha em nossos pés, quem domina nosso coração, quem cavalga em nossas palavras, quem vive em nossas mortes.

Queremos que saibam já a verdade, irmãos. E é assim:

Desde a primeira hora desta longa noite em que morremos, dizem nossos mais longínquos avós, houve quem reconheceu nossa dor e nosso olvido. Houve um homem que, caminhando sua palavra desde longe, à nossa montanha chegou e falou com a língua dos homens e mulheres verdadeiros.(...) Houve e há, irmãos, quem sendo e não sendo semente destes solos à montanha chegou, morrendo, para viver de novo, irmãos, viveu morrendo o coração deste passo próprio e alheio quando casa fez na montanha de noturno teto. Foi e é seu nome nas nomeadas coisas. Detém-se e caminha em nossa dor sua palavra terna. É e não é destas terras: Votán Zapata, guardião e coração do povo.

Votán Zapata, luz que de longe veio e aqui nasceu de nossa terra. Votán Zapata, nomeado nome de novo sempre em nossas gentes. Votán Zapata, tímido fogo que em nossa morte viveu 501 anos. Votán Zapata, nome que muda, homem sem rosto, terna luz que nos ampara. Veio vindo Votán Zapata. Estava a morte sempre conosco. Morrendo morria a esperança. Vindo veio Votán Zapata. (...)

É e não é todo em nós ... Caminhando está... Votán Zapata, guardião e coração do povo. Amo da noite... Senhor da montanha... Nós... Votán, guardião e coração do povo. Um e muitos é. Nenhum e todos. Estando vem. Votán Zapata, guardião e coração do povo.( ... )

Tomou nome em nosso estar sem nome, rosto tomou dos sem-rosto, céu na montanha é. Votán, guardião e coração do povo. E nosso caminho inominável e sem rosto, nome tomou em nós: Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Exército Zapatista de Libertação Nacional. Tema fúria que se arma. Nome inominável Injusta paz que se faz guerra. Morte que nasce. Angústia feita esperança. Dor que ri. Grito calado. Presente próprio para um alheio futuro. Para todos tudo, nada para nós. Os inomináveis, nós, os mortos de sempre. (...)

Esta é a verdade, irmãos. Daí viemos. Para lá vamos. Estando vem. Morrendo a morte vive. Votán Zapata, pai e mãe, irmão e irmã, filho e filha, grande e pequeno, nós, vindo estamos...

Recebam nossa verdade no coração bailando. Zapata vive, também e para sempre, nestas terras. (...)

Votán, segundo as culturas pré-hispânicas, é o pai fundador da humanidade. Seu nome quer dizer "o que vem do mundo dos mortos", "o chamuscado", porque deu aos homens o milho e o fogo. Teve a missão de ir ao lugar dos mortos para recolher seus restos, com que fez os homens (segundo Octavio Moreno, La Utopia índia, publicado em La Guillotina, México). Falando em Votán Zapata, o EZLN combinou uma referência ancestral com o herói da Revolução Mexicana.

Novas formas

Além da inovação em métodos de luta - a integração da guerrilha em uma luta que é fundamentalmente política e moral - e da linguagem, os zapatistas falam também em modificar profundamente os próprios objetivos da luta. Uma de suas obsessões é com a necessidade de redefinir a questão do poder e as formas de fazer política: segundo dizem, é preciso não repetir a fórmula de que "para mudar o mundo é necessário tomar o poder, e já no poder então vamos organizá-lo como melhor convém ao mundo, isto é, como melhor me convém, a mim que estou no poder. Temos pensado que se mudamos a maneira de ver o poder, afirmando que não queremos tomá-lo, isto produziria outra forma de fazer política e outro tipo de político, outros seres humanos que fizessem política diferente dos políticos que temos hoje de todos os tipos: de esquerda, centro, direita, de todas as variações".

Neste momento, os zapatistas estão empenhados em construir no México um zapatismo civil, através da Frente Zapatista de Libertação Nacional que, segundo dizem, representa o futuro do zapatismo; buscam criar condições para deixar as armas. Esta Frente seria uma força política com características muito peculiares: não seria um partido político (não fica muito claro o que se quer dizer com isto), e principalmente não disputaria eleições, nem teria entre seus membros detentores de mandatos eletivos.

Mas, o que significam todas estas formulações?

Parece que combinam-se várias ideias. Por exemplo, podemos interpretar este discurso como uma maneira de superenfatizar uma visão antiburocrática: afinal, devem ser as massas que tomam o poder e não uma força política que aja em seu nome. Nisto não haveria grande novidade. Ele pode ser interpretado também como uma reação contra o sistema político mexicano, contra suas eleições sempre fraudulentas, contra a corrupção generalizada, que atinge inclusive setores da esquerda.

Mas este discurso pode expressar também a compreensão, por parte dos zapatistas, de que não há condições neste momento, nesta conjuntura mundial, para que uma força revolucionária como a deles chegue ao poder num país como o México. Neste caso, seria preciso buscar uma estratégia mais complexa.

Na prática, no México, os zapatistas têm praticado uma certa divisão de trabalho. Não participaram até agora de eleições, mas não chamaram ao seu boicote. Aliás, dizem mesmo que não querem formar um partido, mas não são antipartido, respeitam as agremiações políticas e querem ter boas relações com muitas delas. De forma um tanto implícita, têm apoiado eleitoralmente o PRD (principal partido de oposição, com o qual têm se coligado partidos menores). Chegam a ter relações amigáveis até com o PT do México, um partido que é em geral considerado muito ligado ao governo mexicano (mas que agora tenta apresentar uma imagem um tanto à esquerda), e a defender uma "frente ampla opositora". Podemos pensar que os zapatistas considerariam que um eventual governo do PRD criaria melhores condições para a sua luta.

A crítica dos zapatistas ao sistema político mexicano é profunda. Mas isto não os impede de apresentar diversas reivindicações democráticas e de participar de um processo de diálogo com o governo. Mostram-se muito céticos quanto aos resultados deste diálogo, mas conseguem algumas coisas com ele, graças sobretudo à sua autoridade política. Por exemplo, foi votada uma lei do diálogo, que os reconhece como rebeldes (e não terroristas).

Os zapatistas demonstraram desde o início grande preocupação com a situação internacional e procuram dar esta dimensão à sua luta. Mostram ter uma compreensão bastante aguda do quadro mundial. Não fazem nenhuma concessão às modas da modernidade ou da globalização. Possivelmente, suas formulações no terreno internaconal estão entre suas contribuições mais interessantes.

Na convocatória para o Encontro Intercontinental contra o Neoliberalismo e pela Humanidade (que eles mesmos chamariam carinhosamente de intergalático), diziam:

"Durante os últimos anos o poder do dinheiro apresentou uma nova máscara acima de seu rosto criminoso. Por cima de fronteiras, sem importar raças ou cores, o Poder do dinheiro humilha dignidades, insulta honestidades e assassina esperanças. Renomeado como neoliberalismo, o crime histórico da concentração de privilégios, riquezas e impunidades, democratiza a miséria e a desesperança.

Uma nova guerra mundial se trava, mas agora contra a humanidade inteira.

Chamam de globalização a esta guerra moderna que assassina e esquece. A nova repartição do mundo consiste em concentrar poder no poder e miséria na miséria.

A nova repartição do mundo exclui as minorias. Indígenas, jovens, mulheres, homossexuais, lésbicas, gente de cores, imigrantes, operários, camponeses; as maiorias que formam os porões mundiais se apresentam, para o poder, como minorias prescindíveis. A nova repartição do mundo exclui às maiorias".

A guerra mundial em curso, para os zapatistas, é a quarta. A terceira guerra mundial foi a que opôs o capitalismo, hegemonizado pelos Estados Unidos, pela Comunidade Européia e pelo Japão, ao campo socialista, hegemonizado pela URSS. Chamada de guerra fria, foi uma guerra total, global que induziu uma guerra em todos os níveis e em todas as partes. O campo socialista, "que havia construído seu poder sobre uma mentira", foi o perdedor. Isto não significa que o socialismo tenha fracassado como alternativa, "significa que esta guerra se perdeu, que o poder que se construiu contra o grande capital não foi capaz de enfrentá-lo até as últimas conseqüências com êxito".

Para lutar em uma guerra é preciso ter os meios. Para os zapatistas, nesta luta da humanidade são necessárias novas armas:

"Contra a internacional do terror que representa o neoliberalismo, devemos levantar a internacional da esperança. A unidade, por cima das fronteiras, idiomas, cores, culturas, sexos, estratégias e pensamentos, de todos aqueles que preferem a humanidade viva.

A internacional da esperança. Não a burocracia da esperança, não a imagem inversa e, portanto, semelhante ao que nos aniquila. Não o poder com um novo sinal ou com novas roupagens".

O Encontro Intercontinental foi convocado com o objetivo de avançar no rumo desta Internacional da Esperança, sem que esteja muito claro quais serão os seus contornos. Os zapatistas dizem que não sabem o que se seguirá, quais serão os próximos passos e que nem podem decidi-lo: "sabemos que para o que se segue temos de escutar outras vozes e necessitamos que estas outras vozes se escutem entre elas. Precisamos de um encontro, dois, três, muitos encontros para poder construir juntos este caminho - e se este caminho não existe, pelo menos nos divertimos bastante tratando de encontrá-lo e não estamos matando ninguém".

Na declaração final do Encontro, contudo, foram avançadas algumas idéias para esta Internacional da esperança:

"Faremos uma rede coletiva de todas nossas lutas e resistências particulares. Uma rede intercontinental de resistência contra o neoliberalismo, (...) de resistência pela humanidade.

Esta rede intercontinental de resistência buscará, reconhecendo diferenças e conhecendo semelhanças, encontrar-se com outras resistências em todo o mundo. Esta rede intercontinental de resistência será o meio através do qual as distintas resistências se apóiem umas às outras (...); não é uma estrutura organizativa, não tem centro reitor nem decisório, não tem comando central nem hierarquias. A rede somos todos os que resistimos.

Esta rede intercontinental de comunicação alternativa não é uma estrutura organizativa (...). A rede somos todos os que nos falamos e nos escutamos.(...)"

Perspectivas
Durante o Encontro Intercontinental foram discutidas diversas reivindicações e formas de lutas, que dão uma idéia do tipo de propostas que poderão ser adotadas pelo movimento. Entre elas: a redução sistemática da jornada de trabalho; salários de garantia (renda mínima) para os desempregados ou subempregados; a cidadania global ("contra o modo em que o capitalismo organiza o deslocamento mundial dos seres humanos, classificando-os como migrantes da periferia ou turistas das metrópoles"; contra a hipocrisia da globalização, que abre o mundo aos capitais e às mercadorias mas não aos seres humanos); o fim da Organização Mundial do Comércio ("principal agente usado pelos países capitalistas mais ricos para impor a política de abertura comercial irrestrita").

O EZLN tem um poder de convocatória suficiente para iniciar um verdadeiro movimento internacional com as características pretendidas? É difícil dizer. Poucos grandes partidos (o PT brasileiro, a Esquerda Unida da Espanha, o Partido Comunista Francês, o Partido da Refundação Comunista da Itália) estiveram representados oficialmente no Primeiro Encontro Intercontinental. Este aprovou a realização de um Segundo Encontro, em 1997, em algum lugar da Europa. Em matéria publicada no dia 8 de setembro no jornal argentino Página 12, o subcomandante Marcos reconheceu dificuldades:

"(...) pensamos que cometemos um erro muito grande, fundamentalmente ao imaginar que um encontro intercontinental, intergalático, poderia ser organizado por só uma força, neste caso o EZLN. Agora, analisando, vemos que um encontro como este tem que ser organizado intercontinentalmente. Esperamos que o próximo, no ano que vem, em algum lugar da Europa, seja assim. Também pensamos que esta proposta que lançamos, da Internacional da Esperança, ou da Internacional da Rebeldia, ou da inconformidade, terá de ser produto da participação dos rebeldes de todo o mundo, não somente dos zapatistas".

Isto certamente é verdade, mas ai coloca-se a complicada questão de saber se os rebeldes de todo o mundo irão se pôr de acordo para construir esta proposta.

O futuro do movimento zapatista, tanto no México, como em nível internacional, é bastante incerto. Mas o que é preciso reconhecer é que hoje nenhum adversário do neoliberalismo tem um caminho muito claro para indicar.

O fato é que há muito não se via algum movimento que se colocasse numa oposição tão global à ordem capitalista e que se mostrasse tão insolente diante dela. Talvez os zapatistas tenham indicado com qual enfoque é preciso entrar nas discussões atuais da globalização, modernidades e que tais: dizendo que de um lado está a humanidade, estão "os homens e mulheres verdadeiros"; do outro está o neoliberalismo, isto é, o poder do dinheiro, a desumanidade. Provavelmente, nada menos radical do que isto nos pode servir.

João Machado é membro do Diretório Nacional do PT.