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No dia 11 de setembro de 1996, os casos de Marighela e Lamarca foram acolhidos pela Comissão Especial designada pelo presidente da República. Este fato é um marco na luta para conhecer o passado e resgatar a vida dos brasileiros que ousaram enfrentar a ditadura

A lei 9140/95, que visa a reparação moral dos militantes políticos mortos ou desaparecidos durante o regime militar e a reparação financeira aos seus familiares, reconheceu de imediato 136 desaparecidos como mortos. Desse modo, o Estado assumiu a responsabilidade pelo seqüestro, prisão, tortura e morte destas pessoas e condenou esta modalidade atroz de violação de direitos humanos inventada pela repressão brasileira e que se estendeu por toda a América Latina.

Os familiares, os movimentos de direitos humanos nacionais e internacionais, os juristas, ex-presos políticos e os parlamentares ligados a esta questão queriam uma lei mais abrangente. Uma lei que possibilitasse o exame e a publicidade das circunstâncias das mortes e que contemplasse mortes decorrentes de outras modalidades de violência política, tais como: as de Frei Tito e Dodora Lara Barcellos - que se suicidaram para escapar à lembrança das terríveis torturas e dos torturadores -; os que morreram na Argentina, Chile e Bolívia em decorrência da Operação Condor - o sinistro Mercosul do terror de Estado -; e mesmo os que morreram em tiroteios ou se suicidaram para não caírem nas malhas da tortura, exercendo o direito de resistência a um Estado que não era de Direito.

Todas as emendas que foram apresentadas para ampliar o conceito de reparação e a abrangência da lei foram derrotados em nome de um limite acordado pelo governo federal não se sabe com quem.

A lei criou ainda uma Comissão Especial, composta por sete integrantes designados pelo presidente da República, para analisar, caso a caso, denúncias de outros desaparecimentos e mortes de militantes "em dependências policiais assemelhadas". Em 8 de janeiro de 1996, a Comissão Especial, presidida pelo Dr. Miguel Reali Júnior e composta por Suzana Lisboa (representante dos familiares), general Osvaldo Gomes (representante das Forças Armadas), Paulo Gonet (do Ministério Público Federal), João Grandino Rodas (consultor-jurídico do Itamarati), Eunice Paiva (posteriormente substituída pelo advogado Luiz Francisco Carvalho Silva) e por mim (representando a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), iniciou seu trabalho com muita disposição e liberdade de atuação.

Os familiares

A localização das famílias dos militantes desaparecidos e mortos para que estas entrassem com o requerimento de exame dos casos ficou a cargo das organizações de familiares e dos Grupos Tortura Nunca Mais.

O governo não montou esquemas de divulgação como foi feito no Chile, onde se usou o rádio e a TV para entrar em contato com os parentes das vítimas. Com isso, duas famílias, da lista dos 136 desaparecidos, não foram localizadas e oito famílias de "mortos oficiais" requereram o exame do caso fora do prazo - desta forma, alguns deles podem ser "não conhecidos", ou seja, sequer apreciados.

A lei também jogou todo o ônus da prova para as famílias. A Comissão Nacional de Familiares, com o apoio dos Grupos Tortura Nunca Mais e da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, orientou os familiares para entrarem com os requerimentos, procurarem ex-presos políticos e ex-companheiros que pudessem dar depoimentos, localizarem testemunhas e pesquisarem nos arquivos da repressão que foram abertos. Foram requeridas novas informações, realizaram-se exumações, laudos periciais foram refeitos para desmascarar o trabalho sujo de médicos-legistas e peritos colaboracionistas e até mesmo a dificílima tarefa de localização dos restos mortais ficou a cargo das famílias.

A Comissão Nacional de Familiares montou dossiês caso a caso e conseguiu novo prazo para 64 casos em que os parentes ainda não tinham sido localizados e para os camponeses da guerrilha do Araguaia. Até 29 de julho, prazo final, foram protocolados processos referentes a 360 pessoas, sendo que 296 destas eram pessoas cujo nome consta no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos - fruto de elaboração coletiva ao longo de duas décadas - e 64 novos casos desconhecidos até então para a Comissão de Familiares.

Até a data de redação deste artigo, 103 casos já foram acolhidos. A Comissão Especial indeferiu até então 34 casos. Destes, em 26 processos não ficou comprovada a militância política das vítimas e, portanto, a motivação política por trás das mortes; três casos eram de militantes mortos fora do país; uma família que perdeu o prazo do requerimento; um morto por policiais sem motivação política; e dois que foram rejeitados, contra o meu voto e de Suzana Lisboa. Trata-se dos casos de Arno Preiss e de Hamilton Fernando da Cunha, que provocaram protesto de familiares (a família de Arno Preiss entrou com recurso ainda não-julgado).

Dependência assemelhada

A grande polêmica que polarizou a Comissão, extrapolando as paredes da sala 621 do Anexo II do Ministério da Justiça, foi a discussão do conceito de dependência assemelhada. O procurador federal Paulo Gonet, relator do caso Lamarca, propôs o indeferimento do pedido da viúva Marina Lamarca com base em interpretação restritiva do sentido e da forma da lei. Ou seja, ainda que restasse comprovada a responsabilidade do Estado na morte de Lamarca, ele teria que ter sido morto em local físico assemelhado a uma prisão. A partir daí, ocorreu uma reação em cadeia. O Conselho Federal da OAB, a Anistia Internacional, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, os Juízes para a Democracia, a Associação Americana de Juristas, a Human Rights Watch e juristas renomados, todos se manifestaram. Venceu a tese de que dependência assemelhada não é um conceito territorial e sim político - mesmo nos casos de guerras havia regras que obrigavam ao respeito à integridade física do detido. Mesmo em um regime político ditatorial, os agentes públicos deveriam guardar os detidos sob sua responsabilidade e se não o fizeram o Estado tem que reparar. A ditadura eliminou garantias individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e proibiu, instituiu punições drásticas para seus opositores, mas não conferiu à polícia nem aos militares que assumiram a função de polícia o poder de seqüestrar, torturar, matar e desaparecer. Portanto, o Estado brasileiro, à época do regime militar, agiu à margem e contra os postulados do Estado de Direito.

Esta discussão remete ao presente frente ao crescimento da violência e do crime organizado ou não. Até mesmo pessoas como Marcelo Alencar, que foi advogado de preso político e, ele próprio, perseguido, avaliza, sem ficar corado, o extermínio, a política de atirar primeiro, premia os policiais que matam mais e fecha os olhos até à tortura. Ainda hoje é comum a presença de secretários de Segurança que fogem à estrita obediência à lei e à ordem jurídica fundada em princípios éticos.

Na Comissão Especial, venceu a tese de que, se o militante estava sob custódia do Estado, não importando se na chuva, na rua ou na fazenda, se ele podia ser preso e foi morto, então o Estado deve ser responsabilizado. Foi derrotada a tese do general Osvaldo Gomes de que havia uma guerra de direito e de fato e que na guerra não há regras. Portanto, caberia aos repressores atirarem primeiro.

Assim, caso a caso, a ditadura foi sendo desnudada. A análise dos laudos de necropsia, feita por legistas e peritos sérios e respeitados, e as fotos cadavéricas e de perícia de local foram desmontando as versões oficiais lastreadas nos trabalhos de peritos e legistas que se prestaram à desonrosa tarefa de falsificar laudos. Em vez de suicídios, a morte após torturas inenarráveis. As fugas com atropelamentos que não aconteceram. Os tiroteios que foram fabricados para encobrir a execução após torturas. A ampliação de fotos cadavéricas revelou marcas de algemas e de tortura em pessoas que a versão oficial dava como morta em cerrado tiroteio. Foram apresentados casos em que a própria Comissão Nacional de Familiares se surpreendeu ao descobrir que vários militantes dados como mortos em tiroteio, circunstâncias assumidas pelo próprio Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos, na verdade foram presos feridos, levados às dependências policiais, torturados até a morte ou executados depois de torturas bárbaras.

A verdadeira história oficial está sendo resgatada. Não se sabe ainda como a Comissão Especial decidirá sobre os militantes mortos pela repressão durante manifestações públicas, como no caso de Edson Luiz, no Calabouço, Rio, em 1968, e em uma dezena de outros casos semelhantes. Nem como decidirá sobre o brutal e covarde assassinato do Padre João Bosco Penido Burnier por policial militar quando intercedia, junto com Dom Pedro Casaldáliga, por duas mulheres torturadas. São casos que lutaremos para serem acolhidos.

Sonegação de informações

A frustração maior corre por conta da sonegação de informações. A começar pela Polícia Federal, a mesma que apurou a corrupção na Comissão do Orçamento da União e no governo Collor e a quem caberá apurar as graves violações de direitos humanos no país quando for aprovada a federalização dos crimes contra os direitos humanos. Ficou provado, no caso Lamarca e em outros, que a Polícia Federal tem informações fundamentais que esconde.

As P-2 das Polícias Militares, o Ciex, o Cenimar e o Cisa têm informações que deveriam ser conhecidas pela nação. Mesmo os governos estaduais, como o de Minas Gerais, não se sabe porque dificultam o acesso às informações dos arquivos do Dops, ou do que restou deles. Em Goiânia, quando da eleição direta para governador em 1982, saíram vários veículos com os arquivos do Dops e agora foram devolvidos apenas oito embrulhos pelas autoridades militares. O famigerado Curió já mostrou a jornalistas cópias de documentos oficiais sobre a repressão à guerrilha do Araguaia que podem levar à localização de restos mortais.

Para o levantamento de dados e informações, a Comissão de Familiares contou apenas com os arquivos dos Dops do Rio de Janeiro e de São Paulo, devolvidos por Collor, e dos estados de Pernambuco e Paraíba, abertos por ordem de Carlos Wilson e Mauricio Requião. Ainda que estes arquivos tenham sido depenados antes da sua abertura, foi através deles que se chegou à verdade em dezenas de casos.

11 de setembro de 1996

Os familiares, seus representantes na Comissão Especial e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, aqueles que lutam para que todos integrem a lista, que lutam com o mesmo empenho pelo reconhecimento de cada militante morto ou desaparecido, cada vez que a verdade flutua, ficam emocionados. Mas, o dia 11 de setembro de 1996, quando foram acolhidos os casos de Carlos Lamarca e de Carlos Marighela, ficará para sempre na memória. Os dois principais símbolos da resistência também eram os principais inimigos do regime militar.

Lamarca teve sua morte decretada dezessete dias antes de ser fuzilado. Junto com José Campos Barreto, doente, cansado, surpreendido quando dormia, sem chance de reagir, já dominado após receber três tiros pelas costas, foi fulminado com quatro tiros quando já caído.

Carlos Marighella foi atraído a uma emboscada, executado fria e covardemente quando já estava ferido e sem condições de fuga ou reação. É necessário que o Estado reconheça sua responsabilidade nestes assassinatos. Tudo isto significa que a sociedade brasileira, sem revanchismo, sem querer reabrir disputas ultrapassadas pelo tempo, quer conhecer a história verdadeira do país.

O compromisso com a verdade e a construção da democracia traz a exigência de conhecer o passado e resgatar a vida e a luta, com os erros e acertos, daqueles brasileiros que ousaram enfrentar a ditadura.

Nilmário Miranda é deputado federal (PT-MG) e representante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados na Comissão Especial.