Mundo do Trabalho

As formas tradicionais de atuação do sindicalismo urbano já não respondem às características da terceira revolução científico-tecnológica. Urge traçar um projeto de retomada do sindicalismo como instrumento regenerador da solidariedade

Principalmente nos últimos vinte anos, as mudanças que se operaram na sociedade capitalista (aumento crescente no setor de serviços, globalização acelerada, dissolução do velho conceito de Estado Nacional, informatização/ robotização, poder midiático, perda da capacidade financiadora do Estado, mudança estrutural nas categorias profissionais, horizontalização e terceirização do processo produtivo, criação de tecnologias para venda isolada de serviços no âmbito doméstico), que proporcionam o aumento do desemprego e assim radicalizam a separação da sociedade formal em relação à informalidade, levaram o movimento sindical e os partidos de esquerda a uma crise sem precedentes.

É uma época que, pela velocidade das transformações, não só se torna "estranha ao Direito que a rege"1, mas também na qual a estrutura de classes da sociedade industrial formada nos últimos 200 anos, que ensejou o Estado de Direito mediador da estabilidade social, sofre alterações qualitativas importantes. Inclusive nos países capitalistas desenvolvidos, o Estado de Direito tradicional já tem dificuldades para corresponder às condições necessárias para uma dominação consensualizada. O capital financeiro, que tutela a terceira revolução científico-tecnológica apoiado nas grandes corporações transnacionais, precisa de cada vez mais agilidade e rapidez para fluir, condições já quase insuportáveis pela superestrutura jurídica. Nos países periféricos, uma ditadura já não tem mais base social orgânica. A resposta é a desregulamentação, a perda da credibilidade das constituições que garantem direitos sociais e a cultura das virtudes do egoísmo.

A crise do movimento sindical ocorre não só nos países capitalistas mais desenvolvidos, mas também nos pólos mais modernos da economia capitalista dependente, que é o espaço em que se trava a luta política no país e do qual depende, estrategicamente, o sucesso dos demais movimentos sociais: "É hoje reconhecido que, nos países centrais, o movimento sindical emergiu da década de 80 no meio de três crises distintas ainda que interligadas. A crise da capacidade de agregação de interesses em face da crescente desagregação da classe operária, da descentralização da produção, da precarização da relação salarial e da segmentação dos mercados de trabalho; a crise da lealdade dos seus militantes em face da emergência contraditória do individualismo e de sentimentos de pertença muito mais amplos que os sindicais, o que levou ao desinteresse pela ação nesse âmbito, à redução drástica do número de filiados e ao enfraquecimento da autoridade das lideranças sindicais; e, finalmente, a crise de representatividade resultante, afinal, dos processos que originaram as duas outras crises."2

Talvez configure-se, neste período, um certo tipo de hegemonia passiva, na qual os dominados ainda não encontraram novos caminhos e a força das transformações materiais e culturais, por si só, operam na consolidação do poder dos monopólios privados, cuja legitimação é amparada pelo domínio do conhecimento e pelo controle quase total da informação.

O próprio estilo de vida da alta classe média, cuja elite intelectual reproduzia posições que sustentavam um projeto nacional, hoje fechada em seus condomínios privados, identifica-se "mais com as suas similares no Japão, Cingapura e Coréia do que com a maioria dos seus compatriotas"3. Seu poder na formação da opinião pública, apoiada nas condições favoráveis que se abriram com a internacionalização cultural do mundo, torna-se o pólo de um novo senso comum alienado que repete, à exaustão, o discurso dos privilégios que ela pretende cada vez mais usufruir.

Através do desemprego alarmante que é objeto de políticas compensatórias, da consolidação do trabalho intermitente, informal e da meia-jornada (esta, nos países de economias avançadas), o capital já se apropriou da crescente produtividade originária da terceira revolução científico-tecnológica. Os efeitos de uma concentração de renda cada vez mais dramática espalham-se por todos os continentes: nos EUA, entre 1979 e 1993 as classes assalariadas de menor renda perderam 17% do seu poder aquisitivo, enquanto pequena parte da população mais rica aumentou-o em 18%.

O tribalismo e o nacionalismo fascista que ressurgem em inúmeros países decorrem contraditoriamente da globalização. São provocados pela unificação da desordem econômica do mundo, que não somente enseja migrações em massa, estimuladoras do ódio aos pobres - inclusive no seio do velho proletariado dos países industriais - mas também faz reaparecer as identidades locais, face às manifestações de resistência cultural, que emergem das culturas agredidas pela padronização do mercado e pelo estupro do consumismo predatório.

A desorientação dos indivíduos, neste quadro histórico de desestruturação da sociedade de classes tradicional, sacrifica as utopias solidárias. Elas são substituídas - apoiadas no domínio uniformizador das grandes cadeias de comunicação - pelas utopias neoliberais que defendem o "fim da História" e a supremacia de um mercado livre e justo4.

As categorias profissionais originárias da sociedade pré-informática e os trabalhadores do setor público - no plano sindical - são as principais vítimas destas mudanças, ao lado dos excluídos e semi-excluídos da nova sociedade digital-informática. A falência do Estado tradicional, seja o desenvolvimentista do terceiro mundo, seja o velho Estado de bem-estar, transforma em algozes as próprias vítimas: quando os governos chamam à ordem e à disciplina, para permitir o ajuste, os que conquistaram alguns direitos elementares nas lutas sociais da segunda revolução industrial rapidamente tornam-se a escória, que impede a modernização pelo apego ao privilégio de levar uma vida decente.

A ausência, porém, de uma nova referência utópica, compatível com o mundo atual e com capacidade de se contrapor à ideologia do livre-mercado é impelida, não pela queda do socialismo estatal-burocrático, mas também pela falta de uma agenda mínima, capaz de introduzir uma expectativa de futuro, que tenha capacidade de sedução calcada na vida cotidiana.

O sindicalismo que arrancava direitos de um Estado com mínima capacidade de resposta (no caso dos servidores públicos), ou o sindicalismo de categorias profissionais privadas, ao contrapor-se ao capital de forma coletiva nos setores mais tradicionais da economia (no caso dos trabalhadores da indústria), incidiam, na época do seu máximo vigor, diretamente sobre a cotidianeidade. Mantinham ou aumentavam o poder aquisitivo de uma grande parte da população, alimentavam uma cultura de solidariedade com resultados efetivos para os indivíduos e para o conjunto das classes populares, as quais também obtinham vantagens indiretas através de uma distribuição geral de renda menos perversa.

Foi precisamente esta idéia de resultado que Medeiros tentou resgatar - já como capitulação e adesismo - na década de 80 e que se mostrou impotente. Esta impotência ocorreu por motivos políticos e também econômicos: a fragmentação da produção, a automação, o aumento do desemprego, a possibilidade de produzir rapidamente em um lugar mais barato e a terceirização, permitem hoje outras alternativas ao capital, que não as velhas concessões distributivas.

O Estado de bem-estar, por seu turno, chega ao ocaso. E isso ocorre depois de um período de largo florescimento político e econômico, corno resposta humanizadora do capitalismo ao socialismo realmente existente. O vigor do setor público, nestes países, que era a chave da sua vocação distributiva, vem sendo desmantelado não sem resistência. Este Estado configura-se como obstáculo a um novo ciclo de acumulação, para reorganização do processo produtivo. Hoje, ele não tem mais perspectivas de retorno às suas tradicionais funções: "nos EUA, a renda primária de pouco mais de 40% da população depende do setor público. Em alguns países europeus, esta porcentagem chega a 65% considerando tanto aposentados e assalariados quanto os receptores de outras transferências públicas. Neste sentido, o Estado de bem-estar continua sendo uma esfera fundamental nas sociedades desenvolvidas. A manutenção destas instituições não significa que os Estados de bem-estar realmente existentes possuam hoje os recursos suficientes ou a capacidade necessária para enfrentar os crescentes problemas sociais existentes nos países capitalistas avançados."5

O sindicalismo vê-se, assim, de um lado sem a previsão socialista da velha tradição marxista (para se tornar revolucionário) e, de outro, sem a possibilidade imediata de retomada da distribuição de renda (para ser reformista com resultados) através do Estado de bem-estar. Este, ao mesmo tempo que se desmantela, desenvolve antídotos para elidir os confrontos econômicos de classe, através dos meios, recursos e instrumentos, proporcionados pela terceira revolução tecnológica. É uma outra época de um novo mundo, com novos focos de conflitos, novas formas de luta de interesses entre as classes e grupos e também de surgimento de uma ampla pluralidade de novos sujeitos sociais.

Impõe-se a "revisão da nossa concepção da época atual e das forças matrizes dessa época", como acentuava Trotski, profeticamente, num texto lapidar6: "A guerra é uma nova prova não apenas da estabilidade dos regimes existentes, mas também da capacidade do proletariado de substituí-los. Os resultados dessa prova terão indubitavelmente um significado decisivo para a nossa avaliação da época moderna como a época da revolução proletária. Se, contra todas as possibilidades, a Revolução de Outubro, durante a guerra atual ou logo depois, não conseguir se estender a algum país avançado; e se, ao contrário, o proletariado for obrigado a recuar em todas as frentes, então teremos indubitavelmente de colocar a questão da revisão de nossa concepção da época atual e das forças motrizes dessa época."

A revisão destas forças motrizes de que nos falava Trotski não só exige um novo papel do movimento sindical mais estratégico do que antes para intervir politicamente, como também para criar uma nova cultura e as sementes de um novo modo de vida: um espaço contra-hegemônico, que seja ao mesmo tempo uma crítica do Estado e impulsionador de formas autônomas de organização da sociedade civil.

Tudo isso deve ser compreendido como um projeto de largo curso que incida diretamente na cotidianeidade da população com experiências que antecipem elementos de um novo tipo de Estado e ensejem novas formas de organização da sociedade. As cooperativas autogeridas dos sem-terra que se tornaram pequenos proprietários, as greves de docentes com atividades alternativas para os alunos, a intervenção dos sindicatos nas gestões locais e regionais (mormente nas questões de saúde e habitação), a articulação de projetos culturais e sociais com as entidades comunitárias (do terceiro setor), as propostas e práticas que conduzam à democratização dos meios de comunicação (a instalação de emissoras alternativas), ações combinadas com a luta por novas tutelas sobre o novo mundo do trabalho, parecem ser alguns movimentos e demandas que podem romper com a fragmentação e o corporativismo que atualmente levam o movimento sindical ao isolamento e à impotência e, em certos casos, à antipatia de maior parte da população.

Novas formas de luta

Estamos tratando de um fenômeno universal que atinge o conjunto da economia dos países desenvolvidos e abarca os setores mais modernos dos países periféricos.

As relações coletivas ou individuais de trabalho, nestes setores, pautam a redistribuição do salário em escala de massa salarial concentrando renda também no espectro assalariado. Esta universalidade também é (e sobretudo) analisada pelos porta-vozes do capitalismo, com os seus diversos matizes, mais ou menos humanistas ou democráticos.

Vejamos como um importante teórico do capitalismo observa este processo: "O rápido aumento na produtividade dos trabalhadores que faziam e movimentavam coisas superou o pesadelo do conflito de classes do século XIX. Agora é preciso um rápido aumento na produtividade dos trabalhadores em serviços para evitar o perigo de um novo conflito de classes entre os dois novos grupos dominantes na sociedade pós-capitalista: os trabalhadores do conhecimento e os trabalhadores em serviços. Assim, a elevação da produtividade do trabalho em serviços é a primeira prioridade social da sociedade pós-capitalista, além de ser uma prioridade econômica."7

O que na verdade se constitui em mudança nas formas da luta de interesses entre as classes, Drucker designa como superação do pesadelo da luta de classes em geral. Mas é, por outro lado, plenamente correta sua afirmativa em relação à verdadeira necessidade de elevação da produtividade no setor de serviços. Ele é o novo coração do desenvolvimento orgânico da sociedade atual, o que importa em dizer que o novo processo produtivo joga a luta sindical mais moderna e com mais possibilidades de influir no poder, para um setor onde o trabalho pode ser prestado de forma fragmentária e com baixo potencial organizativo de caráter sindical.

O desajuste na produção, que é momentâneo para Drucker, aumenta o passivo social do Estado nas suas relações com os cidadãos. E tal fenômeno, que ocorre gravemente em países como o nosso, também opera nos países desenvolvidos. Com a omissão estatal gera-se, no que se refere à seguridade social por exemplo, um déficit de larga repercussão política. Ele instiga a marginalização, ao mesmo tempo que induz a organização autônoma da cidadania para fazer valer os seus parcos direitos: "Pelo contrário, a ausência de seguridade social se julga cada vez mais insuportável por uma fração crescente (mas sempre minoritária) da população norte-americana.8

A questão do emprego, do não-emprego e da natureza do emprego e suas conseqüências torna-se, assim, um tema político relevante. Sem dúvida são estes os elementos sócio-econômicos mais fortes que fazem a mediação do cotidiano dos cidadãos (como os homens pensam e vivem no agora) com a História da sociedade (as questões macrossociais que movimentam uma época). A questão do emprego, do não-emprego e da natureza do emprego passam a ser a questão vivida no dia-a-dia que tem mais vínculos com a situação universal do capitalismo e tornam-se o tema mais capaz de ligar os interesses dos excluídos com a própria sociedade formal: "A dura realidade que economistas e políticos são relutantes em reconhecer é que a produção de bens e grande parte do setor de serviços, estão sofrendo uma transformação profunda tanto quanto aquela conhecida pelo setor agrícola no início do século, quando as máquinas deram enorme impulso à produção, substituindo milhões de agricultores. Encontramo-nos hoje nas fases iniciais de uma passagem de longo período do trabalho de massas a trabalho de elite, altamente qualificado, acompanhado de uma crescente automação da produção de bens e de serviço. No horizonte, despontam fábricas sem trabalhadores e empresas virtuais. Se hoje o desemprego é ainda relativamente contido, para os próximos quatro decênios se pode esperar que aumente em modo constante e inexorável à medida em que a economia global complete a transição à Era da informática."9

Em países como o nosso, o resquício de segurança que sobra para orientar a vida cotidiana - neste processo estonteante - é o fenômeno psicológico e político criado por um fato econômico abrangente: a estabilidade da moeda. Ela tem efeitos concretos na vida de todos no sentido de proporcionar uma orientação mínima para projetar o futuro, além de acabar com o imposto inflacionário que penaliza particularmente os assalariados: "Candidatos identificados com programas de estabilização e com reformas outrora vistas como impopulares ganham por ampla margem (caso de Fernando Henrique), resistem ao desgaste a ponto de fazerem seus sucessores ou obterem um segundo mandato (Salinas/Zedillo no México, Menem na Argentina), e conseguem mesmo legitimar a posteriori mandatos que haviam se tornado democraticamente questionáveis (Fujimori no Peru).10

Em regra, neste turbilhão o movimento sindical tem se pautado por duas condutas, existindo entre elas infinitas gradações. A primeira adere aos valores neoliberais e compartilha do ajuste, funcionando como uma força auxiliar das novas formas de mercantilização do trabalho e de sujeição dos trabalhadores ao mito do mercado desregulado. A segunda, guardando os valores históricos da solidariedade e da luta, mantém a exclusividade da radicalização da luta salarial (logo, dos trabalhadores que estão no mercado tradicional de trabalho) como única centralidade do seu movimento.

A primeira obtém certo sucesso imediato como força pacificadora do ajuste. A segunda, isola-se da maioria da população porque não cativa a sociedade formal ou a parte da sociedade, mesmo assalariada, que se integra aos novos mercados de trabalho criados pelas novas tecnologias. Ela está excluída ou fragmentada nas diversas formas de produção horizontal, terceirizada, semi-empregada, na informalidade, ou prestando serviços avulsos, situação que cresce sem cessar. Desta forma, o sindicato combativo enfrenta isolado principalmente os ramos da atividade econômica que hoje já têm infinitas formas de defesa: desde o apelo à mão-de-obra desempregada, sequiosa por voltar ao mercado de trabalho, até o simples fechamento da empresa, a terceirização, ou mesmo a reciclagem produtiva, para uma menor utilização do "trabalho vivo".

Novas propostas

A dissolução das categorias profissionais no interior das médias e grande unidades fabris - face à terceirização, automação e robotização - mudou profundamente a subjetividade das massas assalariadas. Criou novos interesses particularistas no mundo do trabalho e deu maior flexibilidade à resistência patronal. Alterou os conflitos coletivos e redistribuiu, segundo a melhor conveniência, a massa salarial destinada a contraprestar a força de trabalho. Os níveis dramáticos a que alcançou o salário mínimo no Brasil são conseqüência, também, desta redistribuição dos salários internamente às diversas frações das classes trabalhadoras.

No setor público, já despolitizado pelo enxugamento das políticas sociais, os movimentos reivindicatórios chocam-se especialmente contra os direitos da população mais pobre dos grandes centros urbanos. As camadas médias e superiores melhor remuneradas abandonam, paulatinamente, os serviços de origem estatal e privatizam cada vez mais as suas aspirações a uma vida melhor. Os mal-remunerados, assim, enfrentam as necessidades dos deserdados ou miseravelmente remunerados, cujo apelo aos carentes serviços estatais às vezes é, para eles, uma questão vital.

No imaginário dos excluídos ou simplesmente pobres, a cisão da sociedade formal com a informal aparece como uma grande conspiração da política: da sindical, dos políticos em geral, dos marajás privilegiados, da "política inflacionária que nos levou a este caos". Assim, tudo o que significa estabilidade, ordem, funcionamento regular, redução deste Estado incompetente, passa a ter audiência e atenção, sustentada pelos meios de comunicação ordinariamente comprometidos com o liberalismo e o neoliberalismo. Não é de graça que os excluídos estão cada vez mais abertos ao populismo de direita e ao messianismo autoritário das seitas fundamentalistas.

No universo sindical, as tentativas do sindicalismo de esquerda de romper o isolamento com a mera radicalização do movimento, sem propostas que o legitimam na consciência média da sociedade, não só têm aprofundado a crise no interior das categorias que representam - acuadas pelo desemprego e pela não-aceitação social dos seus movimentos - como também põem a nu a ausência de propostas que apresentem saídas aceitáveis e convincentes para a população. Tal situação foi plenamente constatada nas lutas contra as reformas de FHC, as quais se deram desacompanhadas de um projeto de reforma do Estado que tivesse apelo popular e sedução para o engajamento dos novos sujeitos sociais que surgiram nas últimas décadas: os empregados e prestadores de serviços originários da terceira revolução tecnológica e das novas formas de produção; os socialmente excluídos; os desempregados; os eventuais; as camadas médias empobrecidas, que também não têm qualquer apego ao Estado que aí está.

As lutas sindicais sempre foram (num primeiro momento) majoritariamente lutas por inclusão na ordem jurídico-política; depois lutas por uma maior inclusão social ou por um outro tipo de inclusão (hegemônica), como no sindicalismo estrategicamente revolucionário. A transição das sociedades predominantemente agrárias para o modelo urbano-industrial favorecia e potencializava estes movimentos. A separação e a fragmentação dos interesses imediatos do mundo do trabalho incluído, em relação à força de trabalho excluída, ajuda a cindir a subjetividade das classes populares e também do próprio exército de reserva. Tal acontecimento histórico pôs à vista de todos duas sociedades que pouco se comunicam politicamente.

A natureza do desenvolvimento urbano-industrial em curso não proporciona uma transição molecular expressiva dos indivíduos das classes subalternas para uma situação social superior (de baixo para cima). Este desenvolvimento também dispensa - para proveito do capital - a recuperação da força de trabalho da maior parte dos trabalhadores excluídos. Eles não são necessários para o funcionamento da nova produção digital-informática, que organiza o novo setor terciário, o mais dinâmico e verdadeiramente estratégico da economia. Este requer menos de mão-de-obra, cujo contingente é abundante na juventude e pode, assim, filtrar os melhores entre jovens desempregados e em início de carreira. Desta forma, o capital consegue incluí-los e moldá-los, segundo as novas técnicas de produtividade e os novos métodos de gerenciamento.

O sindicalismo urbano precisa, portanto, romper o espaço das suas demandas imediatas. Não para suprimi-las, mas para combiná-las inteligentemente com as necessidades da maioria excluída ou semi-excluída, articulando, através das suas demandas, movimentos criadores de uma nova cultura da solidariedade. Este processo só será efetivo se incidir no cotidiano das mais amplas camadas da população, que hoje estão subjugadas por um modo e uma promessa de vida tutelados pelos setores mais privilegiados da sociedade incluída, inclusive a alta classe média.

A radicalização do movimento, para propor mudanças no Estado e no atual projeto do capital financeiro, só será efetiva se dela decorrerem alterações ou possibilidades de mudanças visíveis na cotidianeidade destas maiorias que estão disponíveis politicamente, tanto para o engodo neoliberal como para um projeto humanista e verdadeiramente transformador. A mera radicalização sem novos conteúdos levará o radicalismo de esquerda a um isolamento e a uma dissolução política cada vez mais evidente, embora ele tenha sido responsável por conquistas importantes até a década de 70.

Na consideração dos fatores que compõem esta nova situação do mundo do trabalho deve se ter em conta que ele já carrega, rudimentar mas explosivamente, novos valores que foram constituídos pelas novas formas de produzir e também de excluir, particularmente em relação à juventude.

O estreitamento do mercado de trabalho e os novos tipos de oferta, para inserção social através deste, vêm alterando significativamente o próprio trabalho como fator de identidade. É preciso ter em conta, também, "que para a maioria das pessoas, e sobretudo os jovens, o trabalho deixou de ser uma fonte de identidade, de pertença à sociedade, de sentido. Quanto mais o discurso social e político dominante se obstina em fazer do emprego o fundamento da coesão social e do sentido da vida de cada um, mais se sentirão estranhados ou socialmente excluídos todos aqueles e aquelas, virtualmente majoritários, para quem o emprego é sempre precário, temporário, à mercê, do arbítrio patronal e das flutuações do mercado".

De qualquer forma, é necessário considerar que a velha esquerda, da qual a maioria de nós somos originários, baseou toda a sua estratégia na visão de que era preciso destrancar o desenvolvimento das forças produtivas, contido pelo capitalismo, tocando numa espécie de ponto arquimédico de equilíbrio conservador: a insurgência do sujeito classe operária, que não só sempre foi uma minoria, mas também foi incapaz de alçar-se apesar do esforço das intelligentzias revolucionárias em ofertar-lhe uma nova consciência como advogava Lenin - à condição de sujeito com efetividade dirigente.

É evidente que tal processo não foi produto de uma traição ou de uma simples crise da direção, como querem respectivamente os pólos mais conservadores do stalinismo e do trotskismo. O que ocorreu gerou-se por uma conjugação de fatores que transformaram uma particularidade (a classe operária moderna) num falso universalismo, que foi ao mesmo tempo o principal fator de modernização e humanização (restrita) do capitalismo e também limite prático e teórico para um projeto universal. Wallerstein ressalta com propriedade: "A velha esquerda era um movimento mundial apoiado por uma minoria, uma minoria poderosa, uma minoria oprimida, mas, de qualquer maneira, uma minoria numérica da população mundial. E essa realidade demográfica limitava suas opções políticas reais. Sob as circunstâncias, optou por ser a espora aceleradora do programa liberal de reformismo radical e nisso foi muito bem-sucedida. Os benefícios para seus protagonistas foram reais, ainda que parciais. Mas como proclamaram os revolucionários de 1968, muita gente foi excluída da equação. A velha esquerda falava uma linguagem universalista, mas praticava uma política particularista."11

Nova organização do trabalho

Para inscrever o movimento sindical no curso da disputa para uma nova utopia, é necessário ter como referência abstrata a ultrapassagem da sociedade do trabalho assalariado. Para isso, porém, a geração de uma nova cultura política (através de um processo tanto político como propriamente cultural) só poderá ocorrer se os sujeitos ou atores sociais, como os denomina Gorz, tiverem capacidade de propor um projeto que no presente esteja grávido do futuro utópico. As práticas regeneradoras da solidariedade, que se opõem tanto ao mercado desregulado como obstruem a retomada dos vínculos dos trabalhadores e das camadas médias da sociedade formal, com o vasto mundo da sociedade informal, devem estar presentes na cotidianeidade.

Não se trata de paixão pela rotina. Ao contrário, trata-se de ter uma política que seja conscientemente oposta à fragmentação da sociedade atual, que impõe, de forma crescente, a separação dos indivíduos na produção e na vida privada. Ela tende a desconstituir a vida coletiva e privatizar, cada vez mais, os espaços públicos qualificados. Esta incidência no cotidiano deve buscar (através de ações práticas e de movimentos que despertem o imaginário popular) a disputa por novos valores, capazes de subsidiar projetos gerais e também alimentar a articulação dos novos sujeitos.

Diz André Gorz: "Teremos ultrapassado a sociedade do trabalho assalariado - e com ela, o capitalismo - quando as relações de cooperação voluntária e de trocas não-mercantis auto-organizadas se impuserem sobre as relações de produção capitalistas: sobre o trabalho-emprego, o trabalho-mercadoria. Essa superação do capitalismo está inscrita na lógica da mutação técnico-econômica em curso. Mas ela só levará a uma sociedade pós-econômica, pós-capitalista, se esta sociedade for projetada, exigida por uma revolução tanto cultural quanto política: quer dizer, se os atores sociais se apoderarem do que ainda é apenas uma mutação objetiva para se afirmarem como sujeitos da liberação que esta mutação torna possível."12

Não há nenhuma possibilidade de que esta transformação radical se opere somente a partir do trabalho que produz valor. A tendência instalada pela terceira revolução científico-tecnológica é que o trabalho que produz valor (trabalho vivo) torne-se cada vez menos importante para a reprodução da sociedade e sua humanização. Acresça-se a isso o fato de que o processo de informatização, robotização e telematização promove cada vez mais a separação entre os indivíduos e grupos sociais, reduzindo a importância do trabalho estruturado coletivamente, tal qual se configura até hoje.

Por isso, um conjunto de práticas sociais, ações políticas, programas de governo e projetos culturais - através dos quais o movimento sindical pode adquirir grande importância - deve buscar a dissolução das fronteiras que separam a imensa massa de trabalhadores da informalidade (e os já excluídos) daqueles que orbitam nas novas e velhas esferas produtivas e dos serviços. Só assim será possível criar uma dinâmica social integradora, baseada na solidariedade e nas aspirações ao bem-estar das amplas maiorias que o neoliberalismo não pode contemplar.

Como diz Gorz, "falta ainda uma mediação entre a aspiração dos indivíduos a se tornarem sujeitos de sua própria vida, de suas escolhas, de sua escolha de vida e o reconhecimento social da legitimidade e do valor desta aspiração. Falta ainda um estatuto social que confira às atividades não socialmente predeterminadas e que não têm sua remuneração monetária como condição e objetivo; existência social e política que o dinheiro, o pagamento, o contrato conferem ao trabalho".13

Várias das questões que emergem da atual reciclagem capitalista não terão soluções ainda que mínimas, por embates de resistência ou enfrentamento. Refiro-me, por exemplo, ao desaparecimento ou redução do emprego em determinados ramos da produção tradicional, cujos representantes faziam concessões que se transformavam em direitos com certo grau de universalidade. De outra parte, a integração do trabalhador na empresa esfacela-se com a horizontalidade da produção (fragmentação das empresas pela especialização ou pela terceirização) ou com o simples desaparecimento de certos ofícios, os quais são substituídos por programadores ou supervisores das novas maquinarias eletrônicas.

É preciso pensar em introduzir novas formas de tutela para a prestação de serviços e também novos modelos de organização industrial, semelhantes ao que se realiza, por exemplo, em Bolonha (Itália), onde um conjunto de atividades industriais integradas, com base em pequenos e médios empreendimentos, resulta numa economia local de escala, altamente qualificada e produtiva.

A crise gerada pelo atraso do Direito do Trabalho, em relação às formas novas de produzir, por seu turno, exige o alargamento do tradicional âmbito de sua interferência, como direito exclusivo da relação contratual que tutela o trabalho juridicamente subordinado. Trata-se de postular o surgimento de um novo Direito do Trabalho que possa, pela criação de novas instituições, interferir naquilo que os juristas tradicionais designam como Direito Econômico.

Um novo sindicalismo

Proponho alguns elementos de um projeto de retomada do sindicalismo como instrumento regenerador da solidariedade. O ponto de partida desta contribuição sustenta-se naquilo que Boaventura de Souza Santos chama de "ambição de cidadania partilhada", possibilidade que decorre de todas as trágicas - para o mundo do trabalho - mutações sociais e econômicas que ocorreram nas últimas décadas: "a experiência de trabalho, sendo cada vez mais presente e premente enquanto prática de vida, será cada vez mais desvalorizada enquanto cultura e ideologia. Será cada vez mais cercada e relativizada por experiências culturalmente mais valorizadas tais como a experiência da cidadania contra a exclusão social, da participação contra a alienação, da democracia contra os fascismos privados, dos direitos do consumidor contra um consumo degradado, dos direitos ecológicos e culturais contra a perda da qualidade de vida. Por esta via, far-se-á uma transferência progressiva da identidade operária para a identidade cidadã. Isto significa valorizar o que de melhor a cultura operária produziu: uma ambição de cidadania partilhável por toda a sociedade."14

Alguns enunciados que decorrem do exposto:

1. A luta contra o desemprego combinada com a luta por novas tutelas jurídicas para enfrentar a intermitência, a descontinuidade do trabalho prestado na terceirização e as novas formas autônomas de produzir;

2. A luta de resistência em favor dos direitos sociais das velhas classes assalariadas combinando-as com propostas de mudanças - tanto no setor público como no privado - que impliquem a defesa dos direitos das populações de média, baixa renda e das excluídas, por exemplo, pela eficiência do serviço público e por programas de produção para o atendimento das necessidades básicas da cidadania;

3. A luta pela reforma do Estado, buscando dar efetividade aos direitos sociais em sentido amplo, através do controle público não-estatal, tanto sobre o governo político, como sobre a burocracia do Estado, nas diversas esferas de poder;

4. A luta pela socialização dos postos de trabalho e pela criação de empregos para os excluídos ou em vias de exclusão, através de investimentos do Estado em infraestrutura e serviços públicos não necessariamente criadores do valor;

5. A luta pela reorganização, nas grandes e médias cidades, dos espaços públicos, para auxiliar à criação de uma nova esfera pública, cultural e política, em torno de projetos que reorganizem a cidade, promovendo condições favoráveis para a dissolução do individualismo, com a emergência de estruturas de produção e reprodução de uma opinião pública independente do poder midiático.

O texto teve oportunas sugestões de Jorge Buchabqui

Tarso Genro é prefeito de Porto Alegre (gestão 1993-1996).