Internacional

Às vésperas da 2ª Conferência de Cúpula das Américas, a ser realizada em abril de 1998 em Santiago, Chile, é importante desenvolver visões diacrônicas sobre as relações entre os Estados Unidos e os países da América Latina e do Caribe

“No hay criticidad posible, si no incorpora eso que llamamos vagamente historia"

Hugo Zemelman, 1995.

Na história de pouco mais de um século de relações predominou o conflito entre a vocação hegemônica da grande nação do Norte e as resistências das nações latino-americanas que, com características diversas, expressaram sua vontade de autonomia.

Há autores que explicam essa relação a partir das diferenças nos processos de formação dos Estados, considerando o movimento de expansão territorial dos Estados Unidos após a declaração da independência como determinante dessa vocação, enquanto na América Latina as lutas políticas teriam postergado a formação dos Estados nacionais. (Gorostiaga,1991)

Outros entendem que houve uma inserção internacional diferente durante o período colonial. Os Estados Unidos teriam se beneficiado de um certo protagonismo das colônias britânicas nos acontecimentos europeus, em especial nas mudanças políticas e econômicas havidas no século XVIII, enquanto as colônias ibéricas se mantiveram marginalizadas. (Tulchin,1990).

Apesar dessas digressões, o importante é a constatação da expansão dos Estados Unidos no século XIX, feita às custas de perdas territoriais do México, o que marcou profundamente a natureza das relações no continente.

A Espanha já havia antecipado essa vocação de expansão do Norte em direção ao Sul, segundo o relato de Luis de Onis, embaixador espanhol nos EUA em 1812: "A cada dia desenvolvem-se mais e mais as idéias ambiciosas desta República e confirma-se seu olhar hostil contra a Espanha. Vossa Excelência já sabe, pela minha correspondência, que este governo quer fixar seus limites na desembocadura do Rio Norte ou Bravo, seguindo seu curso até o grau 31 e daí traçando uma linha reta até o mar Pacífico, tomando para si as províncias de Texas, Nuevo Santander, Coahuila, Nuevo México e parte de Nueva Vizcaya e La Sonora. Parecerá um delírio esse projeto a toda pessoa sensata, mas o projeto existe e há um plano do governo sobre essas províncias, incluindo também a ilha de Cuba, como parte natural dessa República".

A mensagem do presidente Monroe, em 1823, adotada como princípio ou doutrina de política externa norte-americana, teve o objetivo primeiro de coibir a extensão da influência européia nas Américas: “Os continentes americanos, pela condição de Estados livres e independentes que têm assumido e sustentam, não devem ser considerados, doravante, como sujeitos a futura colonização por nenhuma potência européia". (Perkins, 1964)

A Doutrina Monroe, como declaração unilateral de política externa, inaugurou uma prática mantida pelos governos, republicanos ou democratas, que reservaram-se o direito de interpretá-la segundo seus interesses.

A expansão territorial ganhava a opinião pública: "...é nosso Destino Manifesto expandir-nos e possuir todo o continente que a Providência nos tem posto à frente para o desenvolvimento do grande experimento da liberdade e a federação de Estados" (Morning News, Nova York, dezembro de 1845).

A guerra contra o México, que originou a tomada do estado do Texas em 1836 e culminou com a perda de mais de 50% do território mexicano, foi a prova da vigência do interesse nacional norte-americano na formulação da Doutrina Monroe: “América para os americanoss” significava América para os norte-americanos!

Após a guerra civil norte-americana, em pleno processo de expansão colonial europeu na África e na Ásia, gerador de tensões entre as grandes potências, fortaleceu-se a corrente que defendia o nacionalismo expansionista, expressando a força do "industrialismo triunfante". Concomitantemente, desenvolvia-se a percepção "idealista" dessa política, baseada na convicção de que a nação norte-americana tinha uma missão internacional a cumprir na defesa da democracia e da liberdade, contra os despotismos.

Portanto, mesmo em tempos de Pax Britanica, os Estados Unidos já implementavam uma política autônoma, dando origem, no século XlX, a disputas de influências sobre a América Latina.

Da 1ª Conferência Panamericana à 2ª Guerra

Nesse contexto de disputa de influências, no ano de 1881 o secretário de Estado James G. Blaine convidou as nações latino-americanas para uma conferência sobre questões relativas ao comércio internacional e à arbitragem nas disputas interamericanas.

Avatares de política interna atrasaram a convocação. A Primeira Conferência Panamericana se reuniu, finalmente, em 1889-90 na cidade de Washington, com o objetivo de transformar a América Latina num mercado natural e privilegiado para as manufaturas norte-americanas que, na época, não eram competitivas em relação à indústria européia.

A oposição da Grã-Bretanha a esse projeto encontrou um porta-voz eficaz no próprio continente: a representação argentina que, em função de seu vínculo privilegiado com a grande potência européia, estava disposta a enfrentar a proposta de Blaine. A pauta da Conferência, elaborada unilateralmente pelo governo norte-americano, previa a adoção de medidas destinadas à formação de uma união alfandegária americana – um "zollverein continental" – à moda da união alemã.

As instruções recebidas pelos delegados argentinos Roque Sáenz Peña e Manuel Quintana foram precisas: "A formação de uma liga alfandegária americana envolve, à primeira vista, o propósito de excluir a Europa das vantagens acordadas no seu comércio. Tal pensamento não pode ser simpático ao governo argentino, que não gostaria de ver enfraquecidas suas relações comerciais com aquela parte do mundo para onde enviamos nossos produtos e de onde recebemos capitais e mão-de-obra". Sáenz Peña cumpriu bem a missão, concluindo seu discurso de oposição à união alfandegária confrontando o lema de Monroe: “Seja a América para a Humanidade!".

Enquanto isso, no Brasil era declarada a República, provocando uma mudança na delegação. Salvador de Mendonça representou o novo governo e manteve o alinhamento com as posições latino-americanas, apesar da aproximação com os Estados Unidos promovida pela nova República.

Em seu livro de memórias, publicado em 1913, Mendonça relata o papel mediador que lhe coube nas negociações com o secretário de Estado Blaine: "Disse-lhe com firmeza que quinze votos latino-americanos estavam dispostos a fazer questão de que saísse da Conferência nesse dia a eliminação da conquista, e que essa maioria me encarregara de lhe comunicar esse propósito. Desejávamos apenas tornar mais completo o arbitramento obrigatório e garantir de modo solene a integridade, a soberania e a independência de todas as nações de nosso continente. Abolida a conquista, cessariam as suspeitas de vizinhos contra vizinhos e principalmente contra a sua grande e poderosa nação."

O fracasso da 1ª Conferência Panamericana foi originado, principalmente, pelas posturas das delegações da Argentina e do Brasil, que lideraram o voto contrário à união alfandegária, desmontando o projeto dos Estados Unidos de construir o “sistema panamericano” sob hegemonia norte-americana.

As Conferências Panamericanas do México (1901-02); Rio de Janeiro (1906) e Buenos Aires (1910) obtiveram resultados pouco expressivos, gerando a impressão de que o Panamericanismo, depois de Blaine, tinha perdido significação central na agenda do Departamento de Estado. A ação unilateral prevaleceu e restou aos fóruns multilaterais o tratamento de questões consensuais, determinando um paulatino esvaziamento político da agenda panamericana.

Após a Guerra Hispano-americana de 1898, o foco da política externa norte-americana se tinha voltado para os países da América Central e do Caribe, inaugurando uma etapa marcada pela agressividade. A “americanização do mundo" era vista com alarma na Europa e, também, na América Latina. No Brasil, a assinatura do Tratado de Comércio com os Estados Unidos já tinha sido objeto de duras críticas de setores com interesses econômicos industrialistas. No Congresso nacional, durante a sessão de 9 de fevereiro de 1891, o deputado Vinhaes manifestava: "Há muito tempo que os Estados Unidos da América do Norte desejam fazer um tratado de comércio com o Brasil, tomando, já se vê, a parte do leão para si. Um dos principais paraninfos do Tratado nos Estados Unidos foi Blaine, secretário-geral do governo de Washington. Aquele estadista é conhecido no mundo como um dos mais aferrados protecionistas quando se trata de assuntos internos, tornando-se o mais exaltado livre-cambista logo que venha à baila assunto de caráter externo."

No plano geopolítico, a imposição da emenda Platt a Cuba, a separação do Panamá da Colômbia e a construção e posse do canal interoceânico consagraram a supremacia da potência emergente, que ganhava o reconhecimento das potências européias. O bloqueio da Venezuela por parte da Inglaterra, Alemanha e Itália, com o objetivo de exigir o pagamento da dívida que o governo venezuelano havia suspenso, originou a tomada de posição do presidente Roosevelt, que desenharia as relações dos Estados Unidos com a América Latina e a Europa no século XX. O Estado norte-americano abandonava para sempre os sonhos dos Founding Fathers, se transformava em “polícia do continentee” e aprofundava o intervencionismo, seja pela pressão diplomática, seja por meios militares.

O Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe, formulado em discurso presidencial de 1904, era explícito: "A perversidade crônica, ou uma impotência que resulte na perda geral da unidade da sociedade civilizada, poderia necessitar, em última instância, da intervenção de uma nação civilizada. No Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe pode forçar esse país, em casos flagrantes de perversidade ou impotência, ao exercício de um poder de polícia internacional".

O intervencionismo nos países da América Central e do Caribe e, em especial, no México revolucionário, marcou as três primeiras décadas do século. O “idealismo wilsonianoo”, inspirador da Sociedade das Nações, não se aplicava às relações hemisféricas.

A chegada do segundo Roosevelt ao poder provocou uma profunda reestruturação do governo dos Estados Unidos e de sua política externa.

Implementou-se um reajuste nas relações com a América Latina, que ficaria explícito na Política de Boa Vizinhança apresentada na Conferência Panamericana de 1933. A democracia liberal como paradigma político foi o combustível que reanimou o espírito missionário do “destino manifesto" na preparação da luta contra o nazifascismo. Roosevelt pressentira, desde o início de seu governo, que essa luta levaria os Estados Unidos a entrar na guerra. Seria, portanto, imprescindível contar com o todo o hemisfério unido, vinculado por um conjunto de acordos permanentes, fundamentados em visões político-estratégicas compartilhadas.

Da Guerra Mundial à década de 80

Uma segunda etapa nas relações Estados Unidos-América Latina corresponde ao período da Guerra Fria, durante o qual se consolidou o poderio global e a hegemonia continental norte-americana.

Após a 2ª Guerra é assinado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), durante a Conferência de Rio, em 1946, e dois anos depois se completa o arcabouço institucional com a fundação da Organização dos Estados Americanos (OEA), com o objetivo de remodelar as relações hemisféricas nos marcos da Guerra Fria.

Apesar da retórica, o projeto de Boa Vizinhança havia sido abandonado em prol da política de alinhamento estratégico. Os imperativos da segurança militar, no interesse de atrelar a América Latina ao campo ocidental vis à vis da União Soviética e de seu bloco de poder, abriram profundas gretas nas pilastras da ordem interamericana.

A derrota do presidente de Guatemala, Jácobo Arbenz, em 1954, foi paradigmática. Os Estados Unidos justificaram sua intervenção aberta a partir da Resolução XXXII sobre a “Preservação e defesa da democracia na América" (OEA,1948). A frustração da Operação Panamericana, proposta por Juscelino Kubitschek, pode ser explicada como parte dessa estratégia que privilegiava a segurança.

Por outro lado, as tentativas de desestabilizar a Revolução Cubana; a intervenção no golpe militar de 1964 no Brasil - primeiro de uma série na América Latina - e a invasão da República Dominicana foram as evidências de um processo de controle hemisférico que originou um longo processo de resistência na América Latina.

Foi uma época de fortalecimento da idéia de uma integração continental que excluísse os Estados Unidos. A formação da Alalc, do Pacto Andino e do Mercado Comum Centro-Americano foram tentativas de implantação de um modelo integracionista latino-americano.

As inconsistências e contradições entre os processos nacionais e esses projetos de integração regional foram aprofundadas pela irrupção de governos ditatoriais em muitos dos países da região.

Dos anos 80 a nossos dias

Este período é marcado pelo esforço dos governos norte-americanos para implementar uma política para a América Latina que funcione como instrumento de recomposição do seu papel hegemônico mundial, claramente comprometido na década de 70. A decadência relativa da indústria norte-americana, se comparada com as da Alemanha e do Japão, alarmava as empresas multinacionais americanas que sofriam perdas bilionárias. Para evitar o colapso, a proposta foi de imitar a agressividade exportadora daqueles países e diminuir o enorme déficit comercial. Para implementar esta estratégia, os Estados Unidos necessitavam da América Latina. Isto é, dos mercados da América Latina. Exatamente como um século atrás.

Henry Kissinger recomendava: "Não faz sentido que o capitalismo estatal continue sendo supremo ao sul do Rio Bravo... A privatização, a livre entrada de fluxos de capital e a redução do poder estatal devem ser elementos-chave de nosso programa. O México deve ser nosso caso de ensaio. As relações México-Estados Unidos devem servir de modelo para as negociações com outros países latino-americanos".

Salinas de Gortari, eleito presidente em 1989, aprofundou o processo iniciado por Miguel De La Madrid. Em junho de 1990, anunciava, junto ao presidente Bush, a intenção de formar uma área de livre comércio, incluindo o Canadá. O Nafta (North American Free Trade Agreement) foi concebido como âncora de uma nova política hemisférica: duas semanas depois, Bush enviava uma mensagem ao Congresso lançando a Iniciativa para as Américas.

A gravíssima crise econômica e política que assolou o México no final de 1994 e a revolta zapatista jogaram água gelada no início da vigência do Tratado.

Nesse contexto, o Departamento de Estado convocou a Cúpula das Américas, que se reuniu em Miami, em dezembro de 1994, com a presença de todos os países do Continente exceto Cuba. A agenda dessa reunião pretendia focalizar questões como Governabilidade, Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentado, mas os assuntos relativos ao comércio ganharam logo centralidade. Surgiu assim a proposta da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).

Ao longo desta história, ressalta a questão da hegemonia norte-americana. As outras nações do continente, impossibilitadas de exprimir suas vocações de autonomia em função de vulnerabilidades econômicas, políticas e institucionais, jogaram diferentes papéis para conseguir uma inserção internacional compatível com os interesses "nacionais" que, na maioria dos casos, se identificam com interesses particulares das elites dominantes.

As práticas de alinhamento automático às posições norte-americanas, como as desenvolvidas pelos governos brasileiros até a década de 70, com breves interrupções, mostraram-se incompatíveis com a formulação de projetos de desenvolvimento nacional. Por outro lado, nações como o México e a Argentina, de longa tradição contestatória da hegemonia norte-americana, passaram a implementar políticas externas subordinadas aos interesses dominantes na região.

A possibilidade de redesenhar uma política hemisférica que não responda a imperativos hegemônicos dependerá da capacidade dos governos em exprimir os interesses da sociedade e da democratização do processo de integração no plano regional. Romper com o modelo de integração autoritária é o desafio que se coloca aos povos do Continente, incluindo o povo norte-americano.

O histórico das relações hemisféricas deixa transparecer profundas desigualdades nas relações entre os Estados e, ainda, dentro das fronteiras nacionais. A integração de importantes setores da população que vivem à margem da cidadania e dos mercados, em vários países da América Latina, deverá ocupar os corações e as mentes dos formuladores de uma nova integração hemisférica. Em primeiro lugar, será necessário impulsionar políticas públicas que priorizem as necessidades e os interesses das maiorias, defendendo o aprofundamento e a democratização dos processos sub-regionais como o Mercosul.

A negociação hemisférica proposta para a Conferência de cúpula de Santiago não parece responder a esses objetivos. A modificação do rumo dependerá da capacidade de intervenção e de resistência dos que defendem um modelo de integração que respeite a vocação autônoma dos povos das Américas.

Referências bibliográficas

GOROSTIAGA Xavier, La triangulación Centroamérica-México-EUA, ed.DEI, Costa Rica,1991.

MOURA Gerson, A Segurança Coletiva Continental, o Sistema Interamericano, o TIAR e a Guerra Fria, II Seminário Nacional, USP, 1991.

PERKINS Dexter, Historia de la Doctrina Monroe, ed. Eudeba, Bs.As.,1964.

TULCHIN Joseph S., Argentina and the United States, A conflicted relationship Harvard University, Boston, 1990.

Ana M. Stuart é pesquisadora do Núcleo de Relações Internacionais da USP e assessora da Secretaria de Relações Internacionais do PT.