Sociedade

Historicamente, a criança e o adolescente no Brasil só apareciam na esfera pública como o menor que cometeu alguma transgressão à moral ou ao patrimônio. A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, eles passam a ser seres públicos portadores de direitos.

Historicamente, a criança e o adolescente no Brasil só apareciam na esfera pública como o menor que cometeu uma transgressão à moral ou ao patrimônio. A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, eles passam a ser seres públicos portadores de direitos

É interessante perceber a dificuldade que muitos têm em superar a denominação de menores pelas de criança e adolescente, ao se referir a problemas ou a soluções para essa faixa etária.

Esta dificuldade é reveladora do quanto a cultura de culpabilização das crianças é ainda presente em nosso país. Digo isto porque é efetivamente muito novo aceitar e incorporar que a criança seja um ser de e com direitos.

A transição de questões da esfera privada para a pública ficou por séculos determinada pela cultura patrimonial predominante no Brasil. Assim, no caso da criança e do adolescente, essa transição ocorria a partir da existência de uma transgressão à moral ou ao patrimônio. No mais, as questões da criança e do adolescente permaneciam resguardadas no âmbito particular da família.

A criança como um "ser de família" não tinha estatuto próprio, e suas necessidades e desejos se restringiam ao mundo privado. Só pela transgressão é que aparecia no âmbito público e era enquadrada pela justiça e pela moral como delinqüente. Os abandonados, órfãos ou expostos por analogia eram recolhidos e institucionalizados em internatos e retirados também do convívio público. Como mostra Roberto da Silva (in: Os filhos do governo. São Paulo, Ática, 1997), nestes aparatos de Estado (refiro-me à Febem) perdiam qualquer laço familiar e a relação de irmandade.

A infância e a juventude apareciam publicamente no âmbito da irregularidade e não do direito. A exemplo, o Código Criminal de 1830 e o Código Penal de 1890 incluíam a punição ao ato criminal de pessoas com idade até 17 anos. O primeiro Código de Menores, de 1927, responsabilizava os pais pelas situações irregulares da criança, sempre tratada como "menor" ou, nas revisões desse código, como "menor infrator" e delinqüente. Aliás, era moda nos anos 50/60 a delinqüência juvenil ou a rebeldia juvenil.

Os direitos humanos são promulgados pela ONU em 1948, portanto, incorporar direitos à infância e juventude tornou-se possível na segunda metade do século XX.

O segundo Código de Menores data de outubro de 1979, quando o país buscava a reconquista do seu Estado de Direito. As crianças, durante a ditadura militar, foram vítimas da institucionalização por intermédio do sistema Febem-Funabem e não de políticas de proteção e desenvolvimento. Aqui consagrou-se uma concepção de que delinqüência e pobreza eram faces da mesma moeda. O segundo Código de Menores não rompeu essa concepção, dedicando-se ao “menor em situação irregularr”, isto é, àquele que não possuía o essencial para sua subsistência, dada a falta de condições econômicas do responsável.

Este novo Código manteve, portanto, o ideário segregacionista e culpabilizador da criança. Em contraponto, as denúncias sobre o papel pouco educativo da Febem já permeavam as críticas do final da década de 70. É exemplar o filme Pixote, demonstrando o horror da sobrevivência da criança pobre nas ruas. Os anos 80, quando o povo em movimento sai às ruas pela democracia, põe em cena também a luta pelos direitos da criança e do adolescente e consegue articular um fato inédito: o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR). A ação de educadores de ruas consegue reunir crianças de todo o país e realizar encontro nacional em defesa da criança.

É de se perceber o choque que este movimento provocou, pois se a criança era despossuída de direitos vivendo em família, imagine as dificuldades para reconhecer direitos das crianças abandonadas e das ruas.

A Igreja já articulava, por intermédio de D. Luciano Mendes, a Pastoral do Menor. Interessante que, apesar de defensora de direitos da criança, ainda registrou em seu nascedouro a denominação de menor. Hoje a Igreja Católica conta com duas pastorais, a do menor e a da criança. Começaram a surgir também nos aparatos governamentais as Secretarias do Menor, traduzindo a manifesta preocupação em romper com os estigmas da criança e do jovem, não ainda rechaçando o conceito do ser criança, e utilizando na nomenclatura a sua condição jurídica de menor. Neste momento se discutia se uma creche era direito da família, da criança ou da mulher, fato que nem sempre se torna claro até hoje.

A partir do movimento constituinte é articulada a luta nacional pelos direitos da criança, que foram garantidos no artigo 227 da Constituição. Esta conquista, somada à Convenção sobre o Direito da Criança da ONU, de novembro de 1989, criaram as pré-condições para que o Brasil pudesse dispor de um Estatuto da Criança e do Adolescente. Estas medidas romperam com a estrutura do Código de Menores de 1979 e, a partir de julho de 1990, através da lei 8.069, foi permitido que o ordenamento jurídico brasileiro rompesse com a doutrina da situação irregular e publicasse os direitos da criança e do adolescente.

A partir do ECA, crianças e adolescentes são seres públicos e não só privados, seres políticos e portadores de direitos.

Esta ruptura jurídica confronta a institucionalidade do Estado para a atenção à criança e ao adolescente, mais ainda confronta com a cultura presente na sociedade que é restritiva a tais direitos sociais.

Alguns confrontos

A cultura pautada na concepção emancipadora e de proteção integral da criança conflita com a cultura institucional de um país onde os governantes são ainda incapazes de alcançar o disposto constitucional que assegura a aplicação anual de 25% do arrecadado em educação.

Conflita, ainda, com um país que só em 1997 legislou sobre a gratuidade da certidão de nascimento das crianças. Até então só poderia ter certidão quem pagasse ou fosse qualificado por um órgão de assistência pública como carente e se submetesse à cota mensal de certidões gratuitas estabelecida pelos cartórios.

Mais ainda, um país em que o salário-família, destinado a dar cobertura às necessidades da criança na família, tem como valor R$ 8,25 (para trabalhador com salário até R$ 309,56); R$ 1,02 (para trabalhador com salário acima de R$ 309,56). É impensável sustentar uma criança com um real mensal.

Receber a sentença oficial de abandono, "sou uma criança abandonada", é ainda uma exigência para que qualquer criança possa ingressar em um novo lar. É de se supor a dramática condição humana que é a de possuir tal constatação de situação civil.

Estes paradoxos buscam mostrar, ainda que de modo pontual, a distância que infelizmente existe no Brasil quanto a uma efetiva política de direitos da criança e do adolescente.

É preciso, por exemplo, extinguir as unidades da Febem e qualificar uma atenção preventiva que promova condições da criança e do adolescente terem o convívio familiar. De um lado, as propostas de Liberdade Assistida Comunitária como mecanismo de apoio às crianças em situação de risco e, de outro, o Programa de Renda Mínima – nas formas de bolsa-escola, salário-família, entre outras, mas com capacidade de garantir as condições financeiras para melhorar a situação das crianças e sua possibilidade de educar-se – são alternativas nessa direção.

Cabe aqui um destaque para a terrível situação da educação básica no estado de São Paulo. Primeiro, a exemplo do experienciado pela Febem, a norma da Secretaria Estadual de Educação foi a de apartar crianças de um mesmo bairro no convívio escolar. De acordo com a idade deveriam freqüentar escolas diferentes mesmo sendo irmãs ou vizinhas. Agora, como um bingo, as crianças têm sua vaga escolar sorteada. O direito de acesso foi transformado literalmente em jogo de azar, até porque as condições das escolas e mesmo do ensino são bastante diferenciadas dentre as diversas escolas públicas. O estado de São Paulo criou, de forma perversa, o sorteio da cidadania!

Alguns conservadores criticam o ECA, dizem que ele é permissivo, facilitando, sob o manto dos direitos humanos, o estímulo à transgressão e à delinqüência. Todavia, o que se constata é uma distância imensa entre o proposto pelo ECA e a implantação de uma efetiva política de proteção e desenvolvimento de nossa infância e juventude.

Do ponto de vista da gestão dessa política, o ECA criou uma figura bastante inovadora, dentro do que se tem discutido como esfera pública não estatal. São os Conselhos Tutelares, por meio dos quais representantes da sociedade civil são alçados à condição de "juízes de pequenas causas", "conselheiros e vigilantes de direitos". Estes conselhos já se multiplicam pelo Brasil, embora sua atuação seja de pouco conhecimento.

Alunos de iniciação científica da PUC-SPRefire-me aqui, ao trabalho de Scatolini et alli. Processo de apropriação dos direitos da criança e do adolescente – contribuição para uma pedagogia de direito. PUC/SP, 1996., em projeto sob minha orientação, realizaram uma pesquisa com 60 famílias da Vila Brasilândia, São Paulo. Ali constataram que 83% não conheciam os conselhos tutelares e somente 12,5% das crianças entrevistadas sabiam de sua existência; profissionais do direito entrevistados, na maioria, consideravam que a questão da criança e do adolescente era regida pelo Código de Menores. A maior parte dos entrevistados considerou que era melhor "remédio" o ingresso precoce das crianças e adolescentes no mercado de trabalho do que sua educação.

No Brasil estão cadastrados 1.741 conselhos tutelares, nos diversos Conselhos Estaduais de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente (Condecas). O quadro preparado pela Anced e MNMMR nos permite um perfil do que vem sendo a luta pela implantação do ECA por intermédio desses conselhos tutelares. Chamo a atenção para a precariedade de condições de funcionamento dos conselhos tutelares, que deveriam ser providos pelas prefeituras; a baixa relação com o legislativo municipal; e a ausência de participação no Orçamento Público Municipal.

Além dos conselhos tutelares, outras propostas avançaram, como a construção do Orçamento da Criança, experiência que temos desenvolvido na cidade de São Paulo, ao lado da Cartografia das Necessidades da Criança por Distrito da Cidade, com base nos dados do mapa da Exclusão/Inclusão Social da cidade de São Paulo Pesquisa coordenada pelo Núcleo de Seguridade e Assistência Social da PUC/SP, 1996.. Estes dois instrumentos permitem a vigilância das condições de acesso e inclusão das crianças e jovens que devem ter seu uso incorporado e ampliado.

O ECA é uma legislação que faz profunda alteração no padrão ético e civilizatório da sociedade brasileira, principalmente na expectativa de futuro a ser concretizada pela criança e pelo adolescente. É necessário considerar, neste quadro pouco otimista, a análise realizada pela Unicef sobre a alteração dos indicadores das condições da criança brasileira no período 90-95 e vislumbrar os avanços ocorridos.

Os números mostram que a luta proposta pelo estatuto está na direção certa. O problema é a baixa velocidade da vontade política. O confronto mais imediato na implantação do ECA está nos municípios. É nas cidades e, mais concretamente aos olhos da população, que se torna visível a prática de uma política pública.

O confronto, embora tenha centralidade nos resquícios do pensamento conservador, esbarra também na agenda do campo progressista.

A área da criança e do adolescente como território de disputa política fragmenta-se em grupos, com metas parciais, manifestando uma concepção restrita de um projeto civilizatório.

É certo que temos que nos indignar com o trabalho e a prostituição infantis e a violência à criança. Todavia, a defesa dos seus direitos exige uma pauta de investimentos e custeio que defendam padrões básicos de inclusão para além da vigilância destas transgressões.

Isto supõe também sair da tautologia de pobres soluções para criança pobre. Falta-nos um Código de Qualificação de Serviços para criança e adolescente. Não basta ter escola, ou seja, é preciso exigir um padrão de educação.

Deixo ao leitor a questão que me fez uma menina de 11 anos, aluna de uma escola pública, durante o período das Olimpíadas (o culto ao esporte e à juventude): "você acha que criança deve aprender a nadar??”. Não tive dúvida em responder: "Claro que sim". Todavia, a resposta à segunda pergunta, deixo a cada um para pensar: "então, por que minha escola não tem piscina e nem me ensina a nadar?"

Aldaíza Sposati é professora titular junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP e vereadora pelo PT em São Paulo