Economia

Matemática e economista, obteve os títulos de doutora e livre-docente em Economia pela UFRJ

Maria da Conceição Tavares nasceu em Portugal há 67 anos, tendo se naturalizado brasileira em 1957. Matemática e economista, obteve os títulos de doutora e livre-docente em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a qual lhe concedeu o título de professora emérita. Além disso, é professora titular da Unicamp e lecionou também na condição de professora visitante em universidades do Chile e do México. É consultora de diversas instituições, inclusive a Cepal e o BID. Publicou vários livros, dentre os quais destacam-se o clássico Da substituição de importações ao capitalismo financeiro e o recentemente lançado Poder e dinheiro (organizado juntamente com José Luís Fiori). Eleita deputada federal pelo PT-RJ, é membro titular da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados.

Eu gostaria de começar discutindo seu ensaio sobre a retomada da hegemonia americana, que deu origem ao livro Poder e Dinheiro. Quando você o escreveu, em 1984, para que dados estava olhando?
Quando o Reagan avisou que ia fazer o programa Guerra nas Estrelas, eu vi a cara do Gromiko, o embaixador soviético, e percebi seu pavor. Justo quando os soviéticos podiam optar por uma economia de consumo de massas, estavam sendo pressionados a gastar com defesa. Então pensei: pronto, lá se foram! Eles não podiam avançar rumo a uma sociedade de consumo de massas que o povo estava pedindo, na melhoria dos serviços, na democratização.

Por outro lado, houve uma crise mundial quando os Estados Unidos dobraram a taxa de juros. Então, pensei: boa hora para o Japão ganhar dinheiro, vir para aqui, investir. O Japão entrou com tanta fúria que estava parecendo um peixe entrando na boca de um urso. Com a diplomacia do dólar forte, todo mundo estava investindo nos Estados Unidos, transnacionalizando a economia americana.

E o dinheiro estava entrando...
Não apenas o dinheiro, mas também o investimento, as joint-ventures etc. Isso acabou tendo um impacto positivo na competitividade da economia americana. O choque de juros altos tinha levado a uma diplomacia do dólar forte que quebrou todos que estavam endividados. Foi a chamada crise da dívida externa, que durou até 1984. Depois da ruptura do padrão monetário internacional em 1971/73, a onda era aceitar que o dólar devia deixar de ser padrão de referência. Pensava-se num outro Bretton Woods, mas sem hegemonia de ninguém. Cogitou-se até de uma moeda mundial. Mas os americanos não quiseram e toparam correr o risco de uma crise mundial que afetou o seu próprio sistema financeiro por um choque de juros. Arriscaram parte da sua economia, mergulharam o mundo numa recessão e proclamaram: "eu mando, eu tenho o dólar forte e as armas; não vou abandonar o jogo da hegemonia mundial".

Eles bancaram o padrão monetário?
Bancaram o dólar forte. E todo mundo aceitou, porque era um bom negócio aplicar em títulos do Tesouro americano com uma taxa de juros selvagem. Do ponto de vista microeconômico, para as empresas e os próprios bancos que tinham sobrevivido à crise, era um bom negócio. Na verdade, o que o Paul Volker queria era trazer de volta os capitais americanos que estavam pelo mundo. Nesse momento, os bancos japoneses tinham virado subitamente os maiores bancos do mundo e decidido entrar no jogo global das finanças. Então, todo mundo disse: os japoneses ganharam! Só que eles entraram no jogo sem experiência de padrão monetário internacional. Eles tinham experiência na Ásia, que são Estados completamente controlados, onde os acordos eram Estado a Estado ou empresa a empresa. Tudo diferente, particularmente o sistema bancário, que nem é puramente estatal, nem puramente privado, mas as duas coisas juntas.

Por fim, eu vi também – e aí foi definitivo – os Estados Unidos virarem a locomotiva comercial do mundo a partir de 1984. O crescimento da economia mundial dependia, e depende até hoje, de eles terem déficit comercial e crescerem com endividamento, o que lhes permite que o capital financeiro voador que espalharam na Europa e na Ásia volte cada vez que há ameaça de desvalorização das moedas em outras regiões.

Bicicleta internacional?
Bicicleta internacional a favor deles. Déficit comercial a favor deles. Vi aquilo virar uma locomotiva e fazer uma política keynesiana bélica. Curiosamente, os economistas e historiadores econômicos americanos parecem não entender nada do que acontece no seu próprio país. Em geral, quem vê melhor o império são os que vêem da periferia. Quem melhor viu o capitalismo inglês foi Marx e outros europeus, não foram os ingleses. Nós, da América Latina, temos o privilégio de ter visto o império norte-americano começar a perder a hegemonia e retomá-la outra vez. Só que o movimento global não juntava nas nossas cabeças. Porque nosso sonho de libertação e de socialismo não tinha acabado e a hipótese da decadência americana era favorável aos sonhos de autodeterminação dos povos. O Japão estava forte; o Vietnã tinha ganho a guerra; a China estava crescendo, se afirmando à sua maneira. Muitos achavam que o Japão ia se converter na potência mundial substituta. Outros proclamavam o fim dos impérios. O Japão tinha o máximo de dinamismo tecnológico e estava entrando com capital e empresas nos EUA, a ponto de despertar o "nacionalismo" da população americana. Quando for a virada, pensei eu, e os Estados Unidos inverterem o padrão cambial, o Japão dança.

E o que foi essa virada?
A virada se deu em 1985/86 quando fizeram os acordos Plaza-Louvre e obrigaram os japoneses a fazer a endaka, isto é, a valorização do iene. Era a segunda vez. A primeira foi com o Nixon em 1971, quando se rompeu o padrão ouro = dólar. Os japoneses tiveram que se adaptar e o iene teve que ser fortemente valorizado. Na verdade, a moeda japonesa estava no máximo da desvalorização, como agora está a moeda chinesa. Apesar disso, o Japão reagiu bem às duas sobrevalorizações e aos dois choques de petróleo e reestruturou brilhantemente a sua economia. Mas não conseguiu reagir na década de 90, em plena era da globalização financeira, com a terceira endaka, quando um dólar chegou a valer apenas 80 ienes. Como se vê, esse conversa de que os EUA tinham perdido a hegemonia era papo de economista, assustado com os desequilíbrios macroeconômicos e a perda de competitividade da indústria americana.

Mas a esquerda também dizia isso...
A esquerda em geral não entende nada de dinheiro, muito menos internacional. Para ela, ou é um fetiche ou uma mercadoria como outra qualquer. A moeda não tem base na mercadoria, ao contrário do que as pessoas julgam. Afinal de contas, Marx não se dedicou a escrever sobre o dinheiro nos três volumes d’O Capital por acaso. Mas as pessoas ficam no primeiro volume, não conseguem ler os outros, então não entendem nada. Em geral a esquerda tampouco entende a leitura monetária de Keynes.

Voltando à questão da hegemonia americana e à diplomacia do dólar...
Em 1989 terminou a política de "coordenação" macroeconômica estabelecida no acordo do Louvre e aí a vaca foi pro brejo. Entre o Louvre e 89, houve coordenação sob o comando norte-americano, por isso é que o dólar aterrissou devagarinho e não houve um crash. Os economistas diziam que o dólar ia ter um hard landing que podia levar a uma crise mundial e à perda definitiva da sua hegemonia. Eu dizia: "não é o que estou vendo; se houver crise, os EUA vão impor as suas condições, porque estão com hegemonia, e se não houver, eles continuarão o seu caminho". Batata! Não houve crise nos Estados Unidos, eles continuaram a crescer como nunca e no mesmo caminho. Aí começou um processo, que o nosso livro Poder e Dinheiro explica, que levou às sucessivas crises de 87 em diante: das bolsas, da contaminação dos mercados financeiros e da inflação de ativos e instabilidade cambial.

Como explicar as recentes desvalorizações na Ásia?
As desvalorizações já são fruto de um esgotamento frente à política de expansão financeira norte-americana nos países do leste asiático, que já tem mais de uma década. O mecanismo pelo qual os "tigres" asiáticos se defenderam do acordo do Louvre foi fixar a paridade das suas moedas em relação ao dólar. Quem fez flutuar novamente as moedas asiáticas foi a desvalorização do iene. A única que resistiu até agora foi Hong Kong, a praça financeira "off shore" mais importante do mundo, que fecha o circuito da "globalização financeira" com Nova Iorque, Londres e Tóquio. Quando os japoneses, já engolfados em uma crise bancária, começaram a desvalorizar no segundo semestre de 1995, estava armado o cenário para a inflação de ativos, nas praças asiáticas, com as conseqüências conhecidas.

Isso que estão falando hoje sobre inflação de ativos para explicar a crise da Ásia, como se fosse uma novidade, é ridículo! A inflação de ativos começou nos EUA com a diplomacia do dólar forte. Inflação da dívida pública, inflação imobiliária, inflação da bolsa. De lá, essa inflação de ativos, seguida de desvalorizações e crises financeiras, se propagou para a Inglaterra, depois a Europa, depois o Japão, tudo colado nas flutuações cambiais das principais moedas. Os mecanismos básicos de propagação se originaram na política norte-americana de desregulamentação dos mercados financeiros e cambiais. As políticas de câmbio, juros e dívida pública dos EUA são decisivas para os demais países e determinam o movimento geral do capital financeiro, que por sua vez, em cada praça global, vai deslocando os impactos geográficos das crises financeiras.

Quando os EUA decidiram desvalorizar o dólar em meados da década de 80 houve uma inflação brutal de ativos no resto do mundo. Se os bancos e os fundos de pensão não podem continuar a valorizar seu capital dentro dos EUA, porque as outras moedas vão se valorizar frente ao dólar, então eles têm de levar seu capital sobrante para os mercados imobiliário e de ações de outros países. E há a inflação de ativos, bolhas especulativas e crises que se deslocam pelo mundo desde a crise da bolsa de Wall Street em 1987. Aí começam a surgir os mercados financeiros "emergentes" da Ásia e depois da América Latina. O capital bancário japonês, com a perda sofrida com a desvalorização do dólar, volta para casa, especula nos mercados imobiliários e de ações de Tóquio e de todas as praças abertas de Hong Kong a Cingapura. Os "tigres" substituíram as exportações de bens por investimentos diretos, o comércio por movimento de capitais, compraram ativos, hotéis, fizeram o diabo. Só que quando eles resolvem fazer a chamada do capital, querendo "realizar" as aplicações financeiras, aí bom... É impossível, como realizar o capital contra países altamente endividados? A fuga de capitais dá lugar a uma crise bancária clássica, se você quiser realizar o capital aplicado; segue-se um aperto de liquidez interna e os bancos quebram. Teoricamente, muitos bancos japoneses estão quebrados desde 1994. Mas a situação atual da Coréia e de outros "tigres" menores é muito mais grave porque estavam endividados em dólar e em iene. Quebraram os bancos, as empresas e com o programa de ajuste do FMI vão quebrar o fisco. Porque o mercado de capitais produz uma marola gigantesca, que nem os bancos centrais nem os Tesouros dos "países emergentes" agüentam. Então quebra tudo. O risco de crise é maior hoje na Ásia porque a interrelação entre os mercados cambiais, os financeiros e o endividamento das empresas privadas produz um efeito em cadeia que atinge todos os mercados e torna as políticas macroeconômicas impotentes. Isto está ocorrendo também crescentemente na América Latina.

Do que depende uma crise generalizada?
Se vai haver a crise geral da Ásia, que provavelmente depois vira mundial em todos os sentidos, depende fundamentalmente do que ocorrer com a China. Se houver um novo ataque especulativo em Hong Kong e/ou desvalorização do yuan (moeda chinesa), então a vaca vai para o brejo de vez.

E afeta os Estados Unidos?
Como não iria afetar? Os EUA, que aplicaram recursos gigantescos em investimentos diretos e financeiros na Ásia, vão sofrer uma perda gigantesca de capital, assim como a Alemanha e o Japão. É ridículo imaginar que países como o Brasil ou o México tenham capacidade de absorção comparável à China ou mesmo à que tiveram os "tigres" asiáticos. A América Latina não compensa, em termos comerciais e financeiros, a Ásia. Se somarmos o Japão, os "tigres" e a China dá uma massa de capital selvagem. Não era lá que estava havendo a grande expansão do capital? Aí um incauto vem e diz: "deixe que afundem, a crise nos é favorável, eles virão para a América Latina". Trata-se de uma patetada que foi dita aqui no Brasil. Mas não podemos engolir a massa de capital que está lá. Ao contrário, a Argentina, o Chile, a Venezuela (além da Rússia e outros menos cotados mas igualmente frágeis) seriam a "bola da vez" e a crise se transformaria em crise global.

Quer dizer, só seríamos eventualmente beneficiados na continuidade da expansão asiática?
Nem mesmo assim, porque as políticas comercial e financeira comandadas pelos EUA vão no sentido contrário à nossa expansão. Na verdade, não seríamos beneficiados nem com a expansão nem com a depressão. Como ficamos extremamente valorizados em relação à Ásia, mesmo seu crescimento não abrirá um mercado favorável para nós, mas sim para a Europa, que também desvalorizou fortemente com a crise recente e que tem comércio e investimentos consideráveis na Ásia.

Essa discussão sobre valorização cambial me faz pensar no Plano Real. Qual o problema do plano?
O Real é uma decorrência de duas coisas: a idéia teórica da URV era muito interessante. Seria possível fazer a convivência de duas moedas em que a velha iria ser destruída pela hiperinflação e substituída pela nova. Seria um caso de hiperinflação programada, coisa que ninguém nunca se atreveu a executar. Foi original mesmo, não há a menor dúvida. Estudaram o fenômeno da hiperinflação no mundo, verificaram o que aconteceu com a moeda nos vários países e descobriram que todos se ancoraram na moeda mais forte internacionalmente. Todos tiveram também problema fiscal. Aí começou a discussão: se primeiro fazia o ajuste fiscal ou não.

Os mais ortodoxos, como Edmar Bacha, queriam primeiro fazer o ajuste fiscal. Aparentemente, o André Lara Rezende e o Pérsio Arida, que tinham feito o modelo, topavam fazer a convivência das duas moedas, a indexada – URV – e o cruzeiro velho. Mas queriam que fosse um processo longo, porque o modelo deles requeria a destruição completa da moeda velha e a urvização ou dolarização completa da economia, para então mudar o padrão monetário. Eles achavam muito arriscado fazer no meio. Daí vem o prestígio do Gustavo Franco, porque ele, que é apenas um discípulo menor da escola e não tinha feito teoria nenhuma, percebeu que isso era impossível politicamente, dada a proximidade das eleições. Enquanto o Pérsio e o Lara, de um lado, e o Bacha, de outro, se enfrascaram em discussões intermináveis, o plano não ia para lugar nenhum. O dilema era: faz logo ou espera até o fim do ano? Em menos de um ano, segundo eles, o modelo não acertaria os preços relativos, sobretudo da relação entre tradables [comercializáveis] e non-tradables e a (des)indexação não estaria completa, podendo contaminar a moeda nova. Aí o Gustavo ganhou, com o apoio interessado do Fernando Henrique, que queria eleger-se de qualquer maneira. Mas cometeu o "pecado mortal" de entrar na reforma monetária deixando sobrevalorizar o Real nominalmente até outubro, quando um real valia muito mais que um dólar.

Do ponto de vista dos trabalhadores, qual era a questão relevante?
Em 1o de julho de 1994, a cesta básica estava em 120 dólares ou URVs e o salário em 70. Portanto, moeda forte e salário fraco. É verdade que não houve arrocho no ano seguinte ao plano, mas estava tendo arrocho na fase de implantação da URV. Por outro lado, já sabíamos, pela experiência argentina, do chamado "efeito Alfonsín", que consiste em um aumento de poder de compra dos salários uma vez estabilizada a moeda (outros economistas preferem chamá-lo de efeito-riqueza ou efeito-caixa). Mas ele não daria para compensar a diferença entre o poder de compra do salário mínimo e a cesta básica. O que se seguiu porém foi favorável a ambos. A superoferta de alimentos e a queda dos preços internacionais agrícolas tiveram forte impacto sobre o preço da cesta. A queda dos preços agrícolas, combinada com o aumento do salário mínimo em maio, melhorou a situação dos pobres urbanos. A contrapartida foi uma diminuição brutal da renda agrícola. Houve uma brutal transferência de renda do campo para a cidade, com forte destruição de emprego rural. Evidentemente, com a melhoria da cesta básica e o aumento do crédito para consumo durável, os trabalhadores urbanos acharam ótimo, mas pergunta para os sem-terra se eles acharam o mesmo! Nem tampouco os pequenos produtores agrícolas que não puderam rolar as suas dívidas com a subida da taxa de juros. Foi uma crise agrícola descomunal, a de 95. Lembra-se da marcha sobre Brasília de agricultores com e sem terra em julho daquele ano? Mas a opinião pública forma-se na cidade. Teoricamente, chama-se a este fenômeno mudança nas relações de troca entre a agricultura e a cidade. Pronto.

Isso explica parte do apoio popular ao Plano?
Com exceção da elevação dos aluguéis e dos serviços, é claro que a massa ficou contentona! Foi o que o Gustavo Franco prometeu ao presidente: "com esse plano, eu não só garanto que o senhor ganha como vou lhe dar dois anos de tranqüilidade, porque temos capacidade de absorção de recursos externos de até 2,5% do PIB". Aí é que ele errou estrondosamente. O déficit em transações correntes já estava em 2,5% do PIB até julho de 95, ao fim de um ano. Aí tiveram que fazer uma política recessiva e começou o desemprego para valer. No entanto, no ano seguinte, o déficit já foi de mais de 3%; em 1997 já passa de 4%. Mas isso ele não quis prever ao fazer a sobrevalorização cambial entre julho de 94 e maio de 95.

E nós previmos?
Nós, sim. Em junho de 1995, Pastore, Delfim e eu, debatemos no Congresso o bode que ia dar com o déficit de transações correntes. Eu agreguei além disso a ligação entre o endividamento externo, a taxa de juros e o aumento da dívida pública interna, que seria explosivo. A dívida interna não era originária do déficit fiscal. Ela era a contrapartida da entrada de capitais e essa entrada era contrapartida da alta taxa de juros. Era evidente que estava tudo ligado.

Você está se referindo a esse capital que está entrando para financiar o rombo externo?
Não está só financiando o rombo externo, está provocando o rombo interno. Promoveu-se a política de abertura, a liberalização dos serviços e a retirada do imposto de renda sobre capital; se permitiu turismo externo com cartão de crédito sem limite; estimulou-se a remessa de lucros e de juros. Com isso, todas as contas do balanço de serviços vão para o diabo. Todo mundo fica centrado só no déficit comercial. Mas a absorção de recursos não é uma "absorção" no sentido clássico, é um endividamento obrigatório com a participação crescente do capital especulativo de curto prazo. Aliás, sobre o déficit comercial, o que importa é que cada vez que se provoca uma abertura desenfreada e se sobrevaloriza o câmbio, quebrando a conta comercial, o principal efeito não é sobre as exportações. Estas são em dólar e a maioria delas na verdade são commodities. Tanto faz a taxa de câmbio. Taxa de câmbio só tem importância para produtos manufaturados, quando é o valor agregado interno em dólares que conta. Não é o nosso caso.

Nós não estamos exportando manufaturados?
Hoje, dada a diminuição do valor agregado interno na indústria, o que exportamos de manufaturados, para todos os efeitos, são commodities. O preço está em dólar, dá na mesma qual é a taxa de câmbio. Pode desvalorizar que não vai exportar muito mais. A taxa de câmbio é importante, como foi no passado brasileiro, na década de 50, como barreira à entrada. Taxa de câmbio substitui tarifa, o Brasil sempre a usou para conter importação, nunca para exportar. Exportar se faz com subsídio, com crédito ou com rede de comercialização. É claro que quanto mais desvalorizado o câmbio maior o lucro dos exportadores, o que é decisivo para investir na exportação se o país é pequeno e aberto e para certos produtos para os quais você tem nichos de mercado. As importações é que são o problema, porque estão em dólar, baratas, subvalorizadas, financiadas do exterior e desmontaram parte da estrutura produtiva interna. E quando isso acontece, as importações de peças e mesmo de matérias-primas tornam-se indispensáveis aos setores que sobrevivem. Tinha que ter desvalorizado antes, porque agora para acomodar outra vez vai ser difícil. Os agentes se acomodaram à estrutura de dólar que está aí. Por isso não é tão fácil desvalorizar. Eu estou insistindo nisso há algum tempo, essa era uma das minhas poucas divergências com o "atual" Delfim Netto.

E o impacto do Real na produção já se fez notar também...
O tempo e a economia não são reversíveis. A economia terá de ser de novo reestruturada e a proteção econômica tem de aumentar antes de acontecer de novo a desvalorização, senão teremos outro choque violento na produção.

O que acontece com as contas públicas?
Temos dois efeitos. O primeiro diz respeito ao chamado "imposto inflacionário". Evidentemente não foram os trabalhadores de salário mínimo que ganharam mais, embora fossem os mais atingidos com a superinflação. Eles não têm caixa suficiente para que o impacto inflacionário sobre eles seja comparado ao da classe média para cima e aos rentistas, que ganharam só no primeiro ano do plano 45 bilhões de reais! Imposto inflacionário recai sobre a classe média, os funcionários e os gastos públicos. A classe média tem gastos ao longo do mês e se endivida numa proporção até superior à sua "poupança". Nela, os efeitos da estabilização foram contraditórios. Além disso, os governos usaram o imposto inflacionário, atrasando despesas e diminuindo o gasto público. Pois bem. O que estão dizendo agora? "Está aumentando o gasto público..." Mas como assim, se os funcionários públicos há quatro anos não recebem reajuste de salário? Estão aumentando os gastos em juros e com inativos. Além disso, nas outras despesas a inflação não faz mais o serviço de contingenciamento, que tem de ser feito diretamente na boca do caixa do Tesouro, o que dá lugar à conhecida manipulação política do Orçamento, que aumenta em vez de diminuir.

Qual o outro efeito?
O efeito Tanzi. A receita subiu demais. E é por isso que a tese do Bacha está furada. Ele veio com a estória do efeito "Tanzi às avessas". Para níveis de inflação de 40 a 50% ao mês, ao passar a estabilização, o impacto positivo sobre a receita pública foi muito superior aos eventuais ganhos que a inflação permitia ao Estado quando este atrasava pagamentos, que é o que o Bacha enfatizava. Além disso, como a economia cresceu até junho de 95, a receita também acompanhou esse movimento por ser elástica ao crescimento do produto. Portanto, a receita cresceu por esses dois motivos. Aí vem uns e outros e dizem: "mas a despesa cresceu mais". É claro que sim. Por duas razões: primeiro, porque foi dado um aumento de salário mínimo em maio de 95 que pesa no orçamento da Previdência, além do que a ameaça de reforma da Previdência ensejou um processo de aposentadorias precoces. Apesar disso, tudo indicava que o aumento da arrecadação contrabalançaria esses efeitos sobre o gasto corrente. Em 1995 não houve nenhum aumento do déficit primário, houve até um bom superávit. O caso é que a conta de juros estourou. Isso quer dizer que o governo em dois anos quebrou o Estado com a sua política monetária e financeira! Nunca se fez em dois anos tanta barbaridade. Em tempo nenhum, em lugar nenhum do mundo!

Mas ainda não estouramos...
Como não estouramos? Já estouramos nesses dois anos! Conseguimos passar de uma situação de superávit comercial para um déficit brutal; de uma conta de serviços que era ridícula, pois tínhamos praticamente um equilíbrio nas transações correntes em 1993, para um déficit de transações correntes de US$ 33 bilhões em 1997. E com uma necessidade de financiamento externo na conta capital de US$ 80 bilhões. E o problema não acaba com a entrada de dinheiro externo, porque a dívida interna aumenta explosivamente. E alguém vai aceitar título da dívida pública que não esteja dolarizado? Com uma ameaça de desvalorização? Assim que começou a ficar claro que havia risco cambial, a dívida interna vem sendo dolarizada, independentemente da taxa de juros dos títulos públicos não estar atrelada ao dólar.

Essa situação se sustenta?
Sustenta nada! Ficou claro que as dívidas interna e externa são explosivas, dado que o serviço delas e as altíssimas taxas de juros têm de ser "financiados" com mais dívida. Segundo, ao contrário do que se julga, apesar do grosso do capital que entra ser privado e de que quem toma o capital são os bancos, as empresas etc., inclusive as estatais, tudo está lastreado em títulos da dívida pública. Portanto, se houver uma maxidesvalorização quem paga é o Estado e os salários. Se houver uma máxi, a paridade do poder de compra em dólar não se mantém. Então, haverá uma queda do salário real e o povo sentirá. É por isto que eles ficam nervosos. Agora é fácil falar: "desvaloriza!". E se não fizer, vai fazer uma moratória? Moratória contra quem? De quem é a dívida? Uma moratória só se for com a dívida pública. Voltamos ao Collor!

Como se vê, não é fácil. O problema é de estoque, não é só de fluxo de receita e despesa. O problema está na conta de capital do balanço de pagamentos e no desequilíbrio patrimonial do setor público, que não pode ser mais resolvido com as privatizações. Não se pode acertar isso indefinidamente pelo fluxo, pelo produto, pela renda, pela transação de mercadorias ou por transferências patrimoniais!

Não tem fluxo que cubra isso...
Nem fluxo, nem patrimônio que chegue. Porque em 1998 há US$ 80 bilhões para financiar, dos quais US$ 25 bilhões, pelo menos (contando a recessão), estão na conta de transações correntes. Ou seja, além do déficit, há uma dívida de curtíssimo prazo para amortizar. Sabe como ela foi rolada esse fim de ano em Londres? Tínhamos bônus de prazo médio de quatro anos. Depois da crise, tivemos de rolar os que venciam em novembro/dezembro a 28 dias. "Comprem o Brasil que está barato". O Gustavo Franco não falou isto em Londres só por ideologia. Ele estava em pânico! Aí se promete que privatiza a Petrobrás, promete o que eles quiserem. Nem que se venda no ano que vem todo o patrimônio público já anunciado (num valor superior a 35 bilhões), se houver um ataque especulativo contra a moeda nem as reservas nem o aporte de capital estrangeiro (que se estima em 25 bilhões) vão cobrir. E aí, desvaloriza, desvaloriza e desvaloriza. Sobe juro, sobe juro, sobe juro. Até quando? O capital não volta de imediato. No México foi a mesma coisa, começaram com uma desvalorização de 15% e terminaram em 100% nominal. Como a inflação do período foi de 50%, a desvalorização fechou em 50% em termos reais.

Chegaremos até outubro sem estourar?
Não sei. Pode estourar a qualquer hora, porque depende do mercado internacional. Não há teoria econômica que possa predizer. Basta um agravamento na Ásia ou uma restrição forte de liquidez no mercado secundário para a América Latina e acabou. Não adianta dizer que o sistema Telebrás vale US$ 100 bilhões. Quem atribui o valor das privatizações é o mercado, não tem nada a ver com o valor histórico ou o valor "atualizado" do patrimônio. Qual a taxa de juros a considerar? No fundo, vale o que o mercado diz que vale e as ações nas bolsas só não caíram mais porque o BNDES entrou pesado no jogo. Se houver um ataque especulativo e o capital de curto prazo fugir, mesmo as privatizações aceleradas não seguram.

Você dizia que os intelectuais americanos têm dificuldade em entender o próprio país. E quanto a nós? O que é ser hoje um intelectual na periferia do capitalismo?
Nós estamos naquilo que há de universal na crítica intelectual. Não somos provincianos. Até somos cosmopolitas, aliás, como todo bom intelectual periférico. Contudo, naquilo que é especificamente brasileiro, na luta do movimento social concreto, os intelectuais tardam a entender e a apoiar. Quando apóiam, o fazem um pouco na base do "quero ajudar o povo brasileiro". É uma atitude de distanciamento que não é dada por razões morais, mas sim por razões concretas de condições de vida. Há um distanciamento brutal entre nossos intelectuais e as massas. As condições concretas de vida do intelectual crítico europeu são mais próximas dos trabalhadores.

Aqui, não é que as pessoas não sejam heróicas. Várias o foram na repressão de 1968/75. É que os intelectuais brasileiros dificilmente podem ter a experiência histórica européia de ter um pé na teoria e outro na política. Aqui, ser intelectual significa ser da elite. Mesmo os torturadores tinham uma certa admiração pelos intelectuais pela inteligência. Já viu alguma admiração pela inteligência ou pelos intelectuais nos Estados Unidos? Aqui até a direita reconhece. Eu não sou uma irreverente? Não ataco? Não sou mal-educada? Não sou anarquista? Não bato neles pesado? Mas no Congresso metade dos meus colegas me chamam de professora! Isso é coisa de país periférico. Um país onde o saber crítico pode ser poder é um país atrasado.

Qual a origem dessa atitude?
O Estado desenvolvimentista brasileiro, apesar de servir à burguesia, produziu, além de uma base produtiva, uma universidade. Ambas estão ameaçadas de serem desmanteladas, sem colocar nada no lugar. O desenvolvimentismo se deveu ao positivismo dos quadros dirigentes do país. A idéia positivista de que se precisa de intelectuais para pensar e fazer a nação (universidade e burocracia pública) foi o movimento do Estado de Vargas até Geisel.

A partir de 30 os intelectuais passaram a ser respeitados como professores, como assessores ou até como críticos. Era preciso tê-los. Os governos precisavam do saber e o intelectual comparece com ele. O papel dos intelectuais críticos começou a "desfazer-se" na década de 60. Aqui tivemos uma sobrevida por causa da luta contra a ditadura.

E agora, o que mudou na relação do poder com a intelectualidade?
Não era comum intelectuais com uma larga tradição crítica apoiarem o príncipe como acontece hoje em São Paulo. Ah, mas isso é o destino trágico de São Paulo! Quem manda ter na Presidência, "um dos nossos", como vocês dizem lá? O que acontece é que muitos intelectuais gostam de fazer parte da corte. Por sorte, intelectual de apoio ao establishment dura muito pouco, e quando o faz não é na sua etapa produtiva.

O problema dos intelectuais universitários hoje é escapar aos vícios acadêmicos do seu grupelho de referência, fugir da "reprodução burocrática de conhecimento" e tentar novamente fazer da universidade uma casa da "razão crítica" ligada, atenta aos problemas (locais, nacionais e internacionais) e aos movimentos sociais. Mesmo que isso pareça romântico ou "passadista" ainda não vejo outra alternativa para revitalizar a universidade.

A débâcle da universidade pode trazer o intelectual para a luta social de alguma maneira?
Para alguns poucos. É muito freqüente sair da luta social e ir para a universidade. O contrário é muito difícil. E eu, aliás, estou convencida de que uma das razões pela qual me querem bem no PT, é porque eu fiz o contrário. Não sou fundadora de nenhum partido de esquerda. Depois de velha é que eu vim desembarcar no PT. Podia ter ficado confortavelmente vivendo dos meus luxos "acadêmicos". Se não fiquei, é porque não agüentei moral e psicologicamente.

Fernando Haddad é professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo