Cultura

Os livros que fizeram a cabeça de Waldir Pires, dentre muitos, foram O Guarani, Os Miseráveis e a Oração aos moços

Não sei se possa nomear o livro que terá sido o mais importante à minha formação, ou ao conjunto de convicções, sentimentos e idéias-forças que inspiraram o rumo e a prática da minha vida inteira.

Li muitos livros, desde a adolescência. Assim, buscando a memória longínqua, lembro-me do meu enlevo com O Guarani de José de Alencar, sua descrição apaixonadamente esplêndida da exuberância de nossa natureza tropical e os traços firmes, generosos, bonitos, do herói-índio, Peri, capaz de todas as coragens para defender a honra e a vida de sua amada. Dali me ficaram no espírito, plantadas, as inspirações singelas e fundas do meu orgulho da nação brasileira.

Um pouco mais adiante, recordo-me das impressões graves, tensas, que recolhi, com a leitura de Os Miseráveis, de Victor Hugo, a densidade da história de injustiça social e humana, traduzida na saga de Jean Valjean, levado à condenação das galés e nelas penando vinte anos, pelo crime de roubar um pão para matar a fome, no inverno europeu sem trabalho, das sete crianças, órfãs, filhas de sua irmã viúva. A emoção da nota introdutória, que precede a edição do grande romance, escrita por seu grande autor, e falando, à reflexão dos contemporâneos e à das gerações do futuro, mais ou menos essa advertência modesta e admirável: enquanto existir, por efeito das leis e dos costumes, uma condenação social criando artificialmente, em plena civilização, o inferno da vida; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pela exploração do trabalho, a degradação existencial da mulher pela fome, a degradação da criança pelo abandono – não estiverem definitivamente resolvidos; enquanto houver sobre a terra a miséria e a ignorância, livros, como este, poderão não ser inúteis.

Algum tempo depois, já então na juventude, secundarista no curso clássico do Colégio Central, em Salvador, orgulho de padrão do ensino público, gratuito, da época – na memória me vem a experiência da leitura de duas orações de paraninfo, que acredito me influenciaram, fortemente, a personalidade, no rumo dos meus compromissos políticos, e a estrutura de minha consciência ética, para os atos, as opções e o caminho da vida.

A primeira, eu a li, estudando-a, foi a "Oração aos Moços" de Ruy Barbosa, pronunciada em 1921, na Faculdade de Direito de São Paulo, na homenagem que estudantes e professores prestaram ao grande brasileiro, por ocasião do cinqüentenário de sua vida pública. Nunca a esqueci. Foi poderosa a influência dos seus conselhos sobre minha cabeça de 16 anos de idade, emocionada e conquistada. Porque escrita com a força de uma despedida, e o sentimento de “um ato de fé, como conselho de pai a filhos, quando não como o testamento de uma carreira...” Por isso, dizia: “Estou vos abrindo o livro da minha vida”, para ensinar: “não tergiverseis com as vossas responsabilidades. O direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes”. Ensinamentos éticos de comportamento e de compreensão em face da sociedade e da vida, que atravessam os tempos e permanecem íntegros, na base dos princípios que deveriam organizar a sociedade decente e justa do país: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.

Na conclusão dessas palavras de Ruy aos moços, proferidas em 1921, como inclusive, um político que nunca soube ser “fértil em meios e manhas” e que pregou, incansavelmente, o respeito à república nascente e às liberdades dos cidadãos, seus conselhos finais, de atualidade espantosa, bem poderiam estar sendo dirigidos aos donos do poder de hoje, como advertência às ameaças a que está sendo submetida a Nação, neste final de século: “Não busquemos o caminho de volta à situação colonial. Guardemo-nos das proteções internacionais. Acautelemo-nos das invasões econômicas. O Brasil é a mais cobiçável das presas (....) oferecida, como está, incauta, ingênua, inerme, a todas as ambições”...

A segunda, eu a escutei. Foi a Oração de Paraninfo de João Mangabeira, pronunciada na antiga Faculdade de Direito da Bahia, que haveria de ser minha futura escola, numa noite de dezembro de 1944. Escutei-a, depois de penetrar-lhe o recinto, no meu retorno do curso secundário noturno, esgueirando-me, em busca do salão nobre, por entre a multidão que, do lado de fora, esperava e temia a prisão do paraninfo ilustre. É que ele iria proferir um discurso não escrito e provavelmente insuportável aos ouvidos intolerantes da ditadura moribunda. Escutei-o de perto, João Mangabeira impávido, solene, mal saído da cadeia, intrépido, falar de coisas novas às novas gerações. A noção de regra jurídica, do Estado de direito democrático, ensinou aos jovens afilhados, no comentário afetuoso ao discurso do orador da turma, que acabara de ouvir – não, não era o Direito de “dar a cada um o que é seu”, como disseram os romanos. Essa era a concepção individualista dos que dão ao escravo a escravidão, ou ao miserável a miséria. A regra de um mundo morto, expressa numa língua morta. A regra da Justiça deve ser: “a cada qual segundo o seu trabalho”, como resulta da carta de São Paulo aos tessalonicenses, enquanto não se atinge o princípio de “a cada um segundo a sua necessidade”. Ouvi a pregação da Democracia desenhada para o amanhã. Era a leitura do compromisso da célebre Carta do Atlântico, que vinha de proclamar, para o mundo, das trevas da guerra, a reafirmação das quatro liberdades, heroínas da esperança de uma existência humana livre do medo e da necessidade.

Li, posteriormente, essa Oração memorável que me fascinara. E, anos depois, já estudante de Direito, pude estudar um dos livros que ela mencionara, as Reflexões sobre a Revolução do nosso Tempo, de Harold Laski, principal teórico, então, do trabalhismo inglês.

Li-o, todo; risquei-lhe as páginas e o perdi na minha herança de perdas do incêndio de 1964. Mas, na memória, me ficaram as idéias básicas de que o mundo em que vivíamos era um cenário de profundas mudanças civilizatórias, das quais resultaria ou não a organização da compatibilidade de dois valores humanos e republicanos irrenunciáveis: o das liberdades políticas e civis e o da igualdade de oportunidades e de condições. Para Laski, nesse livro – recordo-me bem – o destino dos acontecimentos iria decorrer da sorte de embate entre a força da soberania política dos cidadãos e a força da soberania econômica dos privilégios, que ameaça a ordem democrática, e a destrói, para fazer sucumbir os ideais da democracia.

A essa altura, no plano das minhas convicções profundas, inabaláveis, estava uma sentença preliminar de Ruy: “Todas as coisas mudam sempre sobre uma base que não muda nunca”. E essa base, que não pode nunca mudar, são os valores da pessoa humana. O homem, cada homem, como senhor e objeto essencial da nossa civilização, oriunda do cristianismo.

A dignidade da vida humana, seus direitos existenciais, os valores da liberdade, da igualdade, irmãos, intocáveis, incorruptíveis, na sociedade democrática.

Nenhum Estado que os suprima; nenhuma opressão que os renegue; nenhuma heresia pretensiosa, que os malsine, no caminho natural, inelutável, da globalização, da universalização da comunidade humana.

Não há crise econômica em nosso tempo. Há crise política e crise das relações sociais. A inteligência humana, que produz a ciência e a tecnologia, e por isso aciona a revolução maravilhosa de todas as produções materiais, não pode produzir a barbárie. Ela é a estupidez, a selvageria. Não tem perdão.

Incumbe-nos resistir. Em qualquer parte, em qualquer nação.

Não há falta de inteligência, nos dias de hoje. Há falta de caráter. A civilização não pode ser a corrupção e o caos, a ansiedade e a opressão.

É o ser humano a medida e o fim da sociedade humana.

Waldir Pires é advogado, pré-candidato ao governo da Bahia pelo PT.