Política

Surgia o germe do Partido dos Trabalhadores

No dia 12 de maio de 1978, os metalúrgicos da Scania, no ABC paulista, entraram para o trabalho e surpreenderam o país com um gesto inesquecível: cruzaram os braços ao lado das máquinas desligadas. Mais do que uma simples reivindicação salarial, os trabalhadores brasileiros reassumiam a luta contra a ditadura para exigir democracia no Brasil. Alguns dias antes, os metalúrgicos do ABC já davam sinais de resistência, com pequenas mas significativas paralisações, como na estamparia da Ford, em 10 de maio e em quatro setores na Mercedes, em 30 de março. Entretanto, os movimentos foram sufocados com sumárias demissões.

No ano anterior, em 77, o sindicato havia lançado a campanha pela reposição salarial dos 34,1%, índice subtraído da inflação nos anos de 73 e 74 e posteriormente denunciado em relatório do Banco Mundial. Enquanto isso, os estudantes saiam às ruas para protestar contra o longo período sem liberdade. Nos bairros crescia o Movimento contra o Custo de Vida. Intelectuais, artistas e um grupo de empresários contribuíam, cada um à sua maneira, para a abertura política no país.

Crescia a grande jornada de lutas pelas liberdades democráticas, principalmente depois do assassinato de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, nas salas de torturas da ditadura, em 1975.

Em 1979, com a força das greves, o ABC realizou o primeiro ato organizado por trabalhadores para exigir anistia ampla, geral e irrestrita a todos os exilados e perseguidos pelos militares.

O 3º Congresso da categoria, realizado em outubro de 1978, fez uma profunda reflexão sobre a conjuntura e definiu novas bandeiras de luta, como a criação da Central Única dos Trabalhadores e das Comissões de Fábricas. Neste momento, os metalúrgicos se convenceram da necessidade de criação do Partido dos Trabalhadores, o PT, como forma de expressão e organização política da sua classe.

A luta não pára. O país vibrava com as enormes assembléias da categoria nos estádios da Vila Euclides (hoje 1º de Maio), Jaçatuba e nas igrejas da região.

As elites se assustaram, mas reagiram com uma dura repressão ao movimento. Helicópteros do Exército sobrevoaram as assembléias, bombas de gás, tropas de choque e brucutus, espancamentos, prisões e várias intervenções no sindicato. Mas nada disto impediu os metalúrgicos.

Os peões do ABC deram a resposta: com seus próprios corpos, escreveram no chão do Paço de São Bernardo a palavra democracia, ato que simbolizou o motivo maior de continuidade da luta, resistência e de bravura.

O Brasil estava unido ao ABC. De todos os cantos do país chegavam apoios efetivos ao movimento. Os metalúrgicos criaram o Fundo de Greve, base de sustentação da luta e símbolo da solidariedade de classe. Intelectuais, estudantes, artistas, cada um a seu modo, davam a sua contribuição. A passeata das mulheres dos metalúrgicos pelas ruas do ABC foi o momento de maior grandeza da solidariedade. Sob os olhares da repressão, elas gritavam liberdade aos seus maridos e companheiros presos e em luta.

Os metalúrgicos do ABC também souberam retribuir a solidariedade. Numa lista enorme de ações, destacaram-se as greves de apoio aos trabalhadores nas estatais, as vigílias pela terra, pela criança e adolescente, pela previdência, as arrecadações de alimentos, roupas e dinheiro a vários movimentos, entre eles o dos trabalhadores rurais. Os metalúrgicos assumiram a Campanha pela Cidadania, contra a Fome e a Miséria, liderada por Betinho.

Nestes 20 anos de luta por democracia no Brasil, a categoria derrubou vários obstáculos e ainda enfrentou outros desafios: a proibição de greve e manifestação, as leis salariais, as péssimas condições de trabalho, a repressão dentro das fábricas, a falta de respeito nas negociações, os decretos-leis, a recessão, os direitos constitucionais e de aposentadoria, a redução da jornada e agora os novos ataques neoliberais, como a precarização do trabalho e o desemprego.

Mas sempre souberam resistir com coragem e criatividade. Foi assim que surgiram várias formas de lutas, como "Braços Cruzados e Máquinas Paradas", "Operação Tartaruga", "Vaca Brava", "Greve Pipoca", "Batalha de Piraporinha", "Gola Vermelha", "Cachorro Louco", "Mula Sem-Cabeça", "Greve Inteligente". Atenta, a categoria insiste no "Acorda, Peão" e ainda persevera na "Esperança" vislumbrada por Henfil.

Concebidos nas greves, o ABC gerou filhos, líderes anônimos que se multiplicaram pelo país afora. Muitos assumiram tarefas importantes nas comissões de fábricas, cipas e na comissão de mobilização. É inegável o papel desempenhado por Meneguelli, Vicentinho, Avamileno e Guiba à frente do sindicato, hoje presidido por Luiz Marinho.

Mas Lula ainda é a grande expressão destes 20 anos de construção da democracia no Brasil. Operário da luta, liderou o combate direto à ditadura. Foi cassado, preso e ainda é discriminado e perseguido.

Como um torneiro-mecânico desafiou o poder e mudou a história com uma nova idéia de sindicalismo no Brasil? E depois, ousado, rompeu o preconceito das elites para se tornar a esperança legítima dos trabalhadores na Presidência da República?

"Vinte anos depois, mais amadurecidos, os metalúrgicos do ABC ainda têm em suas mãos a bandeira da liberdade, ícone da jornada de luta ainda por terminar. Trazem, também, a certeza de terem construído parte da verdadeira história de um povo agora mais exigente, mais consciente, que não quer viver com as sobras da democracia. O trabalhador que lutou por Anistia, Diretas Já! e impeachment, agora exige uma vida por inteiro e não pela metade", como definiu Luiz Marinho.

Se foi verdade que Lula surgiu na hora, local e momento político corretos, foi porque nas mesmas condições também havia uma categoria preparada e mais amadurecida para que o palco do reinício das lutas operárias fosse o ABC. "Eu tive medo, mas tava lá duro e firme, no pé da máquina, com os braços cruzados", lembrou seu Sérgio Piveta, metalúrgico grevista anônimo em 78 na Scania, hoje aposentado.

Ele faz parte dos milhares de outros trabalhadores do ABC que realizaram as greves no final dos anos 70. "Não tive medo de ser demitido. Tive medo de ser preso. Naquela época a gente tinha medo até de pensar em agitação. Para nós, havia sempre a impressão de que alguém, entre nós, poderia ser do Dops", disse ele.

Mesmo vinte anos depois, seu Piveta não consegue entender como a Scania parou em 1978. "Acho que era a hora. A turma se encheu", simplificou.

Na verdade, a greve na Scania não foi por acaso e muito menos espontânea, como estrategicamente Lula dizia na época, para ludibriar a ditadura. Foi planejada, apesar da débil organização no chão da fábrica, explicada pela completa falta de experiência em greve dos seus líderes.

Um dia antes da paralisação, dois líderes do movimento, Gilson Menezes e Augusto Portugal conversaram com um repórter da Folha de S. Paulo e lhe pediram um favor: convocar a imprensa naquela madrugada para estar na porta da fábrica, no dia seguinte, a partir das 6 horas do dia 12. Por quê? "A Scania vai entrar em greve", disse Augusto.

Entre a cruz e a espada, ou seja, dar um grande furo de reportagem ou honrar o compromisso, o repórter optou pela segunda alternativa. E deu certo. Primeiro evitou que a notícia saísse antes da greve iniciar e, principalmente, porque assegurou a presença de repórteres logo de manhã, fato que, segundo os líderes, poderia "suavizar" uma possível repressão policial, como explicaram.

"A greve da Scania parecia uma manifestação meramente salarial, mas foi além disto: denunciou as condições de trabalho, de vida e enfrentou os militares, fazendo a greve, que até então era caso de polícia", analisou "Véio Cego", como era conhecido na fábrica, ou o seu Amauri Siqueira, como é tratado em casa, hoje com 60 anos e por muito tempo militante do velho PCB.

Em 1978, havia uma explicável timidez política em assumir publicamente as manifestações. Tanto é que dirigentes do sindicato e o próprio Lula evitavam a palavra greve. Era paralisação. Greve estava mais para uma luta político-ideológica, idéia plantada pela ditadura militar. Era subversiva.

A geração de trabalhadores e de ativistas do final da década de 70 foi formada politicamente sob a batuta do legalismo do sindicalismo abortado a partir de 1964. Lula, por exemplo, foi para o sindicato, em 1969, num momento em que o então presidente da entidade, Paulo Vidal Neto, pregava que "os avanços das soluções dos problemas devem ser encontrados dentro da lei", conforme depoimento publicado no livro de Luiz Flávio Rainha e Osvaldo Bargas, As Lutas Operárias e Sindicais dos Metalúrgicos em São Bernardo.

"A lei, no caso a 4.330/64, era uma lei contra a greve. Exigia tanta burocracia que, na prática, inviabilizava a sua decretação. E para piorar, havia a repressão militar", como disse Maurício Soares, ex-advogado do sindicato e hoje prefeito de São Bernardo.

Era uma época em que as campanhas salariais eram de fachada, sem mobilização de massa, sem discussão. Homologavam-se os índices decretados pelo governo.

Com Lula presidente do sindicato, a partir de 1975 as coisas começaram a tomar outro rumo. No começo, ainda ficou amarrado às velhas práticas legalistas de seu antecessor – de delegar poderes aos advogados e excluir a decisão e discussão da categoria. Mesmo nos limites das instâncias legais, começava então uma fase de conquistas sociais, como a estabilidade da gestante, o cômputo das horas extras "habituais" no 13º salário, nas férias e no descanso semanal remunerado etc. O sindicato começou a ganhar notoriedade quando passou a denunciar, de maneira sistemática, em 1977, a rotatividade de mão-de-obra na categoria como forma de as empresas arrocharem salários. E também, no mesmo ano, quando (dentro dos limites possíveis) fez estardalhaço na denúncia e na campanha para a recuperação dos 34,1% que o governo "roubou" da inflação, nos anos de 73 e 74, causando perdas sensíveis nos salários dos trabalhadores do Brasil. Foi a mais importante agitação sindical pós-68, ano das últimas greves no país, em Osasco (SP) e Contagem (MG).

A assembléia de 2 de setembro de 1977, com aproximadamente 2.800 trabalhadores, evidenciou o sucesso da campanha pela reposição. Pelo menos 80 mil panfletos foram distribuídos nas fábricas. E pelo discurso de José Castilhas, um dos presentes à assembléia, já dava para perceber o tom mais agressivo e ousado para a época, resultado da mobilização: "O ilustre ministro afirmou que esse erro (manipulação dos índices), o tempo já corrigiu. Vejam senhores como é fácil achar uma saída. Porém, essa saída está muito manjada. Quando falta feijão, foi o tempo que não choveu. Quando falta cebola, foi o tempo que não choveu demais. Ah!, esse tempo, meu Deus! Quando é que esse tempo fará chover bom senso e justiça social?"

O clima estava propício para uma ação mais radical no ABC. Era mesmo uma questão de tempo e habilidade política. Lula já arriscava e em entrevista ao ABCD Jornal, tablóide alternativo de circulação entre os metalúrgicos, declarava que "a greve é a bomba atômica da classe trabalhadora".

E esta bomba foi acionada em 12 de maio de 78, na Scania, como detalha Gilson Menezes, no livro de Bargas e Rainha: "Na hora que estava para acontecer, a gente não acreditava muito (...) o esquema da ferramentaria estava pronto(...) O pessoal da noite, poucos sabiam (...) Esse pessoal saía e já deixava os do dia trabalhando (...) Ninguém entrava e começava a trabalhar (...) a ferramentaria não ligou as máquinas. Só 3 ou 4 seções ligaram uma ou outra máquina. A ferramentaria parou e o pessoal de outras seções viam que ela estava parada. Aí foi indo, parou a fábrica toda... A chefia ficou espantada com o que estava acontecendo... Acharam que faltava força. Desacostumadas, as chefias não sabiam que atitude tomar".

Levadas pelo vento da mobilização do ABC, as greves se espalharam em toda a região, inclusive em outros estados. Em 16 de maio de 1978, o governo reconheceu, em comunicado oficial, a existência de movimento grevista ilegal em fábricas do ABC.

"No dia seguinte (13 de maio), a gente soube da greve na Scania. Lá na Volks o sistema de vigilância redobrou sobre a peãozada. Eu me lembro de muitos colegas conversando baixinho, combinando alguma coisa. Cheguei perto e o assunto era sobre greve na nossa ala. Uns, com medo, diziam que não ia dar certo, mas tinha um cara lá, bravo com o grupo, forçando para fazer greve. Não deu muito certo. Que eu me lembre, em 1978, parou uns setores na Volks. Só isso". De fato, conforme pôde lembrar Onofre Silveira Lima, houve apenas paralisação parcial na Volks, apesar da importância estratégica e de todos torcerem pela sua adesão ao movimento.

Mas em outras empresas a notícia da greve na Scania caiu como uma ‘bomba atômica", como dizia Lula, e explodiu em questão de horas. "Lá na Ford o pessoal estava mordendo... Parou todo mundo e ainda fizemos assembléia dentro da fábrica", relembra José Lins Figueira, também aposentado na Ford. Morador do bairro Paulicéia, ao lado da fábrica, ele diz que quando sente saudade daquela época de "agitação da turma do sindicato" vai lá para a entrada da empresa, na avenida Taboão, para "ver se dá sorte para pegar carona numa das assembléias que eles ainda fazem". Se o movimento grevista, iniciado em maio de 78 na Scania, não pôde ser assumido por suas lideranças – para evitar prisões e intervenção no sindicato –, em São Paulo os metalúrgicos, empolgados com o clima do ABC, forçaram o sindicato a decretar abertamente a greve geral na categoria, em novembro do mesmo ano, época da campanha salarial, contra a vontade de Joaquim dos Santos Andrade, presidente da entidade. Porém, foi um movimento traído, não se constituindo, na prática, em uma verdadeira greve geral. Este fato mexe com os brios do ABC e o sindicato promete uma grande campanha salarial para abril de 1979. "Mais do que isto, havia a necessidade de consolidar o direito de greve, resgatar a liberdade de manifestação dos trabalhadores e também contribuir com a abertura política no país", como disse Djalma Bom mais tarde.

A greve geral de 1979, decretada a partir da zero hora do dia 13 de abril, "foi a primeira manifestação de massas da classe operária, desde 1964, na forma de greve fora das fábricas, com piquetes, por tempo determinado e com realização de grandes assembléias", conforme avaliação do sindicato no livro Imagens da Luta – 1905 a 1985.

O enfrentamento claro e ostensivo dos metalúrgicos do ABC extrapolou "os limites de atuação dentro da legislação sindical". O general Figueiredo tinha acabado de tomar posse na Presidência da República. O sindicato sofreu intervenção e o movimento, ressentindo-se da falta de experiência, se dispersou temporariamente. Os metalúrgicos sentiram o peso da pressão.

Mesmo reorganizados, com Lula reassumindo o comando da greve, foram obrigados a suspender o movimento, fato que ficou conhecido como a "trégua dos 45 dias", quando Lula, em assembléia no estádio da Vila Euclides, pediu um voto de confiança para os metalúrgicos e a volta ao trabalho.

"Não pegou bem aquela saída. Temos de reconhecer que foi o mais acertado para o momento. Mas foi um recuo", avaliou depois Osmar Mendonça, o Osmarzinho, um dos líderes. Naquela assembléia, ficou a impressão de que a diretoria estava trocando a luta pelo fim da intervenção no sindicato.

A ditadura tinha que provocar uma derrota dos metalúrgicos do ABC. E para alcançar seu objetivo não poupou nada e ninguém. Decretaram a intervenção no sindicato, encheram o ABC de espiões, tropa de choque, helicópteros do Exército, brucutus e espancaram milhares de trabalhadores. Censuraram a imprensa e a poderosa Rede Globo abriu espaço para Mário Garnero, diretor da Volks, no Jornal Nacional, para que só ele falasse. Contra a sua vontade, a repórter que foi entrevistá-lo negou-se a aparecer na tela e foi mais longe, tirou de seus dedos os anéis para "nunca" ser identificada com aquela trapaça.

O confronto foi direto. O Paço Municipal transformou-se numa verdadeira praça de guerra. A tropa de choque avançava para dispersar os metalúrgicos. Os trabalhadores respondiam com pedradas e com palavras de ordem do tipo "abaixo a repressão".

Num dos momentos de calma, os metalúrgicos aproveitaram e escreveram com seus próprios corpos a palavra democracia, no chão do Paço de São Bernardo. Foi um recado ao país, para explicar o motivo da luta. Mas, a palavra "democracia" ficou incompleta. "Fez sentido, porque ainda não conquistamos as liberdades democráticas por completo neste país", interpretou Devanir Ribeiro, diretor do sindicato na época.

Algumas horas antes do início da greve geral de 79, na noite de 12 de abril, alguns "companheiros" e amigos trocavam suas impressões sobre o dia seguinte. Alguns diziam que a peãozada, com a experiência das greves do ano anterior, já estava mais madura e que iria entrar em greve sem entrar nas fábricas.

A expectativa maior era com a Volks. Era a maior fábrica. Se ela parasse, o movimento seria vitorioso, analisavam. "Eu acho que os companheiros da Volks vão atender à convocação do sindicato", disse Lula a um dos parceiros presentes em sua sala, que insistia com todos para a necessidade de um piquete na empresa.

Quatro horas da manhã, muitos militantes, entre eles Devanir Ribeiro, Wagner Lino, Alemão, Osmarzinho e uma infinidade de repórteres, cinegrafistas e fotógrafos já estavam na porta da montadora. Por volta das 5 horas chegam os ônibus e descarregam mais de 10 mil trabalhadores no pátio de entrada. Apesar dos apelos dos líderes para que não entrassem, os peões passavam direto rumo à fábrica. Foi quando um piquete se formou à frente daquele formigueiro humano. Eram, basicamente, os jornalistas e alguns ativistas. Ficaram de mãos dadas para impedir a passagem de todos.

Wagner Lino, então, junto com Devanir Ribeiro, passou a gritar com os metalúrgicos: "vocês estão vendo que vergonha! Jornalistas estão fazendo o nosso papel!" Rapidamente, os peões da frente assumiram os lugares dos repórteres no piquete. Só um jornalista não quis fazer parte daquela estranha ação: um colega do jornal Movimento. Assim, a Volks entrou na greve geral de 79.

A partir da paralisação de 79, os trabalhadores do ABC derrubam, na prática, a proibição do direito de greve, mesmo com as pressões e intervenções que os sindicatos sofreram naquele ano e nos seguintes.

A greve de 1980 serviu de lição aos metalúrgicos do ABC. Também foi para "lavar a alma" e o desgaste que ficou com a "trégua dos 45 dias" do ano anterior.

Os metalúrgicos do ABC ficaram 41 dias em greve. Foi uma manifestação de resistência e de muita solidariedade. O cerco nas empresas foi pior. Os empresários, mais escolados, já tinham até um manual para enfrentar as greves. Tinham organizado listas com nomes dos principais ativistas. Estes não arrumavam emprego nas fábricas.

A greve começou na época da campanha salarial, em abril de 80. Foi planejada para ser longa. O sindicato, mais experiente, tinha investido mais em sua comunicação. O jornal Tribuna Metalúrgica passou a ser diário. As assembléias nas portas de fábricas eram constantes e melhor preparadas. O sindicato já tinha carro de som e dentro das fábricas, apesar da perseguição, havia um sem número de militantes de base, diplomados nas greves anteriores.

Os metalúrgicos aperfeiçoaram sua forma de comunicação dentro da fábrica. Deixavam bilhetes na parte interna das portas dos banheiros para socializar as informações do dia. A Tribuna Metalúrgica entrava todos os dias nas fábricas, furando o bloqueio da revista que era feita nos peões em muitas empresas. Os trabalhadores iam trabalhar com meias longas, de jogador, e, em cada perna, enfiavam uma quantidade de exemplares do jornal.

Foi uma guerra de informação, entre sindicato e empresas, em cima dos trabalhadores. A Fiesp distribuía falsos comunicados, informando o fim da greve: "Metalúrgico, essa greve irresponsável já fez você perder 16 dias", dizia um deles.

Nada, porém, convencia a categoria a voltar a trabalhar. Diante disto, os empresários começaram a ameaçar com demissões. Lula e quase toda a diretoria foram presos pelo Dops. O sindicato sofreu nova intervenção. Mas os trabalhadores ainda continuavam firmes, realizando assembléias na Igreja Matriz, nos bairros, no Estádio de Vila Euclides. Eram assembléias de mobilização e orientação.

Com a intervenção, o ABCD Jornal assumiu o papel da Tribuna e se transformou em porta-voz do comando da luta dos metalúrgicos. Sua redação era transferida a cada edição, assim como o local da sua impressão, para evitar a prisão dos jornalistas e colaboradores e a sua apreensão.

Foi a greve melhor organizada. Cada grupo tinha a sua tarefa. O jornal ficava pronto de madrugada. Um grupo tinha a função de pegá-lo e distribuí-lo para outros grupos nos bairros. Com os trabalhadores fora das fábricas, o jornal era distribuído nos pontos de ônibus. E lá mesmo eles ficavam sabendo o rumo da greve e para onde ir: voltar para casa ou para uma nova assembléia na Igreja Matriz de São Bernardo. O jornal foi fundamental na manutenção da organização. Foi o fio condutor.

Havia, ainda, a turma dos "miguelitos". Eram os trabalhadores que, na madrugada, colocavam pregos retorcidos debaixo das rodas dos ônibus, para furar os pneus dos veículos. O "miguelito" mais comum era o de três pontas. Jogado ao chão, uma delas sempre ficava para cima. Isto impedia o fura-greve de ir trabalhar.

As empresas exigiram da PM policiais nos ônibus. Um dos metalúrgicos presos, acusado de jogar "miguelito", foi interrogado pelo delegado: "onde está o "miguelito?", quis saber a autoridade. O peão, dando uma de "migué", respondeu: "doutor, eu não conheço nenhuma pessoa chamada Miguelito". Tomou uns cascudos e foi liberado.

O Fundo de Greve, pensado no ano anterior, serviu de ponto de aglutinação da militância. Foi um marco também da solidariedade da população aos metalúrgicos em greve. As pessoas enviavam mantimentos, roupas e dinheiro para ajudar os trabalhadores em luta. Funcionou em igrejas e sua maior referência foi o pátio da Matriz de São Bernardo. Depois transferiu-se para a rua Alferes Bonilha, com a contribuição de vários militantes, como Arquimedes, Keiji, Terezinha e a rainha das greves, a famosa "Tia".

Um mês depois, mesmo com todo o apoio e melhor preparados, os metalúrgicos começaram a dar sinais de cansaço. Os boatos aumentavam e a situação ficou perigosa com a informação de que seus contratos de trabalho poderiam ser rescindidos, após trinta dias sem aparecer na empresa, caracterizando abandono de emprego.

Ao mesmo tempo, a repressão e as prisões aumentavam. Com Lula e lideranças presos, o movimento dava sinais de recuo. Muitos já haviam retornado ao trabalho. Foi quando surgiu a idéia de realizar a passeata das mulheres dos metalúrgicos, com a bandeira de "liberdade para nossos maridos". Era preciso um novo estímulo.

A idéia desta passeata nasceu num restaurante do Bixiga, numa conversa entre Wagner Lino e dois jornalistas, que avaliavam a necessidade de criar um fato novo no movimento. Wagner levou a proposta para o "Grupo dos 16" (que eram 14, na verdade) e lá decidiram realizar a passeata.

O "Grupo dos 16" foi criado em uma reunião da diretoria e de militantes como alternativa ao comando, caso os dirigentes fossem presos. Foi esse grupo que acabou segurando a greve. Da prisão, Lula tinha o controle da situação, através de recados dos advogados.

O 1º de Maio de 1980 ainda está na lembrança de muita gente. Não só do ABC. Proibida pela ditadura, a manifestação começou na Matriz de São Bernardo. O ABC estava cercado por policiais. As pessoas chegavam como podiam. No final da missa, mais de 150 mil pessoas já estavam ao redor da praça.

Foi um dia de extrema tensão e medo. A tropa de choque fez um enorme cordão de isolamento na praça, impedindo os manifestantes de ocupá-la. Qualquer provocação poderia acabar em uma guerra mortal. A negociação entre o comando da PM e os manifestantes foi demorada. Todos ameaçavam, até que veio a ordem superior de retirada da força policial.

Entre choros e risos, saiu uma enorme passeata rumo ao Vila Euclides, levando flores e empunhando a bandeira do Brasil. Foi a comemoração do mais concorrido 1º de Maio da história da classe trabalhadora.

A "greve dos 41 dias" termina de maneira organizada, sem contudo apresentar uma vitória econômica. Porém, ela ainda é lembrada como uma das mais importantes greves dos metalúrgicos do ABC. Pela sua duração e as transformações que ela provocou nas mentes e corações dos trabalhadores.

Naquele ano ainda prevalecia o discurso do tudo ou nada. Não havia a prática de negociação desenvolvida entre patrões e empregados como nos dias de hoje. Era tudo na base do autoritarismo. Nas fábricas, com trabalhadores sem organização interna, prevalecia a lei da chibata. Os 41 dias de greve foram uma grande lição, principalmente aos patrões que se negavam a negociar com seriedade. Esta greve acabou construindo um perfil de relação, de maior respeito e maior flexibilidade para negociar.

No dia 11 de maio de 1980, os trabalhadores voltaram ao trabalho convencidos de que seria preciso fazer outras greves e ampliar o universo de atuação. Voltaram com o sentimento de que deveriam permanecer em seus locais de trabalho atentos para uma nova batalha, como expressou um boletim do comando de greve naquele dia: "atrás de cada máquina eles terão um trabalhador em guerra. Voltamos apenas para evitar a repressão da polícia do governo, face a face e desarmados... A guerra continua, porque em nossos corações e em nossa alma carregamos a ira dos justos e uma eterna sede de justiça!"

O período de 1978 a 1980 foi marcado pelas inúmeras greves no ABC e no país. Mais do que quantificar – a estimativa do sindicato é de que houve perto de 850 empresas paralisadas – é preciso dar qualidade política para o momento.

Quando os operários metalúrgicos na Scania cruzaram os braços, eles não imaginavam a subversão da ordem e das leis da ditadura que estavam fazendo e o caminho que estavam abrindo para o futuro da democracia no Brasil. Primeiro, pelo efeito imediato de garantir, na marra, o direito de manifestação dos trabalhadores no Brasil. Depois, por recolocar o operário como um dos atores na luta política.

Mais. As greves foram responsáveis pelos avanços na organização nos locais de trabalho, com a criação da primeira Comissão de Fábrica, em 1981, na Ford. Hoje, só no ABC, existem mais de 35 comissões de fábrica, que representam 75% da categoria.

Foram responsáveis pela criação, em 1983, da maior central sindical do país e uma das mais importantes e respeitadas do mundo, a CUT, que representa mais de 15 milhões de trabalhadores.

E das greves iniciadas em 78, os trabalhadores entenderam que precisavam criar um novo e diferente partido político. Nas paralisações, os metalúrgicos perceberam que a ação sindical é limitada para a resolução de seus problemas. Era preciso uma organização maior. Era preciso assumir a luta política para chegar ao poder. Assim nascia a idéia do Partido dos Trabalhadores, já em setembro de 1978, quando Lula referiu-se à "criação de um partido político que representasse os trabalhadores".

A estrela do PT, apesar dos que defendiam uma frente ampla, começava a brilhar.

 Júlio de Grammont é jornalista.