Nacional

Para escrever essa reportagem, passei três dias em Brasília, entrevistei sete dirigentes partidários e/ou membros do governo do Distrito Federal (GDF, como é lá conhecido). Conversei também por telefone com o senador Lauro Campos, do PT, que enfrentou Cristovam Buarque nas prévias para definir o candidato ao governo em 1998. Além das entrevistas, tive oportunidade de “pegar carona” – literalmente – numa visita que a deputada Marta Suplicy fez, em companhia do governador Cristovam Buarque, a diversos programas sociais desenvolvidos pela administração local. Para mim, que como muitos só conhecia a Brasília “oficial” do Plano Piloto, foi uma excelente oportunidade para conhecer um pouco da “Brasília real”, tão diferente da cidade dos cartões-postais e do poder. E que tem até esquina

Brasília é uma cidade ímpar. Cidade-estado, em sua administração se confundem as funções de prefeitura e de governo de estado, além de fornecer a infra-estrutura básica para a atuação do governo federal. Cidade planejada, nascida há apenas 37 anos, em sua criação refletia os sonhos do nacional-desenvolvimentismo da época e utopias socializantes. “Esse é o lugar em que a realidade foi muito maior que o sonho”, disse Lúcio Costa, um de seus criadores. Na visão do comunista Oscar Niemeyer, o outro grande criador, as superquadras do Plano Piloto deveriam abrigar toda a população do Distrito Federal, prevista para cerca de 800 mil pessoas. Assim, no seu sonho socialista as autoridades morariam nas quadras de número 200 e o pessoal de serviços nas de número 400, de maneira a que o ministro se encontrasse com seu motorista no mercado ou nas áreas de lazer.

Mas também esta utopia socialista não deu certo. A população foi crescendo, o Plano Piloto se elitizando, se constituindo hoje talvez no mais importante bolsão de classe média alta do país. À sua volta foram se formando as chamadas “cidades-satélites”. Hoje, no governo Cristovam Buarque essa expressão é malvista, desde o momento em que o governador cunhou a frase “mais cidades, menos satélites”. São simplesmente chamadas de cidades. O fato é que o governo do Distrito Federal – GDF – administra dezenove regiões administrativas, entre as quais dezesseis “cidades”. Algumas já “antigas”, da época da fundação, como Gama e Taguatinga. Outras recentes, de cinco anos, surgidas como cogumelos a partir da distribuição indiscriminada de lotes feita governo Roriz. No total, são hoje 1,8 milhão de habitantes. Vindos de todas as partes do país. Como nos conta Hamilton Pereira, secretário de Cultura do GDF: “Brasília é uma cidade aberta a todas as expressões culturais do país. Se você for num domingo ao Cruzeiro, vai ouvir pagode por todo lado. É um espaço de cultura carioca em Brasília. A Ceilândia por sua vez é uma cidade de cultura tipicamente nordestina. Cidades mais recentes, como Paranoá, incorporam expressões culturais gaúchas. Há um mosaico em que as diversas faces do Brasil ainda procuram o amálgama que só o tempo vai produzir. Brasília é uma espécie de espelho quebrado das diferentes culturas do país. É uma face bela e disforme, como é a face do povo brasileiro.”

Inaugurada apenas três anos antes do golpe, Brasília viu suas elites dominantes se formarem sob a égide dos sucessivos governos militares. Swedenberger Barbosa, secretário de Governo do DF, conhecido por todos como Berger, relata que “as classes dominantes em Brasília se organizaram e dividiram o espaço político e de ação empresarial com bastante folga, à medida em que o fizeram sob o beneplácito da ditadura. Grandes fortunas se formaram naquele período invadindo terras públicas e obtendo com facilidade recursos financeiros de órgãos federais.” Durante todo o período ditatorial, o Distrito Federal tinha governadores nomeados pelo governo central e nenhum órgão legislativo próprio. É somente a nova Constituição, de 1988, que lhe confere o direito de ter governador eleito e um parlamento, a Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Assim, é somente em 1990 que são realizadas as primeiras eleições locais. O vencedor: Joaquim Roriz. Político tradicional goiano, Roriz teve uma rápida passagem de dois meses pelo PT, sendo inclusive seu fundador no estado de Goiás. Foi indicado governador biônico do Distrito Federal, tendo exercido o cargo por cerca de dois anos. Nomeado ministro do governo Sarney, volta em 90 eleito no primeiro turno por uma pequena margem contra Carlos Saraiva, candidato do PT, e Maurício Correia, do PDT. Roriz teve como forte marca de seu segundo mandato a distribuição de lotes. Praticando uma típica política populista, sem nenhum critério a não ser o do interesse eleitoral, Roriz distribuiu durante seu governo – particularmente no período final – 120 mil lotes. Muita gente dos municípios próximos de Goiás e Minas acorreu a Brasília para receber seu lote, aumentando a população do DF. A cidade se dividiu diante desta política. De um lado, para uma população de quase 500 mil pessoas que foram favorecidas, mesmo que os lotes não tivessem nenhuma infra-estrutura urbana, eles representavam a perspectiva da casa própria. De outro, para vários setores de classe média, a atração de migrantes atrás de um lote estava favelizando Brasília. Para uns, Roriz é quase um deus, que deu a moradia. Para outros, um diabo.

As eleições de 94

Nesse clima, nas eleições de 94 aparecia como franco favorito o candidato do governador, Valmir Campelo. O PT, em coligação com PSB, PCdoB, PPS e PCB apresentou o nome do professor Cristovam Buarque, ex-reitor da Universidade de Brasília. No primeiro turno, Campelo aparece em primeiro lugar, com 304.537 votos, mas Cristovam vem logo a seguir, com 285.606. Para o segundo turno a frente é ampliada e Cristovam recebe o apoio do PSDB, cuja candidata Maria de Lurdes Abadia tinha ficado em terceiro lugar, com 154.954, além do PDT e do PMN. O resultado é sua vitória com 460.138 votos contra 393.710 do oponente. Berger comenta: “Depois de demorar muito para decidir, mais ou menos em agosto de 94, o PT tirou uma posição muito firme contra a distribuição indiscriminada de lotes. Acho que aquilo influenciou, atraiu votos de classe média e até de setores da burguesia.” James Lewis, subsecretário do Entorno e membro da Executiva Nacional do PSB enfatiza: “Era visível que setores do Plano Piloto aderiram à candidatura da Frente muito mais contra Roriz do que a nosso favor, com medo de que se perdesse aquela qualidade de vida caso continuasse a política de distribuição de lotes.” De fato, é no Plano Piloto que a Frente Brasília Popular obteve um de seus melhores resultados: 61,6%. Em contrapartida, os piores foram em regiões mais pobres da cidade: 37,3% em Paranoá; 44,2% no Núcleo Bandeirante; 46,6% em Brazilândia.

O governo

O governador Cristovam Buarque afirma: “Eu tenho a impressão de que não estou exagerando quando digo que ocupo o cargo político mais difícil do Brasil. Primeiramente, porque sou oposição junto ao presidente da República. Em segundo lugar, porque 60% do dinheiro para gastos vêm do governo federal. Uma parte como obrigação constitucional, que é a verba para segurança, mas a outra como um repasse tradicional que é feito há 40 anos. Em terceiro, porque no início do governo uma parte do PT – sobretudo os sindicatos – pressionava para que fôssemos o carro-chefe da oposição ao governo FHC. E, finalmente, porque como temos ao mesmo tempo funções de governo de estado e de prefeitura, o número de servidores é imenso: 150 mil, incluindo os aposentados.”

Nesse quadro, Cristovam define sua concepção de governo: “Tarefa de governo é limpeza pública, conservação de vias. Prioridade é saúde, emprego, segurança e cultura. E a educação como obsessão”. E desenvolve o raciocínio: “O PT ficou muito economicista. Ele defende aumento de salário e participação na renda. Mas isso não basta. Um partido realmente transformador tem que propor a redefinição do conceito de riqueza. Eu acho que o símbolo de riqueza de uma sociedade é o uso inteligente do tempo livre. E este, só é possível através da educação.” Para o governador, a bolsa-escola – talvez a menina dos olhos do governo – não se reduz apenas a um programa de renda mínima. Ele explica: “Há uma diferença radical na concepção. A renda mínima parte de um conceito econômico, de que as pessoas são pobres porque não têm dinheiro no bolso. Então, a gente dá o dinheiro, se não para eliminar a pobreza, ao menos para reduzi-la. Eu parto de uma redefinição da concepção: riqueza não é dinheiro no bolso, é saber na cabeça. Minha preocupação principal não é que os pais dos alunos tenham dinheiro. A gente paga para que a criança esteja na escola, não para melhorar a qualidade de vida da família. O propósito é a educação.”

Baseada nessa concepção, fica evidente a preocupação social do GDF. De fato, todos seus principais programas estão nesse campo: educação, saúde, geração de renda e emprego, cultura (V. notas). Mas esta concepção não é consensual dentro do PT. O senador Lauro Campos critica: “O governo Cristovam Buarque pode ser caracterizado como neoliberal. Sua grande marca são realizações como a bolsa-escola, o programa saúde em casa etc. Estas propostas são universalmente aceitas, indiscutíveis, sem ideologia. São adotadas por todos os partidos, inclusive o PFL. Ao mesmo tempo, o GDF assinou um protocolo com o governo federal que, entre outras medidas, prevê: o enxugamento da máquina, a não admissão de funcionários durante três anos; o corte de direitos do funcionalismo público; a privatização de algumas empresas estatais; a divisão do espaço para publicidade no metrô com o governo federal. Ou seja, quando sai das propostas desideologizadas, o GDF cai em propostas neoliberais.”

Entrando na polêmica, o deputado federal Chico Vigilante, presidente do Diretório Regional do PT, explica: “Constitucionalmente, o governo federal é obrigado a manter a segurança pública no DF. Mas além disso, tradicionalmente ele vinha mantendo a saúde e a educação. Pelo protocolo assinado, o governo federal se compromete a repassar os recursos mínimos para o funcionamento destas três áreas. No protocolo, o GDF se compromete a não repassar recursos do Tesouro para empresas deficitárias, o que está certo. Mas o protocolo não obriga o governo a privatizar empresas. Eles estão se referindo à Sociedade de Abastecimento de Brasília, um supermercado estatal que foi criado na época em que não tinha supermercado aqui, que funcionava no setor Norte, bairro de classe média alta, vendendo produtos de primeira e dando um prejuízo mensal de R$ 700 mil. O GDF realocou os funcionários que lá estavam, sem demitir ninguém, e agora está alugando os prédios para a rede privada. É isso que eles chamam de privatização!” E comenta: “Todas as realizações do governo batem de frente contra o neoliberalismo. Enquanto nos outros estados estão demitindo gente, aqui nós estamos contratando professores, policiais etc. Enquanto bancos estaduais estão quebrando, aqui o nosso banco está investindo no social e passa a dar lucro. Enquanto em outras áreas estão privatizando empresas estratégicas, nós aqui estamos fortalecendo-as e as transformando em verdadeiras empresas públicas. Recuperamos inteiramente a empresa de saneamento de Brasília e a CEB (Central Elétrica de Brasília) ganhou um prêmio como melhor empresa do ramo no Brasil enquanto a privatização da energia no Rio deu em falta de luz.”

O governador pergunta: “Será que a bolsa-escola é um projeto neoliberal? Saúde em casa é neoliberal? Agroindústria familiar é neoliberal? Um governo que não demitiu é neoliberal? Esses adjetivos não me preocupam. O que me preocupa é fazer uma análise de classe e ver quem ganhou e quem perdeu com esse governo.”

Outro ponto polêmico diz respeito às relações com o governo federal. Lauro Campos afirma: O governador Cristovam nunca escondeu sua admiração pelo intelectual Fernando Henrique. Há um mimetismo do GDF em relação ao governo federal. Para fazer esta ponte, o governador já convidou o senador Arruda, do PSDB, umas vinte vezes para conversar, enquanto eu, que sou senador do PT, só fui convidado uma vez.” Cristovam avalia: “Provavelmente, se eu fosse professor da UnB teria escrito alguns artigos mais duros contra o governo federal. O cargo me obriga a certos limites na postura. Mas eu jamais fiz concessões. A relação com o governo federal é ambígua. Eu não posso negar que haja um respeito mútuo. Eu tenho que reconhecer que talvez nenhum estado tenha conseguido captar recursos do governo federal como conseguimos. Portanto, eu não posso dizer que fui perseguido pelo governo FHC.”

E a marca registrada das administrações petistas, o orçamento participativo, como anda em Brasília? Arlete Sampaio, vice-governadora do DF e responsável pela sua coordenação, nos relata: “Desde o primeiro ano começamos a colocar em prática o Orçamento Participativo. Em 1995 ele já foi concretizado em todas as dezenove cidades do DF, com a participação de cerca de 20 mil pessoas; em 96 participaram 27 mil e em 97 atingimos 34 mil pessoas. É feita uma primeira plenária em cada uma das cidades, de prestação de contas do ano anterior e explicação do processo. Na segunda plenária as pessoas já apresentam suas reivindicações e elegem delegados, na base de um para cada dez presentes na reunião. Estes delegados constituem um Fórum do Orçamento Participativo da cidade, que por sua vez elege os representantes para o Conselho do Orçamento Participativo. Cada cidade tem no mínimo dois representantes e mais um conselheiro para cada cinqüenta delegados no fórum local. Assim, temos hoje um conselho com 97 participantes.” Como em quase todas as experiências, em Brasília também as decisões do Orçamento Participativo se limitam ao âmbito dos investimentos, sem entrar no mérito dos outros gastos orçamentários. Arlete nos explica o processo: “Nós decidimos no governo qual o volume de recursos que vai ser alocado para obras. Estes recursos são distribuídos pela cidade com base em critérios aprovados pelo conselho, referentes à renda per capita, ao índice de mortalidade infantil, à carência de equipamentos públicos. Estes critérios definem uma pontuação com base na qual os recursos são compatibilizados no Fórum com as reivindicações apresentadas. Assim nós construímos um plano de investimentos que integra a lei orçamentária anual e que até agora mesmo os deputados mais ferrenhos opositores do governo na Câmara Legislativa têm aprovado integralmente.” Mas a experiência não se limita ao Orçamento Participativo. Existem também as plenárias temáticas e os conselhos, como os de transportes, segurança, educação – onde se constroem as políticas públicas a serem implementadas – e os fóruns dos trabalhadores, dos empresários e das igrejas.

Funcionalismo: o eterno problema?

Muito se elogiou o “modo petista de governar” mas é também impressionante a capacidade petista de não aprender com os próprios erros. Parece que, apesar de exaustivamente advertidos, cada novo governante petista pensa: “vamos repetir os erros cometidos em outras cidades, porque aqui é diferente e vai dar certo!”. Só que a mágica não funciona... e dá errado de novo! É concentradamente na relação com o funcionalismo público que eles mais se manifestam. Não se trata de querer eliminar o inevitável conflito entre governo e sindicato nas negociações trabalhistas porque, como diz o governador Cristovam: “O dia em que um governo atender todas as reivindicações do sindicato de servidores, ou ele é ruim ou o sindicato é ruim. Ou ele é ruim porque está gastando todo seu dinheiro para pagar salários ou o sindicato é pelego e está deixando de reivindicar.” Mas, admitindo-se o conflito, haverá algum governo petista que tenha uma relação e um índice de aprovação ótimos entre os funcionários públicos?

Brasília também repete a dose. Berger nos conta como surgiram os problemas: “Na campanha eleitoral, a gente criou uma expectativa grande junto ao funcionalismo. O movimento sindical por sua vez aguardava que atendêssemos todas suas reivindicações não ao longo do mandato, mas sim nos primeiros dias.” Assim, no início do mandato, e com base no raciocínio de que saúde e educação são prioritárias, foi dado um aumento significativo apenas para os servidores dessas áreas.” Cristovam afirma: “Eu dei reajustes que hoje estou convencido que não podia ter dado”.

O peso da folha de pagamento no orçamento, que era de cerca de 67%, hoje passou para 82%. Berger conclui que o erro principal foi de uma estratégia equivocada. “O governo concedeu aumentos e benefícios sem que houvesse qualquer movimentação entre os trabalhadores. Isso fez com que o movimento sindical recebesse aquilo como uma coisa dada, um ponto de partida para começar a conversar, e aí não teve a continuidade. Não se valorizou a liderança sindical, nem a organização dos trabalhadores e não se construiu o processo dialético do diálogo. O outro erro foi ter restringido o aumento a algumas áreas, deixando outros setores sem nenhum reajuste durante todo o governo. Isto gerou descontentamento em quem recebeu, porque achou pouco, e muito maior entre os que não receberam...”

De fato, enquanto os servidores da saúde, educação, segurança e das autarquias e empresas mistas tiveram aumentos variáveis entre 21% e 54%, os demais servidores da administração direta (em torno de 50 mil) não tiveram nenhum reajuste durante o governo. Numa cidade-estado com um milhão de eleitores, em que cerca de 400 mil são funcionários públicos ou seus dependentes, dá para imaginar o peso que o descontentamento dessa categoria pode ter na imagem do governo...

Relações políticas internas

Se o GDF repete os erros petistas na relação com o funcionalismo público, no entanto as relações internas ao partido e à Frente Brasília Popular se encontram em outro patamar, longe das brigas fratricidas que aniquilaram gestões petistas em outros municípios. É verdade que há problemas. James Lewis (PSB), por exemplo, se queixa de que “o PT tem uma cultura que cultua a imagem de que ele é mais de esquerda, melhor do que os outros. Isso gerou uma série de conflitos absolutamente desnecessários que atrapalharam muito a gestão. As pesquisas mostram que grande parte da rejeição ao nosso governo vem da imagem de brigas internas que foram levadas para fora de forma desastrada, trazendo uma sensação muito grande de insegurança à população. Isso não é democracia. Democracia pressupõe uma tolerância que às vezes não existe.” No entanto, de forma geral, esses conflitos não chegaram a ameaçar a unidade partidária e da Frente.

Chico Vigilante conta que “no início foi difícil, porque o governador tinha certo medo da população achar que o partido estava mandando nele. Por sua vez, o partido achava que o governador não o estava ouvindo. Mas num processo de discussão, com muita unidade interna, conseguimos superar todas as dificuldades. Fizemos um giro com o governador e o secretariado com os filiados do PT em todas as cidades. Na primeira rodada, em 96, participaram desses debates mais de 3 mil petistas. E em 97 repetimos a dose.” Hamilton Pereira acrescenta: “Muitas vezes se lançou pela imprensa que o Vítor Buaiz e o Cristovam eram a mesma coisa. Não são! Nem o PT do Espírito Santo é igual ao PT de Brasília. Há um elemento-chave aqui que levou a uma situação completamente distinta: o Cristovam resolveu enfrentar o debate com o PT. Ele tem um traço até de personalidade, que é a ousadia no enfrentamento do debate teórico. Eu sou testemunha. Participei de diversos debates nas cidades, em que o governador ficava até de madrugada com a militância, discutindo. Eu nunca vi no PT um grau de liberdade de expressão e crítica diante de uma figura pública do partido como aqui. Assim, eu acho que se construiu um padrão de relacionamento governo/partido de respeito e de convivência com contradições naturais.”

Na Câmara Legislativa, a situação também está muito longe de ser crítica. A presidente Lúcia Carvalho nos relata que: “apesar do PT só ter seis parlamentares num total de 24, o bloco governista tem dez parlamentares e a oposição também. Há quatro que flutuam. Não é uma Casa difícil. Se o governador se dedicasse um pouquinho mais à relação com a Câmara – que melhorou muito neste último ano – ele teria a maioria.”

Nessa correlação de forças, o PT conseguiu por duas vezes obter a Presidência da Casa, primeiramente com Geraldo Magela e agora com Lúcia Carvalho, que declara: “Há uma grande habilidade da nossa bancada. Cinco dos nossos deputados estão em segundo mandato e conhecem todos os trâmites parlamentares. É essa experiência, e mais o trabalho conjunto entre a Presidência da Câmara, a Liderança do Governo e a bancada governista que fazem com que consigamos vitórias importantes. Temos uma Mesa colegiada formada por um representante de cada partido e nunca houve denúncia por parte da oposição de favorecimentos.”

Perspectivas

O GDF conseguiu em três anos de mandato desenvolver projetos sociais importantes. Para Cristovam, “até 94, o noticiário sobre Brasília era sobre corrupção. Hoje, o noticiário, até no exterior, é sobre bolsa-escola, poupança-escola, agroindústria familiar, enfim, sobre o que a gente chama de as idéias criativas implantadas no Distrito Federal.”

Além disso, a recuperação da cidadania é outro ponto importante por todos ressaltado. Hamilton Pereira comenta: “Brasília tinha um dos trânsitos mais violentos do país. Avenidas amplas, com um volume até pouco tempo atrás pequeno de carros para o espaço. Quando o governo lança a campanha da Paz no Trânsito e institui a faixa para pedestre, a população acolheu de maneira absolutamente excepcional, mostrando que há uma abertura da sociedade para o novo.” Para James Lewis “esse governo aumentou a auto-estima da cidade. Esta campanha de Paz no Trânsito acabou tendo uma dimensão cultural, antropológica, muito superior a uma mera questão de trânsito.”

Tudo isso tem se refletido numa melhora na avaliação da imagem do governo que, nas últimas pesquisas, atinge índices de aprovação de cerca de 2/3. Mas, apesar disso, quando se fala em intenção de voto para as próximas eleições, Joaquim Roriz aparece muito à frente de Cristovam. Como explicar? Lúcia Carvalho considera que “Brasília está vivendo um momento muito importante e a gente sente que o brasiliense recupera o orgulho da cidade. Mas o governo cometeu três erros importantes. O primeiro foi não ter conseguido manter a Frente Brasília Popular unida. Nós perdemos o apoio do PSDB logo no início do governo e agora o do PPS. Em segundo lugar, a relação com o movimento sindical foi muito complicada. E, por último, não conseguimos passar para a massa as experiências boas.”

Já para a vice-governadora Arlete Sampaio “há um problema de comunicação social, que não diz respeito apenas à ação da Secretaria de Comunicação e sim a uma postura que o governo como um todo deveria ter. “Nosso governo é extremamente bem-sucedido do ponto de vista administrativo, mas do ponto de vista político ele deixou algumas lacunas importantes. Nós sucedemos um governo populista, que distribuiu lotes para a população, criando uma imagem de que se preocupava com o povo. Por mais que hoje estejamos fazendo inúmeras obras de infra-estrutura que beneficiam esses assentamentos, não o fizemos dialogando e estabelecendo uma relação política com a população. Fizemos muitas obras, mas poucos gestos políticos.”

Há sem dúvida um problema de falta de maior visibilidade na ação do governo. Os programas sociais do GDF são exemplares. Mas sua abrangência ainda é pequena. Nesse ano no entanto todos os domicílios de Brasília deverão estar ligados à rede de água e esgoto, transformando o pedaço de terra que Roriz deu em residências dignas desse nome. E duas grandes obras, que atingirão quase todo o conjunto da população, deverão ser inauguradas: a nova rodoviária do Plano Piloto, terminal dos ônibus que fazem a ligação entre este e as cidades-satélites, e o metrô, que tinha sido paralisado pelo governo anterior. São obras que sem dúvida ajudarão muito a dar a visibilidade que falta à ação de governo. Não é à-toa que a direita local vem lutando na justiça para embargar a obra da Rodoviária.

Nas eleições, Cristovam Buarque enfrentará desta vez o próprio Roriz, e provavelmente o senador José Roberto Arruda, pelo PSDB. Disputa dificílima, mas não impossível. E essencial para consolidar um projeto assim definido pelo próprio governador: “Somos, junto com outros governos, a vanguarda de uma geração propositiva e globalizante. Globalizante não significa abrir mão das características de classe. Mas significa conviver com as outras classes. O PT tem que ser a ponte entre os excluídos e os trabalhadores do setor moderno, sabendo conviver com os empresários, já que estamos num sistema capitalista. Isso é o que a gente vem fazendo aqui.” Sem dúvida, dar continuidade a essa experiência é possível, e essencial.

Notas

BOLSA-ESCOLA

A bolsa-escola assegura um salário mínimo a cada família carente que tenha todas as suas crianças entre 7 e 14 anos matriculadas na escola pública. São critérios para recebê-la:

- a renda per capita mensal da família deve ser igual ou inferior a meio salário mínimo.

- todas as crianças da família devem ter uma freqüência mensal mínima às aulas de 90%.

- a família deve residir no Distrito Federal há pelo menos cinco anos.

- se existir algum membro adulto da família desempregado, ele deverá estar inscrito no Sistema Nacional de Emprego – SINE.

O programa atingiu, em 1997, 44.382 crianças de 22.493 famílias, com um gasto de R$ 32 milhões, ou seja, menos de 1% do orçamento do Distrito Federal. Com esse programa, a evasão escolar, que era de cerca de 10% em 1994, caiu para 0,4%.

POUPANÇA-ESCOLA

Funciona como um programa complementar à Bolsa-escola, visando diminuir a evasão e a repetência. O aluno bolsista, a cada ano em que é aprovado, tem depositado em uma conta especial o valor de um salário mínimo, que será aplicado no Fundo de Solidariedade do Distrito Federal (Funsol). Após completar a quarta e a oitava séries do primeiro grau, o aluno poderá sacar metade do valor depositado na poupança. Na conclusão do segundo grau, o saldo é liberado integralmente. Se o aluno for reprovado por dois anos consecutivos, será eliminado do programa e o saldo revertido para o governo.

O programa custa 10% do custo médio anual de um aluno na rede pública, o que faz com que, ao reduzir significativamente a repetência (caiu de 29,8% em 94 para 16,45% em 97), represente uma economia considerável para o governo, além do ganho social e educacional.

SAÚDE EM CASA

As famílias atingidas por esse programa recebem regularmente a visita de equipes de saúde, treinadas para prestar serviços básicos na área a todos os membros da família, diminuindo sua necessidade de deslocamento aos hospitais e centros de saúde. Cada equipe, sediada numa Unidade de Saúde em Casa, é composta por um médico, um enfermeiro, três auxiliares de enfermagem, quatro agentes comunitários de saúde e um auxiliar de serviços gerais, e cobre uma região com cerca de mil famílias.

Esse programa já está implantado em onze regiões atingindo, através das 101 equipes da Secretaria de Saúde, cerca de 800 mil pessoas.

MALA DO LIVRO

Consiste em mini-bibliotecas (caixas-estantes), instaladas em residências de Agentes Comunitários de Leitura, para empréstimo de livros à vizinhança.

Cada biblioteca domiciliar tem um acervo de cerca de 150 volumes, composto de: livros didáticos e de apoio escolar, literaturas infantil, brasileira e estrangeira.

Os livros são emprestados por sete dias. A cada dois meses, as caixas-estantes são trocadas, dando novas opções de leitura.

O programa já tem quinhentas “malas do livro” atingindo um universo de cerca de 50 mil pessoas.

O objetivo é dobrar esse número até o fim do governo.

BRB-TRABALHO

Seu principal objetivo é democratizar o acesso ao crédito e aos serviços bancários, beneficiando microprodutores rurais e urbanos, como artesãos, feirantes, pequenos prestadores de serviços e trabalhadores do setor informal, bem como cooperativas e microempresas.

O teto do valor financiável é de R$ 5 mil por pessoa e de R$ 25 mil no caso de formas coletivas de produção e trabalho. Estes recursos são destinados à compra de máquinas e equipamentos bem como ao financiamento de capital de giro. O programa presta também assessoria empresarial e promove cursos para a capacitação técnica e gerencial dos beneficiados.

Para se candidatar ao crédito, o interessado precisa residir no DF há pelo menos cinco anos, ter experiência na profissão ou empreendimento a que se candidatou, não ter nenhum tipo de restrição cadastral e apresentar um avalista nas mesmas condições.

Quando o cadastro é preenchido, um agente de crédito da Secretaria do Trabalho vai visitar o candidato para verificar as condições de produção, a qualidade do produto/serviço e as expectativas de geração de emprego. Após a visita, o Comitê de Crédito aprova ou não a solicitação, com base no laudo apresentado pela Secretaria do Trabalho. Nas datas previstas, o beneficiado deposita, em qualquer agência do BRB, o valor da parcela do empréstimo. Ao quitar um financiamento, todo aquele que pagou em dia poderá obter um novo crédito.

TEMPORADAS POPULARES

Iniciado em 1995, o Temporadas Populares leva a todas as cidades do DF, durante os meses de janeiro e fevereiro, artistas locais e nacionais. Este ano foram apresentados 220 espetáculos de música, teatro e dança, com ingressos vendidos a R$ 8,00, que foram assistidos por 100 mil pessoas.

Ricardo Azevedo é editor de Teoria e Debate.