Cultura

Entrevista com o músico Maurício Carrilho

Maurício Carrilho, carioca, 40 anos, nasceu e cresceu dentro de uma família musical, parte do mundo do choro. Suas primeiras influências vieram do pai, músico amador, e do tio Altamiro. Violonista de seis e sete cordas, estudou primeiro com Dino depois com Meira, os quais, juntamente com Canhoto, formaram aquele que ainda é considerado o maior regional de todos os tempos.

Depois de abandonar o curso de medicina, optou pela música. Hoje, conta nos dedos os grandes nomes com quem ainda não tocou. Foi parceiro de palco de Chico Buarque, Radamés Gnattali, Elizeth Cardoso e Paquito d'Rivera, além de ter trabalhado com Tom Jobim no projeto No Tom da Mangueira.

Formou seu primeiro grupo de choro, Os Carioquinhas, em 1977, em companhia de Rafael Rabello (violão de sete cordas) e Luciana Rabello (cavaquinho). Quando o viu tocar, Rafael lhe disse: "eu toco igual ao Dino, minha irmã toca igual ao Canhoto, você toca igual ao Meira; a gente vai fazer o melhor regional da nova geração".

Em 1979, Maurício passou a trabalhar sob a orientação de seu segundo mestre, Radamés Gnattali. Com a nova geração do choro, Radamés se propôs a criar um novo padrão de execução, um grupo de música instrumental que combinasse a espontaneidade da tradição do choro com a qualidade técnica e o equilíbrio da música de câmara. O próprio nome do conjunto (dado por Hermínio Bello de Carvalho) sintetizava a idéia: Camerata Carioca. Esta viria a ser provavelmente a principal linha de modernização do choro, tardia em relação à modernização da canção empreendida pela bossa nova. A qualidade da formação musical da nova geração de chorões tornava possível este ideal.

E assim, depois de alguns anos de certa estagnação, as formas tradicionais do choro renascem com nova roupagem. A carreira musical de Maurício Carrilho, como intérprete ou como arranjador, desenvolve-se a partir de então associada à proposta estética da Camerata Carioca. Esta experiência tem tudo a ver com a formação que o empolga atualmente, O Trio, que mantém com Paulo Sérgio Santos (clarinete e sax soprano) e Pedro Amorim (bandolim).

Continuando a série de entrevistas sobre música, conversamos com Maurício Carrilho sobre a música brasileira, o choro em particular.

Como foi estudar com Meira?

Foi o melhor que poderia acontecer a um menino apaixonado por choro. Altamiro vivia falando para meu pai: “Dino é um grande músico, mas o professor é o Meira! Leva o Maurício para estudar com ele”. O Meira já havia dado aulas ao Baden Powell e a outros grandes violonistas. Assim, com mais ou menos 13 anos fui estudar com ele.

O Meira foi o meu grande mestre de violão. A aula dele era um exemplo de ensino moderno. Tinha teoria musical e leitura durante uma hora, e em seguida ele pegava o violão e falava: "agora vamos tocar". Aí deixava as partituras de lado e começava a tocar todo tipo de música, e eu tinha que acompanhar instantaneamente, sem nada escrito, e harmonizar aquelas melodias. Saía de tudo: tango, bolero, bossa nova, choro, valsa, um exercício de percepção e de harmonização fabuloso.

Essa experiência me qualificou musical e profissionalmente. Muitas vezes já toquei com outros músicos sem nenhum ensaio, às vezes músicas que nunca tinha ouvido, e sempre acompanhei na mesma hora.

E a experiência com Radamés?

Na Camerata Carioca eu me deparei com dificuldades que ainda não tinha resolvido. O Radamés escrevia coisas elaboradas, tratava o violão num conjunto de choro como instrumento solista de um grupo de câmara. Então, precisei estudar um pouco de técnica e o fiz com o João Pedro Borges, que era professor de uma escola dirigida pelo Turíbio Santos.

Você freqüentou escolas de música?

Depois que deixei a Faculdade de Medicina, entrei na Escola Nacional de Música para estudar composição. Eu era um músico profissional e queria ser compositor, mas a última coisa em que se falava no curso era de composição. Isso só seria abordado depois de três anos de escola. Ficava estudando harmonia clássica, coisas muito distantes do que eu precisava. Eu já tinha músicas compostas, queria me aprimorar. Em 77, era proibido tocar violão na Escola Nacional de Música! Se vinha alguém com um violão o inspetor da escola falava: "violão aqui não pode, não!".

No ano seguinte deram um diploma de doutor honoris causa para o Turíbio Santos e, com ele dando aula, foi aberto o curso de violão clássico. Um ano antes os irmãos Assad, que formam hoje o maior duo de violões do mundo, estudavam na escola mas não podiam tocar lá dentro. O violão, instrumento básico na nossa música, era tratado como indigno. Em 1980, mais ou menos, o Roberto Gnattali começou a dar aula na Uni-Rio e aí deu origem a uma semente para o curso de música popular de nível superior. Assim fui estudar na Uni-Rio. Quando entrei, já tinha feito um curso de dois anos com o Ian Guest, um húngaro naturalizado brasileiro, grande professor, e vi que ali era tudo muito devagar. Saí de novo.

Estudei nas principais escolas de música do Rio e não completei nenhum curso porque nenhum deles me dava nada de novo. Tudo que aprendi foi com o Meira, o Radamés, com os músicos com quem trabalhei e com o Ian Guest, que transformou a bagunça do meu conhecimento numa coisa organizada.

A sua experiência é mais como integrante de grupos de música instrumental ou como acompanhante?

As duas coisas. Toquei com vários instrumentistas e também no acompanhamento de muitos cantores e cantoras. E tenho experiência como arranjador. Mais da metade dos trabalhos que faço hoje são de arranjo. Só em 97 trabalhei como arranjador do Zé Renato, Elton Medeiros, Olívia Byington, Miúcha, Chico Buarque, João Nogueira, Lecy Brandão, Cristina. No disco Chico Buarque da Mangueira fiz arranjo para uns cinco participantes. Em 20 anos de profissão, a coisa mais importante que fiz foi aplicar a brasilidade do que aprendi nos trabalhos que faço. Em nenhum momento toquei buscando outro sotaque. O Trio, por exemplo, gravou Piazzolla e Scott Joplin, por considerar que essas músicas têm profunda relação com a gente. São músicas irmãs com as quais queríamos registrar essa afinidade. As músicas instrumentais da Argentina, dos Estados Unidos, da Colômbia, da Venezuela, do Caribe, nasceram na mesma época que a nossa, de origens muito parecidas, e por isso têm tudo a ver conosco.

Como você definiria o choro dentro da música popular brasileira?

Eu tenho uma definição diferente da maioria das pessoas. O choro é a primeira música brasileira. Não é a primeira feita no Brasil. É brasileira no seu sotaque e na sua concepção. Tínhamos, nos séculos passados, grupos instrumentais estrangeiros que vinham para cá, aquelas missões francesas, orquestras européias maravilhosas. Tinha o Padre José Maurício, que fazia música barroca de alto nível. Mas a sua música estava enquadrada na forma e no estilo europeus.

Da segunda metade do século passado em diante começou a surgir uma outra coisa. Formaram-se as bandas militares e civis com músicos pobres e mestiços. Surgiram também grupos equipados com instrumentos toscos, feitos por eles mesmos – violões, cavaquinhos, violas e alguns instrumentos de sopro. Quando eles começaram a imitar o som que ouviam daquelas orquestras, nasceu o sotaque brasileiro de tocar. Era ainda música européia, mas já com o nosso sotaque. Em seguida, vieram aqueles que foram os mais geniais: Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado e Anacleto de Medeiros. Eles sacaram que os malandros tocavam de forma diferente, com um balanço que não existia na música que vinha da Europa. Era um repertório europeu que soava diferente, porque os instrumentos eram outros e porque estava misturado com ritmos de origem africana. Então, eles começaram a compor um repertório original utilizando esse balanço, e assim nasceu a música brasileira.

Durante muito tempo o choro foi tratado como música de vagabundo. Uma coisa menor, e até o próprio nome sempre lhe foi negado. Ernesto Nazareth chamava de tango brasileiro e assim conseguia entrar nas casas das pessoas, ser aceito pelas famílias, tocado pelas moças prendadas. Chamar de maxixe, choro-maxixe, jamais. Era palavrão. Se não era isso, era aquele tratamento pseudocarinhoso: esse negócio de chorinho. Coisa que não existe porque ninguém fala jazzinho, tanguinho, sinfoniazinha. O diminutivo é pejorativo, preconceituoso, é para diminuir o tamanho daquela que é a grande música do Brasil.

Hoje, todo disco do Hermeto Paschoal tem choro, mas ninguém fala que ele é um músico de choro. Uma análise estética da obra do Tom vai revelar que metade dela é composta de choros. Mas se alguém lhe pedir para citar dez choros do Tom Jobim, você vai titubear.Eis aqui uma lista de 10 choros de Tom Jobim (e ele tem muitos mais): 1. Falando de amor 2. Gabriela 3. Meu amigo Radamés 4. Radamés e Pelé 5. Chora coração 6. Choro 7. Antigua 8. Andorinha 9. Diálogo 10. Tereza, my love. Por que as pessoas só tratam como choro as músicas do Pixinguinha para trás? Por que ninguém fala que Edu Lobo, Caetano, Chico são compositores de choro? O choro é uma linguagem que sempre foi usada pelas pessoas, só que ninguém chama de choro. Com o jazz, qualquer coisa que guarde mínima semelhança é chamado de jazz. Nós mesmos já tocamos choro nos Estados Unidos como brazilian jazz. Jazz do Brasil?!! O jazz é que é o american choro porque o choro é anterior ao jazz! É a mentalidade colonizada. E eles malandramente vão se apropriando do que é bom, enquanto a gente renega o que é nosso o tempo inteiro.

Há uma história muito esclarecedora do Rafael Rabello que eu contei no número zero da revista Roda de Choro. O Rafael contratou uma divulgadora famosa para promover a sua imagem, ainda no começo da carreira como solista. Essa senhora lhe disse: “Só tem uma coisa. Você não pode pronunciar a palavra choro. A imagem do choro é de uma coisa velha e a sua imagem tem que ser jovem. Você tem que usar o cabelo assim, se vestir assim. Pode tocar choro à vontade, mas não pode falar que é choro”. O Rafael riu muito e me disse: “Sabe que eu fiz isso mesmo? Eu tocava as mesmas coisas: João Pernambuco, Dilermando, mas não falava que era choro. Nem citava essa palavra”. E pode estar certo de que este comportamento ajudou na sua projeção como violonista, fora do estigma do choro.

Mas o choro está na obra de todo mundo. Não é uma música que aparece de 20 em 20 anos, em surtos. O que está acontecendo hoje é a retomada de uma linguagem tradicional, da qual as pessoas ficaram com saudades, e começam a ouvir de novo o Jacob, o Waldir Azevedo, o Pixinguinha, e a formar grupos de choro. Mas o choro está rolando o tempo inteiro, na música de qualquer artista brasileiro, tratado às vezes com consciência e outras não. É absolutamente contemporâneo e está presente também na música chamada erudita, na obra dos grandes como Villa-Lobos, Radamés, Mignone e Guerra Peixe.

Para o público, choro é aquela formação: cavaquinho, sete cordas, bandolim etc. Nos anos 50-60 esta formação tradicional – o regional – atrofiou o choro, numa época em que a bossa nova já havia revolucionado a canção. Enquanto o Brasil se modernizava em muitos aspectos, o choro perdia sua antiga criatividade. Veio em seguida o tropicalismo e o choro instrumental continuou meio na contramão. Não é daí que vem esse estigma de música antiga?

Eu não concordo. Houve um acidente de percurso aí. Saiu há pouco tempo um disco do Altamiro, de 1956 ou 57, com as primeiras gravações do Raul de Souza tocando trombone. Naquela época, o choro estava se soltando para a improvisação, como no jazz, e usando diferentes formações. Um outro disco da mesma época chamado Turma da Gafieira, de choros e sambas, vai no mesmo sentido. É com Edson Machado na bateria, Altamiro na flauta, Raul no Trombone, Sivuca no acordeom e Zé Bodega no sax tenor. É uma quebração de pau total. Todo mundo improvisando.

Na verdade, o movimento da bossa nova às vezes é usado como rótulo para vender coisas medíocres. Intocáveis são o Tom e o João Gilberto, que na verdade estavam fazendo o som deles. Não eram parte de movimento nenhum. O João sempre cantou samba daquele jeito, se diz cantor de samba e fica puto quando é chamado para festival de bossa nova. Tom Jobim era um compositor de choros e canções, que tocava piano e fazia arranjo daquele jeito. As influências do Jobim eram o Garoto, o Radamés, a turma moderna do choro, o Villa-Lobos. Ele é absolutamente integrado com a música e com a cultura da sua cidade.

Naquela época o choro estava evoluindo, não estava atrofiado. O Radamés, com seu quinteto, fazia um som moderno. Aquilo teria desdobramentos naturais para outras formações instrumentais e para outras formas de tocar. Mas isso foi cortado pela propaganda desse movimento que radicalizou e passou a renegar e acusar de retrógrado tudo que era ritmicamente complexo. O acompanhamento da bossa nova é uma simplificação extrema do samba, um ritmo que qualquer criança com 15 minutos de treino faz na mão direita. É a lei do menor esforço. Não existe referência para comparação. Além disso, os chorões eram caras feios, o pessoal da bossa nova era bonitinho. É tudo marketing de pessoas que tinham uma situação financeira melhor, que tinham poder.

Mais tarde essa discriminação caiu na chamada Jovem Guarda. E aí aconteceu, por exemplo, que o Dino, um gênio do violão de sete cordas, em 1966 foi tocar guitarra em baile de iê-iê-iê para sobreviver. Essa foi a situação em que os músicos de choro, os craques, ficaram. O Meira dava aula, tocava aqui, fazia uma gravação ali, mas o Altamiro foi morar no exterior. Ficou anos fora do Brasil, no México, nos Estados Unidos, na Europa, porque não tinha como sobreviver aqui. Pixinguinha ficou tomando o uísque dele no Bar Gouveia. Caras que estavam no auge de sua produtividade foram impedidos de continuar a exercer a profissão. Enfim, o choro teria tido um desenvolvimento natural, uma expansão para outras formações instrumentais, se não tivesse acontecido essa ruptura tão violenta do mercado de trabalho e essa discriminação contra os músicos que trabalhavam com essa linguagem.

O "modernismo" da Tropicália abraçou a Jovem Guarda, aquela pobreza de movimento, uma idiotização do povo. A crise da música brasileira começou ali e a Tropicália deu força para isso. Aliás, o comportamento da turma da Tropicália é sempre dúbio. Eles não têm uma posição estética clara. É o que acontece hoje. Será que todo mundo que está tocando rock no Brasil é talentoso? Por que a moçada está tocando rock? Você aprende três acordes e toca um repertório imenso de rock e com três acordes não se toca nenhum choro. É natural que a moçada se acomode. Além disso, a rapaziada ouve rock em rádios e TVs o dia inteiro. Não se toca outra coisa. Hoje há quase que uma censura estética, um negócio pesado. Na época da ditadura era proibido falar de algumas coisas, mas você podia tocar a música que quisesse. Hoje não, só toca no rádio a música que eles querem. É muito pior, é uma ditadura estética muito mais violenta do que na época do militarismo. Não tenho nada contra o rock nem contra nenhuma manifestação musical, mas acho um absurdo só ter dança do bumbum tocando no rádio o dia inteiro, mesmo porque através do rádio se perde o melhor dessa música.

Como foi possível, nesse contexto, surgir uma geração nova com figuras como você, Rafael Rabello e outros?

A minha geração teve a felicidade de, nos anos 70, viver uma retomada. Houve a formação de vários regionais: Anjos da Madrugada, Galo Preto, Os Carioquinhas. Isso em uma época em que os velhos ainda estavam vivos: Meira, Canhoto, Abel Ferreira, Waldir Azevedo, Dino, Copinha. Hoje, só resta o Dino. Mas em 70 tinha uma galera de músicos antigos com os quais tocávamos, no Suvaco de Cobra. Era uma universidade aberta. Chegávamos e tocávamos com os maiores mestres do choro, vendo como eles faziam. Cada um apresentava um choro novo e nosso repertório ia aumentando. Época muito fértil, que formou uma geração de chorões, a última formada nos velhos moldes.

Foi aí que começou a estória da conscientização para o estudo sistemático da música. Os velhos músicos do choro em geral eram intuitivos, muitos não sabiam ler música. Só havia uma forma de aprender: de ouvido. Hoje, a moçada tem formação, é melhor preparada tecnicamente, acaba usando menos as orelhas e vai mais à partitura. Com isso se teve vantagens, mas por outro lado o ritmo, não só do choro, mas do samba e de outros gêneros, começou a ficar simplificado e quadrado. Aquelas sutilezas impossíveis de se escrever no papel foram se perdendo.

No caso do jazz, as big bands, que reuniam grandes músicos, dominavam o mercado nos anos 30 e 40. Mas eram conjuntos numerosos e os cachês eram altos. Então, depois da guerra, a indústria fonográfica investiu nos cantores e cantoras e passou a contratar músicos mais baratos, menos qualificados, para o acompanhamento. Foi uma vitória da canção sobre a música instrumental, que trouxe até uma vantagem para o jazz: forçou a absorção dos músicos das big bands pelas universidades para ensinar. Será que não aconteceu algo parecido aqui nos anos 50 e 60, associado à ascensão do rádio e à hegemonia das cantoras, levando à transformação dos chorões em acompanhantes?

Sim, houve, mas nessa época os músicos de choro não viraram acompanhantes porque as cantoras e cantores que eles acompanhavam nas rádios também foram discriminados, varridos do mercado. Por exemplo, Araci de Almeida, Elizeth Cardoso, Nelson Gonçalves, Orlando Silva. Por discriminação, viraram "velha guarda".

O mercado fonográfico brasileiro é discriminatório e dominado por inimigos mortais da pluralidade. Eu, por acaso, fui parar nas casas do Dino e do Meira e tive aula com eles e é por isso que sei tocar choro e que hoje tenho um lugar no mercado muito especial, uma espécie de mico-leão dourado, tipo em extinção que todo mundo quer ver. Se alguém precisa de um balanço brasileiro tem que me chamar, eu e mais uma meia dúzia. Mas hoje precisamos criar uma universidade de verdade, mesmo porque de um tempo para cá começou a ser rompido o preconceito contra o violão, ainda que no Brasil eles permitam só o violão clássico nas escolas de música. Não existe ainda uma cadeira de violão popular. Nós temos violonistas populares reconhecidos no mundo inteiro, como Baden Powell, Luiz Bonfá, Rafael Rabello e outros, mas não os temos nas escolas. Violão clássico tem em qualquer universidade. E qual é o mercado de violão clássico no Brasil? Perto de zero, enquanto o mercado de violão popular é enorme. Todo conjunto tem violão. Então, fica um monte de gente tocando violão mal e um monte de concertistas desempregados.

Temos que juntar as coisas, aproximar a técnica do violão clássico à música popular para elevarmos seu nível. E isso só com escola. Se ficarmos esperando alguma atitude dos que dirigem o mercado fonográfico, estaremos fritos. Eles só pensam em ganhar dinheiro rápido, e quanto pior for a música, melhor para eles. Música ruim é mais fácil de repor. O músico começa a exigir muito, eles descartam, inventam outro conjunto igual, tem uma fila de covers esperando. Agora, onde eles iriam arrumar um outro Chico Buarque?

Você vê alguma coisa nova acontecendo no ensino de música?

Vejo. Vai sair um curso na Uni-Rio, o primeiro no Brasil, de formação em música popular. O cara vai treinar improvisação, harmonização etc. Tem ainda o projeto de uma Escola de Choro, em Brasília, que será a primeira do gênero no Brasil, tem o Conservatório de Curitiba que, além de todo o trabalho que faz durante o ano, realiza a grande oficina no início do ano, trazendo músicos do Brasil inteiro.

A música do choro e do samba não pode ser totalmente organizada, tem que ter liberdade, tem que tocar errado e consertar na segunda vez. Tem uma outra maneira de fazer, o seu próprio jeito. Nenhum violonista de seis cordas toca igual ao outro. O músico popular tem que descobrir a sua própria forma de tocar, mas tem que ter uma referência, escolher uma linhagem e assumir um mestre. É isso que tem que ser levado para a universidade.

É impossível ensinar música popular nos moldes tradicionais. Música popular não é cerebral, você treina para ser espontâneo. A música clássica é cerebral, premeditada, a interpretação é pensada antes, não muda nada na hora de tocar. Mas é impossível usar essa fórmula no choro.

Havia algum ideário na base da Camerata Carioca?

Não, aconteceu naturalmente. Como o Rafael previu, o trio formado por ele, Luciana e eu acabou sendo o mais importante da nossa geração. Tocávamos de uma maneira que as pessoas adoravam, coisa aprendida com os regionais tradicionais e que a gente fazia de uma maneira mais moderna. O Joel Nascimento tinha muita vontade de tocar uma suíte do Radamés chamada Retratos, na qual ele homenageia Pixinguinha, Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Joel insistiu com o Radamés para que ele transcrevesse a parte de orquestra para regional. O Radamés então tratou o regional como um conjunto de câmara e fez polifonia dentro dessa instrumentação. Foi uma coisa inédita. Tocamos o Rafa, a Luciana, eu, o Luiz Otávio e o Celsinho, que também era d’Os Carioquinhas. Então, em 1979, o Hermínio Bello de Carvalho, que era diretor da Funarte, propôs que fizéssemos uma homenagem ao Jacob, celebrando os dez anos da sua morte. E o Hermínio dirigiu um concerto no qual tocamos a suíte Retratos e músicas do Jacob arranjadas pelo Radamés. Fizemos, também produzido pelo Hermínio, o disco Tributo a Jacob do Bandolim.

Assim começamos a aprender. Pouco a pouco, o Luís Otávio e eu passamos a arriscar uns arranjos e a escrever também. Criou-se assim uma escola diferente, um regional com pessoas que liam música com facilidade e com formação técnica melhor que a dos mestres. Além disso, tínhamos à disposição instrumentos melhores. Tudo isso nos dava condições de fazer coisas mais elaboradas. A partir daí, com o exemplo da Camerata, foram surgindo outros grupos com essa linguagem, como Água de Moringa, Nó em Pingo d’Água e outros. Hoje a gente vê a influência desse trabalho no Brasil inteiro. É raro ver um regional formado por jovens tocando como antigamente.

Como foi o surgimento do Trio?

O Trio, que é um terceiro estágio na abordagem do choro, já está fazendo escola também. Esse grupo existe há 11 anos. A gente tocava de brincadeira, em rodas de choro, mas um dia se reuniu para tocar duas músicas do Radamés na homenagem aos 80 anos do velho.

Eu tenho a formação da linhagem dos velhos chorões. O Paulo Sérgio fez música de câmara durante anos e se apaixonou pelo choro. O Pedro Amorim, aos 20 anos de idade começou a tocar bandolim e hoje é um dos maiores bandolinistas do Brasil, grande compositor de choro, que trabalha com acompanhamento e solo. Com essa formação, a gente faz trechos organizados como conjunto de câmara, outros tradicionais, como um regional, e outros improvisados, que ninguém sabe para onde vai e vai todo mundo junto. Essa forma nova de tocar choro surgiu naturalmente. Foi um casamento de algo novo com a tradição. Isso é que é legal. O que existe é a seqüência de trabalho. Você tem que pôr o pé em cima de alguma coisa, pisar no chão, que é a sua tradição, e se trabalhar vai chegar uma hora em que estará fazendo algo diferente, naturalmente. Não tem que tirar nada da cartola.

É verdade que existem grupos de choro em Tóquio?

Tem o Chen Ribeiro, o Choro Club, com Sasago e Akioka, o Suvaco de Cobra, que já é a segunda geração de choro japonês, uma moçada de 20 anos, e vários outros. E tem choro nos Estados Unidos, na Bélgica, na França, na Alemanha, na Dinamarca, em Portugal.

Eles tocam de maneira diferente da nossa?

Não muito. No Japão, o Choro Club, um trio, conseguiu assimilar nossa linguagem com mais fluência. O Sasago, violonista do grupo, viveu um ano no Brasil, fala bem o português, morou na minha casa, somos até compadres. Já em outros países eles não tiveram essa experiência, fica mais complicado, mas fazem coisas bonitas com o repertório.

Você diz num artigo na revista Roda de Choro que a principal característica do choro é a profunda integração entre melodia, ritmo e harmonia. É isso mesmo? Como você vê a improvisação nele?

Essa história de principal característica do choro foi uma resposta que dei a um leitor da Roda de Choro. Ele dizia que, no choro, ao contrário do que ocorre na bossa nova, "o compositor objetiva em primeiro lugar a elaboração de uma melodia e apenas secundariamente evidencia uma preocupação com harmonia". Isso é uma tremenda bobagem. Respondi que melodia, harmonia e ritmo caminham e evoluem integradamente no choro, o que não impede um eventual destaque, em alguns momentos, para qualquer um desses elementos. Porém, o que caracteriza realmente o choro é o ritmo. O ritmo é que caracteriza a regionalidade da música. Quanto à improvisação, cada músico tem um jeito diferente de fazê-la. Nos Estados Unidos, quando os jazzistas foram para dentro das universidades, os músicos começaram a copiar seus improvisos e arranjos. O resultado foi transformado em material de estudo. Lá eles ensinam arranjo, por exemplo, em cima da obra de Duke Ellington. Estuda-se improvisação analisando os improvisos dos grandes mestres.

O choro não chegou a esse nível. A gente adquire seu vocabulário de ouvido, memoriza frases e usa no improviso, cada um de um jeito. Mas a improvisação do choro é tão livre quanto a do jazz. O Hermeto entorta bastante, faz loucuras; o Tom Jobim fazia um choro mais comportado; o Armandinho coloca um sotaque meio pop. E todos estão tocando choro. Um dia vai nascer alguém que irá além de tudo que já se fez. Não tem nenhuma proibição, balizamento, regras. Só tem que dar o sabor do choro. Para não deformar, tem que guardar a alma, conhecer sua cultura, dominar a tradição, senão vira outra coisa. É isso, aliás, o que está acontecendo. A moçada está sendo formada com uma música que não tem nada a ver com a nossa. A criança ouve Xuxa no jardim de infância, chega em casa tem o Tchan na televisão. Vê os piores conjuntos do Brasil no programa do Faustão!

Este não é problema que escola de música resolva. Há um trabalho a ser feito na escola de música, mas há outro a ser feito na escola primária, em casa, nos meios de comunicação: botar as crianças para ouvir o que presta. Aí, os idiotas da objetividade, como diria o Nelson Rodrigues, vão questionar: "e o que presta?" Os indiscutíveis prestam: Villa-Lobos, Pixinguinha, Chico Buarque, Tom Jobim, Capiba, Luiz Gonzaga.

Ozeas Duarte é secretário Nacional de Comunicação do PT.

Paulo Baía é economista e professor na PUC-SP.