Cultura

Diário das férias na praia - um relato poético

"Nada, nada dificulta tanto o conhecimento quanto a persistência desse azul."

André Gide, via Geraldo Carneiro

Dia 15 de janeiro de 1998

Saindo de férias. Fugindo de férias pelas estradas furiosas do verão. Quem buzina assim, altíssimo, contra a lataria, só pode ser o sol. Há, ainda, uns restos de Natal no ar - esfarrapados vermelhos. E à noite as mil e uma luzinhas recortam árvores, casas. Na verdade, já não celebram mais nada; foram esquecidas aqui e ali. Algumas, cansadas, entraram em curto e falham, epilépticas. Ninguém dá mais a mínima para o surto de sua alegria programada. Pisca-pisca, espasmo, vale-tudo, e nada.

Dia 20 de janeiro de 1998

Dias longos. Todos os viadutos levam para o mar, empapado de gente. Os corpos de cada um, com minúcias, poro por poro. Alguns, tão belos, chegam a doer. Nada pode durar muito neste estado de perfeição e equilíbrio. Alguma coisa, de repente, vai resvalar e ferir fundo a pele desses deuses. O menor deslize, perante tanta beleza, já é uma ruína. Eu, que de há muito desci, desistido, pelo outro lado da pirâmide - eu que estou na sombra - olho do chão do deserto, para o ápice, para o vértice. O tempo de vida ali, sem vestígio de vertigem - o que corromperia a graça inefável - no ar rarefeito dos eleitos, é mínimo. Mas como esplende e respira! Rio, por dentro, enrugado, morrendo de inveja. Desejo e raiva de ser tudo o que nunca consegui naquele cume, na ponta do trampolim, mesmo com a piscina sempre vazia. Um corpo com tanto apuro não deve precisar de alma a postos. Espreito, com paixão, mas sem sexo, sua coreografia natural. Não quero entrar por dentro dela, chupando tudo o que tiver que ser chupado, lambendo o suor do torso impecável, que deslumbraria Rilke. O que eu queria era não ser não "o ópio de uma outra pessoa qualquer", mas ter e ser o sal desta, precisa e intensa.

Dia 24 de janeiro de 1998

Com a barba por fazer. Já que não posso voltar o filme para trás vou em frente contando, contando dias. Não, não é como estar preso. É como estar perdido e solto e sobrando, em cenário provisório, para sempre. Crusoé com sua palmeira. Filho único, não tenho direito nem a Caim. Rosto cerrado que se espeta. O vigor que resta é este, que cresce até depois da morte e chega à flor da pele, grisalho. Se os espelhos não mais respondem, se o narciso quebrou para nunca mais, nada melhor do que isso: fundo infinito sem referência e nenhum compromisso com a própria imagem. Não aparar mais nada, não se deter, sentir o tempo todo o tempo passando. E ir na correnteza, sujo de mim mesmo, suado, usado.

Dia 28 de janeiro de 1998

Bem que eu poderia ter escolhido outra estratégia para estas férias. A de M. Hulot, por exemplo, nas suas vacances memoráveis, tão alegre, na ponta dos pés, incólume. O hotel em que ficou - nas férias de um verão dos anos 50 - foi completamente bouleversado na sua rotina. Ele era também um Crusoé. Só que inconformadíssimo. Queria interagir, era gregário, engraçado, carinhoso no ponto certo, jamais açucarava. Não foi compreendido, mas se divertiu a valer. Melhor: foi compreendido sim, por um menino. Eu, se tivesse "um pouco de asa", poderia compreender o que é ser compreendido. Tinha um menino ideal à mão, meu filho, o coração do meu filho. Mas não brinquei o suficiente com ele, apenas o via, de relance, na outra margem do mar, da piscina. O amor sentia era tão tocante que envenenava. Amor desse tipo. Com essa força, prepara a gente para matar e morrer, como o Steiner na Dolce Vita, penso entredentes. Sinto que não aproveito a vida de C. completamente. Sinto que o vou perdendo - areia, água por entre os dedos - sinto que o desperdiço. Mas quem poderá segurar, sem queimar as mãos e o resto, a juventude externa - forever young - que toca, toca na rádio?

Dia 29 de janeiro de 1998

Chuva. Se, para mim, "estar de férias" é um sentimento perdido, enterrado na infância, agora sem o sol funcionando nesse balneário, tudo parece falsear. Exílio dentro do exílio. Sensação aflita, claustrofóbica, de tédio e náusea, como quando se interfere no cara a cara de espelhos: a gente se repete sempre e sempre. OU a de quando se vê a ilustração que reproduz a figura de alguém olhando a capa de um livro que traz estampada nela a mesma imagem e, assim, sucessivamente, cada vez menor, até o infinito. Interrompo o devaneio para ver, por antecipação, o que não quero: como deve ser esse lugar álacre, fora de temporada. Vazias, a praia e a piscina. Nenhuma bola multicor. Nenhum grito. Um dia depois do dia D, domingo. As cadeiras caem de costas empurradas pelo vento e ninguém as socorre. Uma, única, caiu dentro da piscina e por lá ficou, náufraga, abstrata, absurda. O mofo, as traças, a umidade -seculares - já atacam os tênis e as roupas desmaiadas nos armários que estalam, se empenando. Sou o sobrevivente deste front. Anoto com mão tremida e urgente o que não aconteceu. O estilo, então, teria que ser mais sincopado ainda, estilo de guerra, na trincheira, telegráfico. Mas é melhor parar de tentar construir este dia de desvios, este dia pelo avesso.

Dia 1º de fevereiro de 1998

Escrevo ao léu. Todo o diário é forjado. Mistura veracidade e verossimilhança. Acredite, se quiser. O clima deste quer ser marinho. Mas o que vem à tona nem é tanto o mar nem é tanto à terra. Passa-se numa zona intermédia. Tem algo do ar de incerteza da foto que está em cima da escrivaninha de um filme dos irmãos Coen: uma mulher, de costas para o foco, numa praia, embaixo de um guarda-sol, diante do horizonte. A fotografia é, ao mesmo tempo, banal e perigosa. É, principalmente, inatingível, seja o que for o que venha pela frente. Talvez um dia perfeito para peixes-banana ou uma armadilha para Lamartine. O fato é que escrever, às pressas, por encomenda, pode acabar soando falso demais. Gostaria de de ter dito, enfim, isso que vai aí, se fosse possível, superpondo pensamento e murmúrio com a boca colada a uma orelha cor-de-rosa. Uma orelha que poderia ter o formato da concha dessa cor que a minha mulher me deu nos últimos dias. Concha que colada ao meu ouvido era muda, apenas bela. Guardei-a com o colorido de seu pôr-do-sol particular na gaveta da mesa de cabeceira. Ela vai esmaecer, desistir. Ainda bem que pude sentir o calor do seu momento perfeito. O rosto está quase todo tomado pela barba. Mais ainda não mereço a palavra hirsuto. O velho e o mar. Só que este aqui sonha com  leões.

Armando Freitas Filho é poeta, autor de vários livros, entre eles Duplo cego (Nova Fronteira, 1997)