Nacional

Pesquisas realizadas pelo Datafolha em 1989 e pela Fundação Perseu Abramo em 1997, revelam que é falsa a idéia de que o jogo político-eleitoral em curso tem como alicerce uma cultura política democrática consolidada

Os temas políticos da democracia parecem secundários para a eleição presidencial deste ano. Afinal, já se vão quase 15 anos do fim do último governo militar, estamos diante da terceira eleição direta para presidente da República em menos de uma década e, sobretudo, não há nuvens no horizonte que apontem o risco de retrocesso a um regime que, ao menos no plano formal, negue o Estado de Direito, suprimindo as liberdades individuais e políticas. É como se depois de concluída a longa transição da ditadura para a democracia, com as diretas em 89, vivêssemos uma democracia política sobre bases firmes de uma cultura política democrática. Fala-se em reforma do sistema político e há vários projetos sobre isso, inclusive do PT, mas o objetivo da reforma seria fazer ajustes e aperfeiçoamentos em um desenho institucional que, na maior parte das vezes, é considerado como pronto em sua essência.

Reforçando a idéia da subalternidade da questão política nestas eleições, há uma confluência de pelo menos três fatores que contribui para tornar óbvia e quase obrigatória a centralidade do tema da democracia social na agenda da sucessão presidencial. Primeiramente, o acúmulo da demanda popular por bens básicos, expressão das carências objetivas que marcam, desde sempre, as condições de existência da maioria dos brasileiros. Em segundo lugar, o fracasso (ou inexistência?) da política social do governo Fernando Henrique. Tendo a própria campanha que o elegeu em 94, com o aceno dos cinco dedos, ajudado a exacerbar as expectativas de avanço no campo social, agora ele caminha para o final de seu mandato com resultados pífios (educação e reforma agrária) ou negativos (emprego, saúde e segurança), restando para a campanha de sua reeleição reprometer o que não cumpriu, tentando convencer que o rumo está correto e que basta nova chance para provar sua sensibilidade para o trato da questão social, até agora não priorizada. Finalmente, há a tradição do pensamento político no campo da esquerda, tanto marxista como social-democrata – de que a maior parte dos partidos e forças que ora compõem a aliança anti-FHC é herdeira –, de conceber a democracia privilegiadamente como realização de justiça social (com ênfase em um Estado dirigente, planejador e compensatório), deixando para segundo plano – e para a tradição política liberal – o tema da liberdade.

Soma-se ainda a este último ponto o fato de a identidade da esquerda, e do PT em particular, estar fortemente associada à "defesa dos mais pobres", um patrimônio construído ao longo de sua trajetória de lutas, extremamente importante, que certamente não pode ser deixado de lado. Ao contrário, se há outro traço que também caracteriza hoje a imagem do PT junto a parcela considerável da opinião pública é a idéia de que ele não tem propostas, de que "faz oposição pela oposição", ou ainda que "é bom de oposição, não de governo" – traço forjado mais pelo repisar de um discurso há muito presente na mídia do que à luz dos programas que o partido já elaborou, da atuação de seus representantes nos parlamentos e das realizações dos governos municipais e estaduais que conquistou. Portanto, junta-se às demandas populares no campo social a necessidade de o PT e a esquerda dizerem com clareza a que vêm, oferecendo políticas sociais alternativas tão explícitas (o que fazer e como fazer) quanto possível. A transferência quase direta das intenções de voto dos descontentes com FHC para a candidatura Lula, empatando a disputa neste momento em que a campanha eleitoral mal começou, expressa a força de Lula como símbolo de oposição; mas a consolidação desses "votos" e seu crescimento só ocorrerão se, ao longo da campanha, Lula conquistar credibilidade junto à maioria do eleitorado, convencendo-a de que as esquerdas estão preparadas para governar e têm resposta para as fortes demandas sociais em pauta.

Em suma, seja porque a curto prazo não se vislumbra o risco de nova ditadura, seja porque a política de exclusão social em curso agrava a histórica demanda por bens básicos, ou ainda porque situação e oposição não podem taticamente deixar de privilegiar propostas para as questões sociais, a agenda da disputa presidencial tende a privilegiar temas da democracia social em detrimento da política.

Ora, ocorre que a premissa tácita que sustenta e entrelaça esse conjunto de lógicas e fatos – a idéia de que o jogo político-eleitoral em curso tem como pano de fundo ou alicerce uma cultura política democrática consolidada – é falsa. O que aqui se pretende argumentar é o quão premente e crucial permanece a questão política da democracia, reivindicando para os temas da liberdade, já na disputa presidencial – e, se eleito, para o futuro governo das esquerdas – um grau de relevância equivalente ao que todos reconhecem haver nos temas da justiça social.

Não há consenso na literatura da ciência política contemporânea sobre o peso que o caráter menos ou mais democrático da cultura política popular (em oposição ou em combinação com a vontade das elites dirigentes) desempenha no processo de consolidação da democracia, em sociedades que emergem de regimes autoritários. Mas a polêmica é menor quando se trata de apontar os elementos que definem a cultura política enquanto prenunciadora da estabilidade democrática: (1) interesse por e participação na vida política, (2) adesão a valores democráticos e (3) sentimento de eficácia em relação às instituições constituiriam grupos de indicadores básicos para a avaliação da predisposição da opinião pública em sustentar regimes democráticos ou repudiar soluções autoritárias.

Grosso modo, o interesse ou atenção em relação aos acontecimentos políticos e a participação em atividades políticas são emblemáticos de um suporte e de um ambiente democráticos em dois sentidos: o primeiro (positivo), na medida em que o fazer política dirige a sociabilidade para o campo do diálogo – quando não há política, no seu sentido mais genuíno, há violência – e é da interação de agentes individuais e coletivos nessa sociabilidade política que emergem e podem se fortalecer as instituições democráticas; o segundo (negativo) pelo que a ausência de interesse e participação tem de identidade com a supressão da esfera pública, que tipicamente ocorre sob regimes autoritários.

Já a declaração de adesão a valores democráticos – como o direito de organização e manifestação, a tolerância com minorias, a defesa da liberdade de imprensa e outros – fala por si mesma, enquanto expressão de uma cultura democrática. E, por sua vez, o partilhar em algum grau de um sentimento de eficácia das instituições – seja quanto à capacidade de realizarem justiça social, seja enquanto garantia de igualdade perante a lei – constitui um indicador relevante de suporte à democracia tanto pelo evidente apoio direto e presente que pode acarretar, como pelas expectativas que projeta, em termos de aposta futura (ou não) no sistema.

Pois bem. Visando atualizar o retrato da cultura política do eleitorado brasileiro sob a ótica desses três grupos de indicadores, em fins de novembro e início de dezembro de 97, o Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo realizou uma pesquisa nacional, elaborada (em meio a objetivos mais amplos) de modo a obter resultados comparáveis a levantamento Datafolha/Cedec de setembro de 89. Assim, boa parte dos dados obtidos, conforme expostos nos gráficos que seguem, permite a análise longitudinal da evolução dos traços relevantes de nossa cultura política no período de oito anos que separa os dois estudos – período que, vale lembrar, cobre justamente o dos governos civis diretamente eleitos, posterior, portanto, à conclusão formal da transição para a democracia. Vejamos os principais resultados.

A comparação das taxas de participação habitual nas atividades e comportamentos políticos sugeridas indica que, em quatro das cinco atividades incluídas nos dois levantamentos, o nível de participação hoje é idêntico ao de oito anos atrás. O único item que apresenta um acréscimo refere-se a "tentar convencer os amigos a votar nos candidatos que acha bons". O que pode ser apenas reflexo do fato de, em 97, os entrevistados tinham passado por mais experiências eleitorais pós-redemocratização do que haviam passado em 89 (nas duas pesquisas a pergunta não limitou um tempo passado a que a resposta deveria se ater). Nos dois levantamentos, apenas duas dentre as atividades sugeridas aparecem como habitualmente praticadas pela maioria do eleitorado: lê ou assiste noticiário sobre política (a atividade menos propriamente política, posto que não pressupõe o diálogo com outra pessoa por parte de quem a pratica) e conversa sobre política (dentre as demais sugeridas, todas interativas, a que menos exige uma ação específica).

Ainda no terreno da participação, a percepção do eleitorado quanto à influência que exerce sobre a política sofreu um pequeno acréscimo (de 35% em 89 para 41% em 97), mas sem alterar o baixo patamar anterior: metade acredita não influenciar a política (51%, além de 7% que não souberam responder a essa questão), taxa que chega a 56% entre os cerca de 2/3 do eleitorado que não ultrapassaram o 1º grau de escolaridade.

A limitação das possibilidades de participação política fica explícita quando a minoria que acredita exercer influência sobre a política explicita as formas como essa influência se realiza: "votando", "porque sou eleitor", ou ainda "escolhendo o candidato" é a resposta de 71% dos (15%) que hoje dizem influir muito na política e de 69% dos (26%) que acreditam influir um pouco. Muito abaixo aparecem "orientando/ conscientizando/ dando opiniões" (8% dos que acham que influem em algum grau), "participando de reuniões e debates" (2%), "de comícios" (1%) ou "militando" (1%).

Passando para o terreno do sentimento da eficácia das instituições, a evolução da pergunta inversa mostra que a percepção do eleitorado quanto à influência da política sobre sua vida permaneceu rigorosamente no mesmo patamar: a noção de que a política influencia a vida muito (35%) ou ao menos um pouco (29%) oscilou de 62% para 64%, de 89 para 97. Cerca de 1/3 dos eleitores brasileiros (31%) continua acreditando que a política não exerce qualquer influência sobre suas vidas – proporção que aumenta conforme diminuem a escolaridade ou a renda familiar do eleitorado.

Relacionado a isso está o grau de importância que os eleitores atribuem à política: apenas uma maioria relativa dos entrevistados (44%) disse considerá-la muito importante; para 28% é mais ou menos importante e para quase 25% não é nada importante.

Essa distribuição varia consideravelmente com o aumento da escolaridade ou da renda familiar: Consideram a política muito importante 73% dos eleitores brasileiros que atingiram a escolaridade superior, contra 35% dos que não ultrapassaram o 1º grau; 62% dos que possuem renda familiar acima de vinte salários mínimos, contra 38% entre os que têm renda inferior a cinco salários.

Entre os que atribuem muita importância à política destacam-se os argumentos (espontâneos) de que a política está em tudo/ através dela é que tudo é feito (30%), ou que ela é necessária/ fundamental para governar/ definir diretrizes/ o destino do país (29%). Já os que atribuem importância relativa ou nenhuma à política justificam sua avaliação sobretudo pela imagem que fazem não da política, mas dos políticos: são todos demagogos (26% e 44%), só pensam neles mesmos (7% e 17%), são corruptos (7% e 10%). Apenas 11% e 14% são descrentes ou desinteressados de fato com a política, afirmam que não gostam ou não têm interesse.

A tabela abaixo traz um ranking de instituições segundo o grau de confiança hoje a elas atribuído. Note-se que com exceção da família nenhum outro item tem a confiança irrestrita da maioria, e que além da polícia militar, dos empresários e das igrejas evangélicas, são as instituições políticas ou seus representantes os que ultrapassam o patamar de 40% de não confiança: governo federal (43%), vereadores (46%), partidos políticos (49%) e congressistas (54%) – casos em que não apenas a confiança irrestrita é baixíssima (o inverso tampouco seria saudável), mas em que a não confiança é superior à confiança até certo ponto.

Confiança nas instituições
A evolução das avaliações do desempenho de duas instituições caríssimas à democracia, a Justiça e o Congresso Nacional, explica a relativa falta de credibilidade das mesmas junto à opinião pública e reforça o quadro de estagnação desse indicador da cultura política, vivido nos últimos anos: ambas obtêm maioria relativa de avaliação regular em todo o período; entre 93 e 97 a Justiça mantém um equilíbrio precário entre as avaliações positiva e negativa, enquanto o Congresso pende para a negativa em toda a legislatura vigente, excetuando-se a expectativa (crédito dado pela opinião pública) antes de sua posse.

Finalmente há a questão da adesão a valores democráticos. Diante de uma pergunta direta, se a democracia é sempre melhor ou se em certas circunstâncias é preferível uma ditadura, a opção pela democracia tem sido indicada por uma maioria tênue ao longo da última década, em torno de 50%, às vezes superada pela soma dos que optam pela ditadura (entre 20 e 25% dos eleitores) ou, pior, consideram que tanto faz ou não têm opinião a respeito (25% restantes).
Pode-se argumentar que a pergunta direta não é a melhor maneira de aferir a adesão à democracia, posto que a compreensão do conceito é em si problemática. É verdade.

Ocorre que tanto na pesquisa do Datafolha em 89, como na da Fundação Perseu Abramo em 98, solicitados a explicar o que entendiam por democracia, respectivamente 43% e 45% dos/as entrevistados/as disseram não saber responder (38% e 40%), ou deram definições extremamente vagas ou simplesmente equivocadas (5% e 5%). Evidentemente esse resultado é em si uma demonstração contundente do não desenvolvimento da cultura política democrática no país ao longo da última década. Não à toa a opção pela democracia, nessa pergunta, cresce com o aumento da escolaridade e entre os que compreendem minimamente o significado do conceito.

A adesão a valores democráticos pressupostos nas democracias constitucionais oscila no mesmo patamar da opção explícita pela democracia: cerca da metade apenas dos eleitores se opõe claramente a que o Poder Executivo possa proibir a existência de algum partido político (52%), censurar a mídia (51%), fechar o Congresso Nacional (49%), proibir greves (50%) ou intervir em sindicatos (45%).
Por fim, duas outras perguntas reforçam a tese da fragilidade da cultura democrática existente hoje no Brasil. Indagados sobre o que seria melhor para o país, "um líder forte que coloque as coisas no lugar" ou "a participação popular nas decisões importantes", 44% apontaram a segunda opção (45% em 89), contra 26% que apostam no "líder forte" e 20% "em ambos" (alternativa apontada espontaneamente). E diante de três alternativas relativas à tolerância com as minorias que pensam diferente da maioria, a maior parte dos eleitores (55%) ficou entre a opinião de que "elas podem ter suas idéias desde que não tentem convencer os demais" (40%), ou simplesmente que "devem obedecer à vontade da maioria, abandonando suas idéias" (15%). Não souberam opinar 8% e apenas pouco mais de 1/3 apontou a alternativa de que as minorias "podem ter suas idéias e podem tentar convencer os outros" (36%).

Em suma: níveis de interesse, organização e participação política moderados (ou baixos) e estagnados; permanência do desprestígio e da falta de credibilidade na eficácia das instituições políticas e de seus representantes, adesão também moderada e estagnada à opção democrática e a valores intrínsecos a seu exercício. Trata-se de um retrato atual de nossa cultura política mais preocupante do que pareceria à primeira vista, certamente pouco seguro para que se possa afirmar ou supor que a democracia no Brasil está consolidada.

É nesse sentido, ainda que não evidente, que a questão da democracia reclama um lugar relevante nas eleições deste ano. É verdade que uma leitura otimista dos dados expostos pode enfatizar positivamente a estagnação dos indicadores aferidos. Afinal, depois da frustração com a Nova República de Sarney, da rápida decepção como o governo Collor, da falta de criatividade do governo Itamar e agora com a instabilidade social agravada pelas políticas neoliberais do governo Fernando Henrique, não seria de se esperar uma piora daqueles indicadores? Sua estagnação não seria sinal de consolidação da cultura democrática? Não seria sintoma de que apesar da insatisfação com os resultados dos governos civis a sociedade estaria demonstrando saber distinguir a democracia, enquanto sistema formal, dos atos de seus representantes?

É possível. Mas, primeiro, ninguém pode prever com segurança até quando pode durar, se verdadeira, essa reserva de credibilidade da democracia. A eleição deste ano será a terceira direta para presidente, apontando o quinto mandatário em 14 anos, sendo que ao fim do mandato terão ocorridos 18 anos de governo civil, quase o mesmo que durou a última ditadura. E a seguir para onde vamos, ainda mais distante a memória daqueles tempos obscuros, pode ser forte o retorno da questão: afinal, a que veio essa tal de democracia?

Mas, sobretudo, não bastasse o risco de retrocesso ao autoritarismo explícito, está a questão da democracia que queremos. Não parece ser casual que a política neoliberal do Estado mínimo, apontando para o desmanche do já precário Estado de bem-estar social existente, venha sendo imposta em combinação com o deslegitimar de interlocutores e lideranças de movimentos sociais e sindicais autônomos e com o reforço ideológico de "saídas" individualistas, em detrimento da organização e solidariedade sociais – uma "obra" política em execução ao longo do governo Fernando Henrique que tem estado semi-oculta pelo espetáculo da democracia vigente, meramente representativa.

Se a frente de esquerda que ora se forma para chegar ao poder no Brasil – como é possível nestas eleições –, uma vez lá, ater-se à realização de metas sociais (em relação às quais, vale repetir, há uma demanda popular absolutamente legítima e que deve ser tanto quanto possível satisfeita), na melhor das hipóteses ao final de seu mandato se poderá dizer que terá sido um governo melhor que todos seus antecessores, em mais de um século de República. Se paralelamente não se recuperar em parte a legitimidade das instituições políticas clássicas (partidos, Congresso, Justiça etc.); sobretudo se não crescer o nível de democracia participativa, seja através do uso freqüente de recursos constitucionalmente previstos, como os referendos e plebiscitos, seja através da invenção de novas instâncias ou instituições que fomentem o desenvolvimento da cidadania (como seria, por exemplo, um orçamento participativo em nível nacional?); enfim, se do governo das esquerdas não resultar um aumento da adesão consciente à democracia, concebida simultaneamente como realização da justiça social e exercício da liberdade, pouco se terá feito.

Sendo mais enfático, se diria que a condição de realização da desejada democracia social se assenta no grau de radicalidade da democracia política: sem a partilha do exercício do poder, através do fomento e da criação de novos fóruns públicos de participação, as conquistas das políticas públicas no campo social serão sempre incompreensivelmente insatisfatórias, quando não equivocadas, em termos de prioridades, ou mesmo erradas, em direção contrária ao necessário. (A história das esquerdas é repleta de faturas cobradas a dirigentes que tiveram a pretensão da onisciência).

Tanto melhor se o impulso para o avanço da cultura democrática puder começar na própria campanha eleitoral, despertando, pelo convite à participação e à prática do debate, a esperança na (por ora) desprestigiada política, revitalizando as energias utópicas e emancipatórias, que já deram mostras de não serem poucas, presentes na sociedade brasileira.

Gustavo Venturi é doutorando em Ciência Política na USP e coordenador do Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo