Cultura

Fronteira agreste, escrito por um mineiro, retrata o mundo e a cultura do gaúcho

Dentre as leituras que me causaram impacto pela reflexão que provocou junto com a fruição prazerosa de seu universo ficcional, lembro-me de uma, muito singular, porque trata do mundo e da cultura gaúcha. E foi um livro escrito por um mineiro. Trata-se de Fronteira agreste, de Ivan Pedro de Martins.

Os livros têm a sua gênese, nascem do talento de um(a) autor(a) que vive determinado momento no tempo e no espaço, como qualquer mortal, mas que o ilumina e o supera com a sua ficção. Fronteira agreste me impressionou pelo seu tema e pela forma como foi lapidado, mas, também, porque o li num tempo de escuridão - final da década de 60 - e de intensa procura das razões profundas que ligavam o meu mundo, lá de Bossoroca/São Luiz Gonzaga, com os mundos gaúcho e o distante, onde se tomavam as decisões políticas. Bem antes, conheci O tempo e o vento, numa condição duplamente prazerosa: primeiro porque lia sobre personagens e estórias que o povo missioneiro e, principalmente, minha mãe, desde que me conheço por gente, me contavam com sua fabulação e linguagem singulares. Segundo, porque lia em voz alta para minha mãe, até então analfabeta, a seu pedido, no início das noites à luz do lampião, antes do jantar.

Mas ao contrário de Érico Veríssimo, o Ivan Pedro de Martins eu li em silêncio e só para mim. O panorama largo da formação sociocultural e histórica do Rio Grande transmitido por gerações no romance de Érico Veríssimo é trazido de forma mais seca e densa para dentro do universo da fazenda Santa Eulália, no Fronteira agreste. Ter descoberto através de uma obra de ficção e não de um ensaio sociológico os liames entre a "unidade produtiva" - a fazenda de produção agropecuária - e as formas de produção pré e/ou capitalistas, dentro do chamado feudalismo rural gaúcho, impressionou-me muito, instigando-me a outras leituras e maior engajamento político.

De repente, os personagens de Fronteira agreste eram parentes próximos do povo do qual eu fazia parte ali na periferia de São Luiz Gonzaga. Gente que, como meus pais, agregados num fundo-de-campo, aos poucos foram vindo para a cidade em busca de um ganho que não mais encontravam como peões nas fazendas. Seus relatos e causos passaram a ter um outro significado para mim.

O tempo político em que Ivan Pedro de Martins escreveu Fronteira agreste parecia o mesmo em que eu o lia, vinte e tantos anos depois. Duas ditaduras em tão curto espaço de tempo! O período social também apresentava muitas semelhanças. Meu pai migrara do campo para a cidade no início da década de 40 e, de aramador*, tornara-se carpinteiro, profissão com a qual garantiria pelo menos a formação primária para seus cinco filhos, possibilidade que ele próprio não tivera nos fundos-de-campo onde se criara.

Nossos parentes continuavam, no final da década de 60, chegando das fazendas, buscando nas cidades colocação em "unidades produtivas" de outro tipo. É um ciclo perverso de exploração que um dia haverá de ser estancado por um projeto democrático-popular gestado na arte e na realidade dos que pensam o futuro e dos que o constroem no presente dos movimentos sociais.

*aramador - trabalhador que constrói cerca de arame farpado.

Olívio Dutra é ex-prefeito de Porto Alegre, candidato ao governo do estado do Rio Grande do Sul.