Quatro coletâneas publicadas sobre o Manifesto revelam o estágio das discussões sobre o marxismo no Brasil
Quatro coletâneas publicadas sobre o Manifesto revelam o estágio das discussões sobre o marxismo no Brasil
Os 150 anos da publicação do Manifesto Comunista deram ensejo a uma ampla discussão, na esquerda brasileira e internacional, sobre a atualidade do marxismo e do seu projeto socialista.
O Manifesto - que estabeleceu o discurso fundamental da política revolucionária moderna e é a obra mais difundida de Marx e Engels - oferece uma excelente oportunidade para travar este debate, candente na situação de crise do movimento socialista.
A discussão está sendo impulsionada por intelectuais, organizações e partidos de esquerda, bem como por instituições universitárias e culturais. Ela vem se dando nos mais diversos países por meio de seminários e ciclos de discussões, de um lado, e pela publicação de reflexões sobre o tema, de outro. Seu momento de pico foram os meses de abril e maio, quando se realizaram inúmeras atividades no Brasil e outros países e um grande encontro internacional na França.
A vitalidade é um traço do debate até agora realizado em nosso país. Ela se expressa nas quatro coletâneas publicadas no Brasil dedicadas à análise do Manifesto e da obra de Marx e Engels, bem como em numerosos artigos em revistas acadêmicas, culturais e de esquerda (inclusive quatro artigos que saíram em um dossiê na Teoria&Debate nº 36, out-dez 1997).
A discussão atual oferece, assim, a oportunidade de realizarmos uma radiografia das tendências atuais do marxismo brasileiro, permitindo que examinemos seus pontos fortes e debilidades.
Heterogeneidade e dinamismo
Um primeiro aspecto que salta aos olhos na discussão brasileira é seu caráter simultaneamente teórico e político, acadêmico e partidário, expressando a força acumulada pela esquerda no país nas últimas duas décadas. Diferentemente de países onde o marxismo está isolado nas universidades, de um lado, ou onde os movimentos políticos de esquerda incidem muito pouco no terreno acadêmico ou cultural, de outro, o debate marxista é travado no Brasil com uma forte inflexão militante, por dirigentes políticos e partidários com formação teórica marxista e por intelectuais com atividade ou vivência política prática.
É também notável a virtual extinção da tradição teórica associada ao PCB, por meio século hegemônica nos meios intelectuais de esquerda. O PT ocupa uma posição proeminente face a partidos marxistas como o PCdoB e o PSTU e a correntes de esquerda existentes no PDT e PSB: a ele pertence a enorme maioria dos intelectuais e dirigentes políticos marxistas brasileiros. Mas isso não significa unidade teórica, política ou ideológica: as compreensões do que é o marxismo e do que deve ser a política socialista são muito diversas e mesmo abertamente contrastantes no interior do PT. E se a heterogeneidade excessiva pode conduzir a dificuldades no terreno da prática política, sem dúvida é uma fonte de riqueza e estímulos no plano intelectual. O quadro atual é o da existência de uma pluralidade de marxismos, tanto no terreno político como no teórico.
Há um certo retrocesso da presença do marxismo se comparado com o quadro das décadas de 70 e 80. Ele parece, porém, ser menos acentuado que em outros países da Europa ou da América Latina. Só parcialmente este recuo decorre da mudança no quadro de forças internacional (colapso dos regimes burocráticos, reestruturação do capitalismo). Ele se explica, principalmente no terreno cultural, também pela gradativa cooptação dos intelectuais pelos governos estaduais do PMDB, pela "Nova República" e depois pelo PSDB, que ajudou a preparar o clima ideológico para a sua posterior adesão ao neoliberalismo.
Marcelo Ridenti mostra bem isso no seu artigo sobre "O sucesso no Brasil da leitura feita por Marshall Berman" da obra de Marx (em O Manifesto Comunista 150 anos depois). Ele registra o crescimento, paralelo à redemocratização, do individualismo narcisista no seio da sociedade brasileira e a necessidade dos meios intelectualizados se reconciliarem com a modernidade e o capitalismo, passando a defender a recomposição da harmonia social. Uma parte dos sociólogos, filósofos ou economistas de maior prestígio que se consideravam marxistas ou com ele flertavam, como Fernando Henrique, Giannotti ou Weffort, assumem posições conservadoras ou mesmo reacionárias.
Mas este deslocamento para a direita de parcela da intelectualidade marxista encontrou um contraponto no peso da esquerda no país, principalmente pela formação e sucesso do PT e pelas experiências de luta nos últimos quinze anos, já sob o quadro de uma democracia liberal. Uma parte da intelectualidade ativa antes dos anos 80 manteve suas posições marxistas e uma nova geração veio se somar a ela na universidade, muitas vezes gente com alguma experiência de militância partidária. A oposição ao neoliberalismo e o marxismo encontram aí um espaço importante, que vem sendo reforçado com a vivência prática do governo Fernando Henrique.
O marxismo da intelectualidade de esquerda brasileira é hoje muito diferente daquele de duas décadas atrás. Ela assimilou, a partir dos anos 70, parte do debate em torno do "marxismo ocidental", que na Europa começou a ser travado depois de 1956. Até então, esta discussão tinha influenciado pouco a esquerda latino-americana que nos anos 60 rompia com os PCs. A exceção era o marxismo vernáculo de Che Guevara que, infelizmente, foi demasiado associado pela esquerda à sua estratégia de luta armada. Num primeiro momento, Gramsci, Lukács, Sartre, Marcuse e Althusser foram introduzidos numa cultura marxista até então muito pobre. Depois, foi a vez de outros frankfurtianos como Benjamin e Adorno e figuras como Perry Anderson, Michael Löwy, E.P.Thompson ou Fredric Jameson. O quadro foi assim se distanciando bastante seja da indigência inicial do marxismo no Brasil (traçada por Leandro Konder em "A derrota da dialética"), seja do marxismo canônico do PCB e da Terceira Internacional estalinizada.
Este conjunto de influências acabou atingindo, direta ou indiretamente, boa parte da esquerda militante de origem cristã, leninista, trotskista ou maoísta que integrou o PT e foi tendo que matizar suas posições originais. Gramsci, por exemplo, foi apropriado por praticamente todas essas correntes. Hoje, sob o impacto da crise do movimento socialista, os marxistas estão mais abertos para debater, de forma plural, seus fundamentos teóricos.
Diferentes concepções
Oexame do conteúdo dos textos que têm circulado na discussão sobre o Manifesto no Brasil é revelador da clivagem política que permeia o debate teórico marxista. Isso é facilmente perceptível na medida em que estão em jogo questões como a atualidade ou não do marxismo, a relevância de suas teses centrais, a possibilidade ou não da revolução, a consistência do projeto socialista.
A grande maioria dos artigos publicados, inclusive os das coletâneas que saíram recentemente - à exceção da organizada por Coggiola, que publica comentários clássicos, a maioria dos quais da primeira metade do século - tem uma postura comum: toma cuidado para não descartar a tradição teórica e as referências marxistas, que considera fundamentais, buscando reforçar seus pontos fortes, embora não ignorando seus pontos ultrapassados. O tom dominante é o de que o marxismo é um instrumento insubstituível para analisar o mundo capitalista, mas tem que ser atualizado para enfrentar os desafios da nova realidade histórica que está se constituindo. Esta posição geral cuidadosa mas aberta estabelece o centro de gravidade da discussão sobre a atualidade do marxismo.
Esta tônica dominante é, todavia, pressionada por dois pólos. De um lado, por um campo pouco sensível ao questionamento das bases teóricas do marxismo.
Nele, a teoria tem que lidar com as realidades criadas pelo importante processo de transformações por que passa a sociedade capitalista, tem que estudar fenômenos novos, mas a partir de instrumentos teóricos (ou bases metodológicas) no fundamental não problematizados. Um bom exemplo deste enfoque é o texto de James Petras (no livro organizado por Coggiola) ou o de Valério Arcary (em 150 anos de Manifesto Comunista).
De outro lado, temos problematizações tão profundas que, mesmo reconhecendo a genialidade, os méritos ou os pontos de interesse e atualidade da obra de Marx e Engels (quase sempre destacando o acerto do Manifesto na descrição do dinamismo do capitalismo), acabam por colocar a ênfase na necessidade de revisão radical ou superação do marxismo. É o caso do "Manifesto das falsas predições" de Aldo Fornazieri (em 150 anos de Manifesto Comunista) ou "O Manifesto e a refundação do comunismo", de Marco Aurélio Garcia (na Teoria&Debate nº 36).
Mas estas posições não dão o tom do debate, que é mais o de uma revisão prudente do marxismo à luz da experiência do capitalismo contemporâneo - para quase todos, o balanço crítico da experiência soviética é praticamente um pressuposto. Isso é facilitado por serem textos voltados para temas políticos. Eles lidam com um mundo em mudança, mas com referências relativamente familiares, onde os intelectuais socialistas se sentem mais confortáveis: as transformações da economia capitalista sob o impacto da reestruturação em curso, a globalização, a redefinição do lugar do Estado nacional, as transformações na estrutura de classes, o papel do proletariado na transformação revolucionária, o impacto da mídia sobre a política, a estratégia de luta pelo poder etc. O quadro que emerge do conjunto de discussões é, portanto, o de bastante abertura para o debate teórico, porém a partir de uma forte valorização da tradição intelectual marxista.
Debate internacional
Mas não podemos ter uma avaliação ufanista da situação do marxismo em nosso país. Seus limites emergem quando traçamos um paralelo com o debate realizado pela esquerda em outros países, particularmente em alguns centros imperialistas. Há, aí, um acúmulo importante de experiências políticas de enfrentamento contra o neoliberalismo por movimentos como o sindical ou o dos desempregados ou por coalizões internacionais de organizações de cidadãos. Mas onde a defasagem sobressai é no debate teórico.
Embora a elaboração marxista tivesse no passado um caráter bastante internacionalizado, ela foi muito mais marcada, no último meio século, pelas condições políticas e culturais nacionais. Tem hoje um caráter menos cosmopolita do que muitos programas de pesquisa formulados e aplicados em escala mundial (processo acelerado pela facilidade de difusão das informações e análises, que expressa uma alteração importante da forma como é produzido o conhecimento na atualidade). Assim, a discussão marxista brasileira está um pouco distante, pelo menos até agora, de alguns dos circuitos mais importantes de debate internacional. Isso nos manteve afastados de discussões muito importantes que vêm ocorrendo no centro do capitalismo, que expressam as fronteiras atuais do conhecimento.
Essa defasagem dificulta apreendermos o caráter histórico do marxismo. A afirmação, freqüente nos artigos recém-publicados, de que o marxismo manterá sua atualidade enquanto vivermos em uma sociedade capitalista, tem que ser mediada por outro aspecto: a sua capacidade de diálogo com os diferentes momentos históricos da modernidade, compreensão que é um dos pontos centrais do debate atual da teoria social.
Cada época tem seu horizonte cognitivo. No século XVIII, por exemplo, a idéia de ordem teve um papel fundamental como alicerce das ciências particulares; o mesmo aconteceu, no século XIX, com a idéia de história. O marxismo surgiu subvertendo a compreensão da ordem social, que passava, com a Revolução Francesa, a ter um caráter histórico, com o futuro sendo construído a partir da intervenção no presente em função de projetos de sociedade em confronto. Mas a sua narrativa do devir humano era tributária de sua época e usualmente enquadrada pela visão de um dinamismo mecânico, evolutivo. Isso foi colocado em xeque, no século XX, pela idéia de complexidade, pela afirmação do caráter não mecânico e não linear de grande parte dos processos de mudança, inclusive do dinamismo social e histórico, com seu condicionamento recíproco entre estrutura e sujeito. Nas últimas décadas, o conjunto dos ramos de conhecimento e macroteorias tem tido que ajustar contas com isso, inclusive o marxismo.
A reflexão marxista, quando consciente destes deslocamentos, tem enfrentado bem a discussão teórica e metodológica contemporânea, dialogando com os distintos corpos de conhecimentos e com os seus resultados atuais e incorporando-os em sua compreensão da sociedade e da história. Um exemplo é o debate marxista francês do presente, forjado no embate de duas décadas com o pensamento pós-moderno, do qual emerge uma ampla reinterpretação do marxismo, de caráter fortemente antideterminista, que reforça seu rechaço da sociedade burguesa e a radicalidade de seu compromisso emancipador. Um debate como esse, que em diferentes graus ocorre em outros países centrais, tem decorrências políticas muito importantes para o pensamento socialista em um país como o Brasil. Vejamos concretamente alguns tópicos.
História, ciência e alteridade
A concepção evolutiva da história como sucessão de modos de produção e como progresso vem sendo duramente criticada. E outra leitura da visão de história em Marx - uma história aberta, compreendendo tendências e rupturas, crises e encruzilhadas - emerge, tendo como guia Walter Benjamin. Como repensarmos nosso projeto de sociedade sem nos dissociarmos da idéia de que o vento da história - que não corresponde necessariamente ao progresso e pode trazer também a catástrofe e a barbárie - sopra a favor do socialismo? Michael Löwy, que participa da discussão marxista tanto na Europa como no Brasil, tem procurado difundir entre nós essa compreensão e ele a retoma em seu artigo em "Ensaios sobre o Manifesto Comunista", mas ela ainda não tem encontrado o eco que merece na esquerda brasileira.
A concepção positivista da ciência (e sua ideologia cientificista) vem sendo amplamente contestada pelo pensamento atual. A concepção de ciência que tinha como modelo a física newtoniana simplesmente perdeu sua capacidade explicativa e as formas de conhecimento que rotulamos de ciências só podem se sustentar à luz de concepções muito mais amplas e flexíveis. A visão que afirma unilateralmente o marxismo como ciência da sociedade capaz de orientar uma política "científica", que desataria os nós da história humana, torna-se caricatural. O projeto marxista só mantém sua atualidade interpretado sob outra luz, mais fiel talvez à formulação original de Marx e Engels até o Manifesto: como um conhecimento que administra permanentemente uma tensão constitutiva e inescapável entre determinismo e liberdade, instrumentalidade e utopia, estrutura e sujeito, ciência positiva e dialética, comunidade e indivíduo. O texto de Leandro Konder sobre a questão da utopia em O Manifesto Comunista 150 anos depois destacou a importância desta temática. Mas a compreensão que a esquerda brasileira tem do que seja o marxismo ainda está muito distante do debate contemporâneo.
Outro tema candente: a avaliação da modernidade ou, se quisermos, a polêmica sobre o projeto iluminista e a crítica pós-moderna (debate que nucleia boa parte da teoria social contemporânea) e o lugar do marxismo nela. Não se trata apenas de encontrar uma postura básica face ao mundo moderno, um fio condutor capaz de tecer as afinidades entre a crítica marxista do capitalismo em função de um projeto de futuro e outras formas de pensamento como, por exemplo, a crítica modernista da modernidade (como bem apontam Leo Lince e Milton Temer, lembrando Oswald de Andrade, em seu artigo para 150 anos de Manifesto Comunista).
Já não se aceita que o futuro a ser construído seja expressão de qualquer universal perene, o proletariado como sujeito imanente da história, o desenvolvimento das forças produtivas como motor do progresso humano ou a razão na história (ou na comunicação humana, como aponta correta mas limitadamente Habermas contra os pós-modernos). O marxismo tem que se haver com a questão da alteridade, redefinir sua concepção de universal e isso não é fácil numa tradição iluminista demasiado rígida. Talvez seja por isso que apenas um teólogo marxista, Enrique Dussel, tenha conseguido até agora interpretar Marx como um pensador da alteridade. E, no conjunto de textos publicados aqui sobre o Manifesto, seja Adolfo Sánchez Vázquez, que convive no México com a experiência zapatista, quem nos recorde que o agente capaz de quebrar o capitalismo terá que ser um sujeito revolucionário plural.
O debate teórico expressa, à sua maneira, os dilemas de uma época. Para que o marxismo que vem se desenvolvendo no Brasil possa enfrentar os desafios que lhe estão postos, para que possa manter e desenvolver seu caráter de projeto de emancipação universal, terá que ampliar sua agenda. Ela é composta não apenas do entendimento das mudanças em curso com as ferramentas teóricas herdadas do passado, mas também da construção de instrumentos conceituais e alicerces metodológicos muito mais sofisticados do que aqueles de que dispomos. A sintonia com o debate teórico internacional mais avançado torna-se uma necessidade política concreta.
José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de TD e editor do jornal Em Tempo.