Nacional

Entrevista com Marco Aurélio Garcia, coordenador do Programa de Governo da chapa Lula/Brizola

A direita, o governo e os meios de comunicação tentam vender a imagem de que Lula não tem programa de governo viável e que sua vitória levaria o país ao caos. Essa argumentação, numa reedição neoliberal do voto útil, sensibiliza alguns setores, que concordam que a situação está ruim, mas temem pelo pior com a vitória da esquerda. Visando esclarecer os principais pontos levantados no debate, Teoria e Debate entrevistou Marco Aurélio Garcia, coordenador do Programa de Governo da chapa Lula/Brizola.

Quais são os eixos centrais do programa de governo da frente encabeçada por Lula?
Três grandes preocupações estiveram presentes na elaboração da proposta programática: a social, a democrática e a nacional.

A política econômica de FHC agravou a situação social do país aumentando o desemprego e a exclusão social. A política econômica do governo popular terá como eixo o combate à situação de apartheid social em que vivem milhões de brasileiros, excluídos do mercado, da produção e da cidadania. Para atingir esse objetivo, é necessária uma política alternativa tanto ao velho nacional-desenvolvimentismo quanto ao neoliberalismo, permitindo a constituição de uma nova economia sustentada, soberana e solidária.

Quinze anos após o fim do regime militar, a questão democrática é ainda um ponto crucial de nossa agenda política. O fortalecimento e o aprofundamento da democracia política no Brasil têm sido dificultados pela falta de democracia econômica e social. O país não foi capaz até agora de realizar uma reforma política consistente, apesar dos avanços dos últimos vinte anos. Propomos que essa reforma se dê em torno de três grandes questões: a proteção efetiva dos direitos humanos, a realização de importantes mudanças nas instituições - a representação política, o sistema eleitoral, os partidos, a Justiça etc. - e o estímulo à participação popular, multiplicando mecanismos de controle do Estado pela sociedade.

Finalmente, a questão nacional. O processo de internacionalização acelerada da economia acentuou a interdependência dos Estados nacionais, tornando-os mais vulneráveis aos movimentos - muitas vezes erráticos - do grande capital internacional. A atual (des)ordem econômica mundial, que se combina com a hegemonia político-militar dos Estados Unidos, sobretudo após 1991, exige que os Estados nacionais tenham políticas firmes para fazer frente aos constrangimentos internacionais.

O atual governo, ao invés de adotar uma política econômica que nos fizesse menos vulneráveis vis-à-vis a instabilidade internacional, tornou-nos mais dependentes. Vivemos sobressaltados, com os olhos nas bolsas de valores da Ásia, de Moscou ou em Wall Street.

Quais os pontos priorizados em matéria de política econômica? Lula manterá a política de estabilização da moeda?
A redução da inflação foi uma conquista de toda a sociedade. Mas o custo social que os brasileiros tiveram de pagar foi elevado e a estabilidade alcançada é precária. Os indicadores macroeconômicos mostram claramente essa precariedade: a dívida externa aproximar-se-á dos US$ 220 bilhões, em fins deste ano; a dívida interna mobiliária estará em torno de US$ 300 bilhões. Em 1997 gastamos R$ 46 bilhões com pagamentos de juros da dívida interna. O saldo da balança comercial em 97 apresentou um déficit de US$ 8,4 bilhões e nossas contas externas têm um rombo de US$ 33,4 bilhões. Nosso crescimento tem sido medíocre e este ano não ultrapassará 2%. Ficamos prisioneiros da armadilha que o governo criou para baixar a inflação: câmbio sobrevalorizado, juros altos, abertura irresponsável. Essa política provocou uma desestruturação do aparelho produtivo, especialmente da indústria e da agricultura, bem como a crescente desnacionalização que vem sofrendo nosso parque industrial. Uma economia construída em cinco décadas está sendo desfeita em poucos anos.

Uma nova política econômica tem de apostar em nossas potencialidades. Temos um grande mercado interno a desenvolver, desde que sejamos capazes de distribuir renda através de um corajoso projeto de reformas sociais. Possuímos um parque industrial que deve ser revigorado para atender a expansão da demanda interna e o mercado internacional, no qual teremos de estar presentes de forma mais competitiva.

A reforma agrária e uma política agrícola eficiente podem provocar um grande crescimento de nossas safras, para enfrentar o problema da fome e do abastecimento de uma população de quase 160 milhões, além de produzir excedentes exportáveis.

O Estado tem de formular políticas industrial, agrícola e de ciência e tecnologia. Somente assim retomaremos as taxas de crescimento que marcaram a economia brasileira no passado.

O que diferenciará basicamente nosso projeto de desenvolvimento daqueles do passado é que trataremos de crescer com distribuição de renda, fortalecendo e aprofundando o regime democrático. Queremos construir um ciclo virtuoso de crescimento com distribuição de renda, o que pode ser obtido através de constantes negociações entre trabalhadores e empresários promovidas pelo novo governo.

Como o governo Lula tratará as privatizações já realizadas pelo governo FHC?
Nossa posição frente às privatizações não é ideológica. Criticamos o programa de privatizações porque em muitos casos ele privou o Estado de instrumentos estratégicos para um projeto de desenvolvimento. É particularmente o exemplo dos setores elétrico, de telecomunicações e de petróleo. É igualmente o caso da Vale do Rio Doce, uma estatal eficiente, rentável, que, ademais, desempenhava importante papel como agência de desenvolvimento regional, além de ser uma das poucas empresas brasileiras com forte presença internacional.

Criticamos o governo também pelas irregularidades que cercaram os processos de privatização, o que nos levou a entrar na Justiça ou apoiar ações que buscavam sustar a venda das estatais. Criticamos, ainda, o fato de o governo FHC ter posto muito dinheiro público para ajudar os compradores de nossas estatais, inclusive grupos estrangeiros, o que é uma incongruência e um escândalo. Finalmente, criticamos as privatizações pelo fato de terem sido feitas sem nenhuma definição de política industrial prévia e com o único propósito de obter recursos para pagar uma dívida interna cada dia maior e rigorosamente impagável. Estamos torrando "as jóias da família", sem conseguir sequer liquidar nossas dívidas. Por essa razão estamos dispostos a suspender o programa de privatizações, auditar as privatizações feitas e, em função dos resultados dessas auditorias, decidir o que fazer, caso a caso.

É preciso também que as empresas privatizadas sejam rigorosamente fiscalizadas para que não ocorram prejuízos aos usuários como os que vêm sofrendo a população do Rio de Janeiro com a Light e a Cerj. As agências criadas pelo governo têm de incorporar uma maior presença da sociedade.

Estamos estudando com simpatia a medida que o governo Blair adotou na Inglaterra de criar um imposto sobre os lucros extraordinários das empresas privatizadas, o que, só no ano passado, rendeu ao governo inglês o equivalente a US$ 6 bilhões, quantia destinada a programas educacionais.

Como enfrentar a questão cambial?
A passagem para uma nova política econômica será gradual e exigirá uma transição complexa que não pode ser decidida hoje por duas razões: não se sabe como estará a economia brasileira no início de 1999 e, menos ainda, como estará a economia mundial. Em um cenário dominado por esse tipo de incertezas, recomenda-se cautela.

O governo FHC tem feito terrorismo econômico afirmando que um governo Lula criaria o "caos". Ora, o caos social já esta aí - veja-se a situação do Nordeste - e o caos econômico pode sobrevir durante esse governo, como conseqüência dos desatinos da atual política econômica e de nosso atrelamento à economia internacional.

Que política está prevista em relação ao capital externo?
Lula tem afirmado reiteradamente que o capital externo produtivo é bemvindo. Queremos ficar livres da dependência do capital especulativo para podermos ter um efetivo controle sobre nossa política econômica. Por outro lado, buscaremos desenvolver mecanismos nacionais de financiamento de nosso desenvolvimento. Nossa inserção na economia mundial não pode significar perda de controle sobre nossas decisões.

Qual a política de inserção do Brasil no mercado globalizado? Como defender a indústria nacional?
Nossa indústria e nossa agricultura perdem espaço no mercado internacional porque o Real está sobrevalorizado, os juros são altíssimos e nosso aparelho produtivo, asfixiado como está e sem política industrial, não tem podido renovar-se como deveria.

A correção gradual da política cambial e monetária, a definição de uma política industrial, somadas a uma política de estímulo às exportações, começarão a corrigir essa situação. Todas essas medidas serão abertamente negociadas, diferentemente do que ocorreu no passado, quando se adotaram políticas protecionistas que beneficiavam grupos em segredo, sem contrapartidas, como metas e mecanismos de controle público de desempenho.

Não vamos nos fechar para o mundo, é óbvio, mas as importações predatórias serão taxadas, como se faz em qualquer parte. Veja-se como os Estados Unidos protegem sua indústria e agricultura ou como a política agrícola comum da União Européia protege seus produtores rurais. Experimente tentar exportar um quilo de arroz para o Japão para ver o que acontece. No Brasil, no entanto, estamos importando até cocos.

A direita tem procurado centrar o debate na questão econômico-financeira, tentando mostrar que Lula não tem propostas. É possível não cair nessa armadilha?
A sociedade brasileira mudou a agenda do debate eleitoral quando começou a sentir as duras conseqüências do caminho seguido para lograr a redução da inflação. Lula já apontou claramente para onde irá conduzir o país se vencer as eleições. Mudará a política econômica fundando a estabilidade da moeda em novas bases.

O governo é que tem de explicar o que vai fazer, continuando a atual política, com o crescimento da dívida interna, a degradação das contas externas, o crescimento medíocre do PIB e a incerteza de viver a todo momento na dependência do que está ocorrendo nos mercados financeiros asiáticos ou de outras partes do mundo.

A discussão fina sobre as políticas cambial e monetária hoje não é mais do que um exercício de futurologia. É claro que nossos economistas discutem cenários e estudam alternativas. Mas é evidente que a realidade será bem distinta desses exercícios. Como ainda estamos em clima de Copa do Mundo, é bom lembrar a máxima tão conhecida: "jogo é jogo, treino é treino."

O governo FHC deixa um exército de desempregados. Como inserir no mercado de trabalho não só estes como aqueles que ainda não tiveram oportunidade de trabalho?
Somente para absorver o milhão e meio de pessoas que ingressam no mercado de trabalho é necessário crescer em torno de 6% ao ano. Isso significa que a retomada do crescimento se coloca como uma meta absolutamente necessária. Não se trata, porém, de qualquer tipo de crescimento, mas de compatibilizá-lo com a expansão da oferta de postos de trabalho. O governo Lula estimulará, através de crédito mais barato, as empresas - sobretudo as micro, pequenas e médias - que criem emprego. Proporá a redução da jornada de trabalho em quatro horas e procurará desestimular as horas extras. Ao fazer reforma agrária - assentando um milhão de famílias - criará 3 milhões de empregos. Terá programas especiais para jovens - "primeiro emprego" - criando postos de trabalho nos setores público e privado destinados ao atendimento de demandas sociais da sociedade. Se pusermos todas as crianças a estudar, com a ajuda do programa de bolsa-escola, estaremos também contribuindo para uma maior oferta de trabalho que hoje é cruelmente atendida por menores.

Que espaço tem a reforma agrária nas propostas de Lula? É mesmo uma questão a ser resolvida com uma "canetada"?
A imagem da "canetada" aponta para a necessidade de vontade política para enfrentar uma questão como a da reforma agrária. O atual governo só atuou nesse terreno - e timidamente - quando foi pressionado pelo Movimento Sem Terra e viu que a opinião pública pendia para o MST.

Reforma agrária não é problema, mas solução. Uma política de assentamento, acompanhada de crédito, assistência técnica e um conjunto de medidas de política agrícola, pode contribuir para a geração de 3 milhões de empregos no campo, aumentar a oferta de alimentos e fixar o homem na terra. O impacto da reforma agrária, acompanhada de uma política agrícola adequada, vai além de seus efeitos econômicos. Ela produz um novo equilíbrio social e demográfico no país, diminuindo o inchaço das grandes e médias cidades. O Programa de Governo prevê igualmente a formação de 100 mil agroindústrias familiares e a multiplicidade de serviços e atividades não-agrícolas no campo, de forma a criar uma vida rural mais complexa e rica.

Finalmente, temos de levar em conta o seu impacto político. Ao enfraquecer o poder econômico do latifúndio, ela debilita o peso social e político de um setor extremamente conservador, abrindo espaço maior para a plena cidadania. A reforma agrária é assim um componente essencial do aprofundamento da democracia em nosso país.

Ricardo de Azevedo é editor de Teoria e Debate