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Coleção Zero à Esquerda analisa o fenômeno da globalização e desafiam o “pensamento único”

A coleção Zero à Esquerda, da Editora Vozes, já lançou mais de uma dúzia de livros. Os quatro livros que vamos comentar, embora não possam ser considerados representativos do conjunto da coleção – afinal, a quais livros se pode atribuir a propriedade de representar outros livros? – podem oferecer um aperitivo para a leitura do restante.

A Globalização em Questão - a economia internacional e as possibilidades de governabilidade, de Grahame Thompson e Paul Hirst. 364 páginas, 1998

Grahame Thompson e Paul Hirst procuram demonstrar com sólidos argumentos e uma ampla base de dados o quanto o conceito de globalização vem sendo usado abusivamente para descrever o atual sistema econômico mundial. Para isso partem de uma conceitualização do que seria uma economia plenamente globalizada – uma espécie de tipo ideal – e do que seria simplesmente uma economia internacional. A distinção conceitual parece irrelevante mas revela-se fundamental para a resposta à pergunta implícita no subtítulo do livro: afinal, existem ou não possibilidades fortes de governabilidade a partir dos Estados nacionais na atual fase da economia mundial?

O que seria uma economia globalizada? Em primeiro lugar, o sistema econômico tornar-se-ia "autônomo e socialmente sem raízes". As diversas economias nacionais estariam submetidas a determinações de processos e transações internacionais. As conseqüências da globalização seriam a ingovernabilidade – afinal, como poderia funcionar um mercado social e institucionalmente desenraizado? O resultado mais provável seria uma rápida desintegração desse sistema. Apenas fanáticos do ultraliberalismo poderiam imaginar a existência de um mercado global com essas características.

Em segundo lugar, uma globalização tipo ideal suporia a existência, controlando os aspectos decisivos dessa economia global, de verdadeiras empresas transnacionais. Quer dizer, de empresas que não têm raízes em nenhum lugar em particular, dispostas a mudar sua localização para qualquer lugar do mundo em busca de lucros maiores ou mais seguros. Não estariam sujeitas às restrições de política monetária ou fiscal de nenhum Estado em particular.

Uma terceira conseqüência da economia globalizada seria a mundialização do mercado de trabalho. Este passaria a ser completa ou potencialmente aberto e se manifestaria na possibilidade de rápida relocalização das empresas em países que oferecem menores custos da força de trabalho, forçando a flexibilização dos mercados de trabalho nos países centrais e, na verdade, propiciando às grandes corporações aproveitar as vantagens oferecidas pelos países avançados.

Finalmente, Hirst e Thompson destacam a inevitabilidade de alterações políticas fundamentais em uma economia supostamente globalizada. As grandes empresas sem raízes nacionais e agências internacionais voluntárias atuariam diretamente na relação com os cidadãos/consumidores no mercado global, por cima dos Estados nacionais, tornando as tentativas de disciplina por meio dos Estados totalmente inúteis. As sanções econômicas das corporações substituiriam as sanções militares como instrumento de política internacional. Afinal o que sobraria de espaço para a política numa sociedade desse tipo – para não perguntarmos o que sobraria para um tipo específico de política: a democracia?

Ao comparar esse tipo ideal com uma economia inter-nacionalizada – e não com uma economia fechada – os autores demonstram que, apesar do aumento dos fluxos financeiros e de comércio, sobretudo a partir dos anos 70, os mercados nacionais continuam preponderantes. Aquilo que é apresentado pelos entusiastas da globalização como um novo sistema econômico mundial é na verdade solidamente determinado em bases nacionais. A realidade ou a emergência de uma economia ingovernável e transnacionalizada, sem a possibilidade de hegemonias nacionais ou regionais, é contrarrestada pela emergência de instituições de controle e coordenação entre Estados. A União Européia é o mais ambicioso exemplo nesse sentido, mas a idéia de uma economia ingovernável, mesmo que ainda restrita ao campo financeiro, A Globalização em Questão - a economia internacional e as possibilidades de governabilidadenão se sustenta com base na experiência recente dos efeitos da política monetária americana, das crescentes pressões para coordenação de políticas econômicas dos países do G-7, e do papel das crises econômicas nacionais – como a da Rússia – no sistema financeiro internacional.

Em segundo lugar, a história da economia internacional constitui poderoso antídoto para aqueles que vêem a atual intensificação de abertura comercial e financeira como sinal de novos tempos na economia mundial. Afinal, a economia internacional foi tão ou mais aberta entre o final do século XIX e a I Guerra Mundial quanto é hoje. Os ciclos de regulamentação/desregulamentação da economia mundial são muitas vezes confundidos com novas características estruturais. A emergência da atual crise recolocou na ordem do dia a discussão de mecanismos de controle acordados pelos diversos países sobre o fluxo de capital e, até mesmo, sobre a necessidade de controles cambiais por parte de países que sofrem ataques especulativos. As políticas nacionais – e dos Estados, sobretudo – são reclamadas. Do Japão ao Brasil, passando pela Indonésia, com o mesmo furor e pelos mesmos que há semanas gritavam vivas à impossibilidade dos governos nacionais fazerem política econômica.

Geopolítica do Caos, de Ignacio Ramonet, 156 páginas, 1998

Ignacio Ramonet, editor do jornal francês Le Monde Diplomatique, reúne nesse livro textos aparentemente dispersos cuja principal característica é a denúncia contundente das mazelas disseminadas pelos “regimes globalitários”, novas versões do totalitarismo. A diferença é que os “regimes globalitários” não têm necessidade de suprimir partidos ou abolir a democracia formal. Eles se apoiam nos dogmas da globalização (o “pensamento único”) e “negligenciam os direitos sociais do cidadão em nome da razão competitiva e abandonam aos mercados financeiros a direção total das atividades da sociedade dominada”.

As preocupações de Ramonet superam a simples denúncia da regressão social típica desta nova era, como ele a caracteriza. Seu questionamento volta-se para as novas características da economia e da cultura e para o controle dos meios de comunicação.

No plano econômico, afirma-se a predominância do capital financeiro, do mercado, da competitividade e da concorrência. As alusões ao darwinismo como metáfora da economia global não deixam margem a dúvida: competição, seleção, adaptação são termos que remetem inevitavelmente à imagem da sociedade não apenas dominada pelos mais fortes, mas onde só estes podem sobreviver. A possibilidade dos Estados nacionais apresentarem-se como reguladores parece desaparecer progressivamente. As grandes corporações transnacionais não respeitam nem fronteiras, nem Estados, nem culturas. Afirmam-se por sobre essas outrora fundamentais barreiras.

Se por um lado impõe-se essa ideologia da globalização, por outro assiste-se à reemergência do nacionalismo. Na maioria das vezes com um caráter reacionário, que tenta identificar Estado-nação-cultura-unidade lingüística com uma comunidade etnicamente pura. Esta é a base do nacionalismo reacionário que emerge da França à Iugoslávia. Esta é também uma era em que assistimos o paradoxo da exaltação do hiperracionalismo econômico ao mesmo tempo que o irracionalismo social avança. Surgem a cada dia novas seitas. Os jogos de azar se expandem como nunca. O esoterismo ganha novos adeptos. O obscurantismo oferece uma saída frente à crescente complexidade da realidade.

A época descrita e denunciada por Ramonet se apóia também na afirmação de novos paradigmas: o mercado e a comunicação substituem o progresso e a máquina como suportes da modernidade. A mercantilização invade todas as áreas, inclusive aquelas antes consideradas marginais ao mercado. Já a comunicação, durante muito tempo portadora de um potencial libertador, passa a se impor como obrigação. Passa a exercer uma tirania quando não a se transformar em superstição.

A denúncia do dogmatismo moderno do “pensamento único” como “tradução em termos ideológicos com pretensão universal dos interesses de um conjunto de forças econômicas, em particular as do capital internacional” é o grande mérito dos escritos de Ramonet. São verdadeiros libelos contra as injustiças, o obscurantismo e as ameaças à democracia representadas pela nova ordem neoliberal que emerge como Pax Americana dos escombros do Muro de Berlim. Não são textos preocupados com o rigor conceitual. Escritos de combate e não de debate acadêmico.

Apesar da força de sua denúncia, algumas de suas generalizações soam questionáveis. Sua visão da globalização como uma realidade econômica dada, embora perversa, sua confiança excessiva no papel dos intelectuais, seus comentários ligeiros sobre a superação dos conflitos de classe, sua esperança ingênua na democratização da ONU não fazem justiça ao agudo senso crítico que ele demonstra quando denuncia a geopolítica que impera nesses tempos de caos.

A Ilusão do Desenvolvimento, de Giovanni Arrighi, 372 páginas, 1997

O livro de Giovanni Arrighi joga luz sobre um tema crucial para a esquerda nos anos 60 e 70 mas que parece deixado de lado frente ao magnetismo da “globalização”, da “era da informação” e de outros modismos típicos dos anos 90.

Reunindo oito ensaios antes publicados separadamente, o ponto forte do livro são os três ensaios agrupados no bloco chamado de “andar intermédio” e principalmente o que sugere o nome da edição brasileira: “A ilusão desenvolvimentista: uma reconceituação da semiperiferia”.

Embora menos interessantes e algumas vezes repetitivos – por exemplo, nas páginas 81 e 115 são repetidos trechos inteiros –, também os capítulos sobre o Leste Asiático apresentam uma interpretação que foge da economia convencional. Arrighi procura nas particularidades da situação geopolítica do Japão após a Segunda Guerra e do modelo econômico japonês a partir dos anos 70 as particularidades que permitiram a esse país passar da semiperiferia ao núcleo orgânico da economia mundial em pouco mais de 30 anos e, ao mesmo tempo, na relação do Japão com os tigres asiáticos, as origens de sua ascensão da periferia à semiperiferia. Talvez a conclusão, que Arrighi arrisca um pouco hesitante, de que “a liderança econômica está passando, nesse momento, de mãos ocidentais para mãos não-ocidentais”, referindo-se ao Leste Asiático, seja um pouco precipitada. A atual crise ameaça paralisar alguns dos únicos casos de contínua ascensão econômica da semiperiferia que resistiram à crise dos anos 80.

Arrighi define, em “A estratificação da economia mundial: considerações sobre a zona semiperiférica”, três camadas em que se divide a economia mundial. O núcleo orgânico, formado pelos países que vêm ocupando as posições no topo da riqueza mundial e que determinam o parâmetro de riqueza que outros países têm buscado atingir. A semiperiferia, como o nome indica, se caracteriza por uma posição intermediária na divisão mundial do trabalho, com uma combinação mais ou menos igual de atividades do núcleo orgânico e da periferia. Esta última é caracterizada pela predominância de atividades que controlam uma parcela ínfima do excedente produzido em cadeias de produção de mercadorias.

Suas conclusões, embora ele mesmo aponte para as limitações dos dados usados – sobretudo o pequeno período histórico coberto –, são extremamente fortes. A economia mundial tem mantido um padrão de estratificação mais ou menos constante. E apesar das enormes mudanças sociais experimentadas pelos países agrupados na semiperiferia, isto não alterou significativamente o grau de comando relativo entre as três camadas. Também apesar das enormes diferenças entre os vários projetos de desenvolvimento, da América Latina ao Sudeste Asiático, passando pelo Leste Europeu, houve apenas casos excepcionais de mobilidade de uma camada para outra. E, numa análise mais acurada, apenas o Japão chegou a completar a transição da semiperiferia para o núcleo orgânico.

Os capítulos finais podem ser considerados os mais “políticos” do livro. Se a perspectiva de luta pelo socialismo foi desacreditada, nos termos de Arrighi, pelo fracasso dos países do Leste Europeu em criar um padrão de riqueza comparável ao capitalismo dos países do núcleo orgânico, a evolução das desigualdades de renda na economia mundial não credencia o capitalismo como sistema. As transformações do capitalismo atual tendem a reunificar os interesses dos trabalhadores do mundo desenvolvido e da periferia, simultaneamente pauperizados e detentores de poder social. Condições que o Manifesto Comunista, relembrado por ArrighiArrighi cita esta “filosofia segundo a qual a maioria dos girinos vai viver e morrer como girinos, mas alguns poucos afortunados chegarão à condição de sapos e coaxarão discursos sobre como os mais capazes podem chegar a ela., assinalava como determinantes da possibilidade do proletariado vir a derrotar o capitalismo.

Poder e Dinheiro – uma economia política da globalização, de José Luis Fiori e Maria da Conceição Tavares (orgs.), 412 páginas, 1997

A coletânea organizada por Maria da Conceição Tavares e José Luiz Fiori, com artigos dos próprios e de Luiz Eduardo Melin, Luiz Gonzaga Belluzzo, José Carlos de Souza Braga, José Carlos Miranda, Carlos Aguiar de Medeiros e Ernani Teixeira Torres Filho, e prólogo de João Manuel Cardoso de Mello, constrói um amplo panorama do que os assim chamados economistas estruturalistas brasileiros têm a dizer sobre a atual fase da economia mundial. E o resultado é um convincente, embora em alguns casos hermético, discurso sobre as especificidades da globalização.

O sustentáculo do livro são seus três primeiros artigos, de Conceição Tavares, Conceicão/Luiz Eduardo Melin e Fiori, que compõem o bloco chamado “O poder e o dinheiro”. Os dois primeiros constroem a idéia de uma retomada consciente da hegemonia americana já a partir do final dos anos 70 e início da década de 80, quando ainda era moda falar-se do declínio americano e da ascensão da Alemanha e, sobretudo, do Japão. O instrumento decisivo para isso teria sido o que Conceição Tavares chama de “diplomacia do dólar forte” com a qual o Federal Reserve americano voltou a impor a moeda dos Estados Unidos como padrão monetário internacional, frente à ameaça de restaurar-se alguma forma de controle sobre o sistema financeiro internacional. As altas taxas de juros praticadas pelo FED daí em diante restauraram, ao custo de uma violenta recessão mundial e da crise da dívida externa para os países devedores, o papel dos EUA como ponto de atração das operações financeiras internacionais, destinadas a financiar a dívida pública americana.

Essa é a origem da atual fase da economia mundial, e a globalização financeira seu traço distintivo fundamental. Se no plano econômico essa retomada da hegemonia americana foi se impondo durante a década de 80, os autores assinalam sua estreita relação com a retomada da hegemonia política americana a partir dos governos Reagan e acentuada com a desintegração do Pacto de Varsóvia e da própria União Soviética a partir do início da década de 90.

A hegemonia passa ao que Fiori chama de “Sistema Imperial”, onde poder militar e econômico se voltam para a defesa dos interesses nacionais específicos dos EUA. O destino dessa hegemonia parece incerto. Ao mesmo tempo que se difunde e se vulgariza a idéia da globalização como prenúncio do fim dos Estados nacionais, os blocos econômicos regionais afirmam-se como instrumentos de “proteção” articulada de Estados nacionais para se fortalacerem na competição interestatal que se acirra.

Aliás, as crescentes ondas de instabilidade financeira da economia mundial desde o México em 1994, passando pela Tailândia e Coréia em 97 e agora atingindo a Rússia e o Brasil e ameaçando os países centrais têm colocado muitos economistas outrora entusiastas da globalização em posição de cautela e até mesmo de aberta reivindicação de imposição de controles nacionais e internacionais sobre os fluxos de capitais. Até aqui, com a explícita oposição dos organismos multilaterais, como o FMI e o Bird, representando basicamente a posição americana. O objetivo da política americana, hoje como em 1979, é manter sob seu comando as taxas de câmbio. Para isso, procuram manter a todo custo o dólar como padrão das transações internacionais e seu mercado financeiro como ponto para onde se dirigem os investimentos financeiros nos momentos de crise.

Para diminuir a característica de colcha de retalhos desse texto, seria necessário arriscar alguma conclusão a partir da leitura dos quatro títulos da “Zero à Esquerda”. Feliz ou infelizmente, são apenas sólidos exemplos da miríade de iniciativas que desafiam o pensamento único com lucidez e competência, muitas vezes contraditoriamente. Nenhum deles é ou se propõe a ser a luz no fim do túnel de incertezas e perplexidades em que a esquerda se meteu nos últimos anos. Mas todos eles desafiam a filosofia do girino1 descrita por Giovanni Arrighi: querem transformar um sistema que oferece como único consolo aos males sociais a declaração de que apenas indivíduos excepcionais poderão escapar deles.

Fabio Pereira é mestrando em Administração Pública da FGV-RJ