Cultura

O cinema talvez se mostre mais atento aos movimentos do tecido social do que imaginamos

O cinema talvez se mostre mais atento aos movimentos do tecido social do que imaginamos. A grande crise de 1929 fez a glória do filme hollywoodiano, como se sabe, tratando-se de um caso célebre pela exemplaridade com que ilumina o poder da evasão. Enquanto as pessoas se suicidavam após o craque da Bolsa e o desemprego atingia índices inéditos nos Estados Unidos, as filas para as bilheterias davam voltas no quarteirão, durante os anos 30. Era a época de fastígio do musical e da comédia romântica, onde o luxo e a ostentação imperavam.

O cinema talvez se mostre mais atento aos movimentos do tecido social do que imaginamos. A grande crise de 1929 fez a glória do filme hollywoodiano, como se sabe, tratando-se de um caso célebre pela exemplaridade com que ilumina o poder da evasão. Enquanto as pessoas se suicidavam após o craque da Bolsa e o desemprego atingia índices inéditos nos Estados Unidos, as filas para as bilheterias davam voltas no quarteirão, durante os anos 30. Era a época de fastígio do musical e da comédia romântica, onde o luxo e a ostentação imperavam. Quanto maior a negação dos tempos assustadores e carentes que todos viviam, tanto melhor.

O que se passa agora merece registro. De uma hora para outra, as películas sobre desemprego, seja este central ou secundário para a trama, constituem nesta temporada um bloco temático da maior visibilidade. E, para que não se alegue coincidência ou moda nacional determinada pelo porte do problema, os filmes vêm da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos e de nosso país.

De saída, destacam-se duas produções inglesas, uma delas intitulada Ou tudo ou nada (The full Monty), de Peter Cattaneo, que mostra com graça como alguns desempregados, de diferentes status, desde o não-qualificado até o de patamar gerencial, acabam se solidarizando e encontrando uma saída criativa para o seu sustento. O achado principal reside justamente nisso, na constituição de uma troupe de strip-tease masculino, em seus percalços e quiproquós. O que não é muito engraçado é que a ênfase recaia sobre a livre iniciativa, dando a entender que só é desempregado quem quer. E o filme insinua que no fundo eles não querem trabalhar a sério. Por falar nisso, quantas dessas troupes o mercado inglês teria envergadura para absorver?

Já outra fita inglesa, Brassed off (*), de Pete Postlethwaite, coloca na tela um impasse dilacerante, ao focalizar uma banda de mineiros à época em que todas as minas de carvão do país estão em processo de desativação.

A alienação é incontornável: eles estão em greve de protesto, e depende de seu voto ser ou não fechada a mina - enquanto se orgulham de sua profissão e de sua banda, continuando a tocar com vistas ao campeonato nacional. Assim, o espectador vai compreendendo que não adianta se sacrificar e caprichar no desempenho, porque a mina será extinta do mesmo jeito, e com ela a banda.

Há pormenores elucidativos do refinamento dos patrões, como a contratação de uma socióloga desavisada para fazer uma pesquisa sobre a conveniência ou não do fechamento, só para enganar a opinião pública, pois já está decretado de antemão que a mina não sobreviverá.

Talvez o pior seja encontrar no filme a confirmação do que já se passou, como todos sabem, no que diz respeito à missão que o governo Thatcher assumiu e levou a cabo, de botar no olho da rua 250 mil mineiros, acabando com as minas de carvão do país. Como o filme mostra, qual daqueles pobres-diabos não se veria tentado a votar a favor da liqüidação - todo o processo foi impecavelmente democrático -, o que daria a cada um 50 mil libras, o suficiente para comprar uma casinha no subúrbio? O filme relata como se desenrolou todo o percurso.

Vindo da França, On connaît la chanson (*), de Alain Resnais, o mestre incomparável de Hiroshima meu amor, aposta numa solução cinematográfica engenhosa: os atores dublam canções francesas de sucesso popular antigo e moderno nas gravações originais, combinando com o enredo, enquanto funcionam como um comentário mordaz. É de morrer de rir observar o general alemão, chefe da ocupação nazista de Paris, abrir a boca e cantar com a voz de Josephine Baker J'ai deux amours, mon pays et Paris, clássico dos anos 30. Num entrecho de gente mediana mas bem alimentada e bem vestida, com suas encrencas sentimentais e financeiras, espanta ver como o desemprego e o subemprego, não tematizados, atravessam entretanto essas vidas. Mesmo incluídos no contexto de uma comédia leve, e no fundo otimista, na qual as pessoas, mais fracas ou mais saudáveis, a bem dizer não são más. E um equívoco cometido pela protagonista, obrigada por suas funções na firma em que trabalha a desenganar um candidato qualificado, sem emprego há dois anos, e tudo o que daí resulta, fornece boa parte da trama.

Impressiona no panorama geral constatar como até um convencional e violentíssimo thriller norte-americano, daqueles com seqüestro de reféns crianças e exigência de resgate, introduz o tema. O quarto poder (Mad city), de Costa-Gavras, faz contracenar duas estrelas, Dustin Hoffman, demitido de um jornal, repórter sem escrúpulos de uma mídia comprometida com o sensacionalismo, e John Travolta, como o seqüestrador. Quando o espectador já prevê um resgate da ordem de milhões de dólares, depara-se com uma guinada. Porque o seqüestrador, ex-guarda de um museu de história natural do interior quase sem freguesia, nada mais reivindica que seu humilde emprego de volta. Emprego que perdera porque o museu decidira enxugar despesas, tornando-o, como se diz, obsoleto; ou flexibilizando, terceirizando etc.

Dentre os brasileiros, Terra estrangeira, de Walter Salles Jr., do ano passado, fez do desemprego a mola propulsora de toda a ação, desembocando no expatriamento do protagonista e no questionamento de sua identidade de excluído. E Central do Brasil, do mesmo diretor, põe em cena um Rio de Janeiro sem fachada de cartão postal, país infernal onde uma população de lúmpens vive num círculo vicioso sem fronteiras definidas entre o desemprego, o setor informal e a delinqüência. Nem sequer aparece um bem-comportado operário que sirva de contraposição e modelo - e menos mal, porque, seria honesto ignorar que o trabalho industrial está definhando?

Nestes dois últimos filmes, assinala-se a volta às telas da cara do povo, talvez não da mesma maneira, mas com ressonâncias de A hora da estrela, de Susana Amaral, na recusa à glamourização de personagens principais e secundárias. É um bom choque para o espectador habituado a pensar que está vendo o Brasil na novela da Globo.

Walnice Nogueira Galvão é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP.