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Ângela revelava-se por inteiro e, ao mesmo tempo, mantinha-se oculta na sua incrível capacidade de trabalho e militância

Passado o momento da perda de Ângela, sinto que afinal começo a conhecê-la. Ângela, com quem convivi intensamente nos seus últimos nove anos de vida, revelava-se por inteiro e, ao mesmo tempo, mantinha-se oculta na sua incrível capacidade de trabalho e militância. Um mistério. Nas nossas intermináveis conversas noturnas (que me fazem tanta falta), eu tinha pistas. Hoje, com amigos comuns ou "herdados", ainda componho o infinito quebra-cabeça.

Encontrei Ângela no segundo turno das eleições de 89, quando tentava superar a perda de Jair Ferreira de Sá, dirigente da Ação Popular, pai de Miguel, seu único filho. Workaholic assumida, era coordenadora da campanha Lula, sua "consultora para assuntos feministas" (como ele diz), e abraçava tarefas de militante feminista, de dirigente partidária, de assessora parlamentar. E existia, sobretudo, Miguel: seu porto seguro, para quem dirigia amor sem limites. Eu já percebia sua dificuldade de viver o compromisso intransigente com o próximo, a política, o exercício da transformação, junto com a necessidade básica de dar afeto a Mig, a mim, à família e aos amigos. Se de início a sobrecarga parecia conjuntural, fruto daquela campanha, logo vi que era seu tom. Ângela, ao denunciar a dupla ou tripla jornada de trabalho das mulheres, falava com conhecimento de causa. Extremamente autocrítica, sempre queria mais no desempenho de seus múltiplos papéis. Assumia naturalmente a liderança em todos os espaços, o que consumia seu tempo. Poucas horas tem o dia, dizia. E exercia virtudes: solidariedade, generosidade e capacidade de extrair o que havia de melhor nas pessoas. Mesmo nos momentos mais tensos era capaz de escutar. A firmeza com que defendia suas posições, o que lhe valeu a admiração de quem com ela conviveu, nunca a impediu de parar, ouvir e respeitar o que era diferente.

Ângela sempre soube onde pisava. A defesa dos princípios feministas foi fundamental para que no mundo masculino da política tivesse exata noção dos espaços a conquistar. A nós, homens petistas, falta ainda compreender a importância dos valores que companheiras feministas e petistas trouxeram para nossa desenxabida, insípida, dura e por vezes raivosa convivência partidária. Ângela não abria mão nem de seus pontos de vista nem da suavidade e respeito ao ser humano. Mas esse enfrentamento diário tinha um preço. Para ela, e para as nossas companheiras petistas em geral, não bastava a militância cotidiana e o amadurecimento político para que fossem reconhecidas por seus companheiros e assumissem novos lugares na estrutura partidária. Para Ângela, era necessário ser brilhante todos os dias. Ela sabia que o PT, nisso, era tradicional como os outros partidos. "Homem público é sinônimo de político, mas mulher pública significa prostituta", ela disse. Pude avaliar seu brilho quando defendeu, no Encontro Estadual do Rio, a quota de 30% de mulheres nas direções partidárias com firmeza e paixão tais que calou alguns companheiros e companheiras contrários.

Ultimamente andava triste. O galope do neoliberalismo, as seguidas derrotas políticas e eleitorais nacionais e locais, o afastamento gradual do PT dos valores mais prezados por ela traziam certo cansaço. Mais recentemente problemas dentro do PT do Rio, que adquiriram tom fratricida, aumentavam sua melancolia.

Como sempre acontecia com ela, não houve diminuição no ritmo de trabalho, mas nova escolha de espaços de atuação. Pela primeira vez vi Ângela abrir mão de parte de sua incansável militância. Finalmente, para ela, que sempre defendia a importância do prazer junto à prática política, chegava a hora da escolha e sem nenhuma culpa. Optou pelo movimento feminista, a Fundação Perseu Abramo e a família. Depois de muito tempo e insistência minha, Ângela voltava a escrever.

Eu, que a considerava um banco de dados ambulante do feminismo e do PT, sempre briguei para que colocasse no disco rígido e no papel um pouco do que tinha vivido e elaborado. O livro Mulher e Política. Gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores era o que mais a mobilizava no momento de sua morte. Dias antes terminava sua parte e aguardava ansiosa o lançamento.

No plano doméstico, Angela vivia a adolescência do filho e reciclava nossa relação. Ao nos deixar, levou um pouco de todos que a conhecemos e que, por isso, a amávamos. Mas teve o cuidado de imprimir em cada um inesgotável fé na vida. Heloneida Studart, deputada petista do Rio, em homenagem que promoveu, disse que "ela era a melhor entre nós". Para mim, que tive o privilégio e a felicidade do convívio diário, Ângela era fiadora do gênero humano. Pelo seu caráter e com o seu amor, incluía-me no que existe de melhor nele. Durma bem.

Paulo Guimarães foi companheiro de Ângela