Uma das mais importantes cientistas políticas brasileiras e uma petista de primeira hora
Uma das mais importantes cientistas políticas brasileiras e uma petista de primeira hora
Maria Victoria Benevides é uma das mais importantes cientistas políticas brasileiras e uma petista de primeira hora. Empreendeu sistemático estudo da nossa vida política no período entre 1945 e 1964, que resultou em três obras originais: O governo Kubitschek, A UDN e o udenismo e O PTB e o trabalhismo.
Foi também uma das pioneiras no estudo da questão dos direitos humanos no Brasil. Violência, povo e política, primeiro fruto deste trabalho, é de 1983.
Professora da Faculdade de Educação da USP, Maria Victoria apresentou como tese de livre-docência uma importante reflexão teórica sobre os limites da democracia representativa, A Cidadania Ativa.
No últimos anos suas preocupações têm se concentrado em torno da educação para a cidadania. Daí resultaram não só artigos e ensaios sobre o tema, mas também sua participação, juntamente com o professor Fabio Konder Comparato, na criação e direção da Escola de Governo.
A democracia tem, cada vez mais, se restringido à escolha, a cada quatro anos, de representantes nos moldes liberais. Mas mesmo esse processo limitado conhece um desgaste. Muitas vezes a maioria dos cidadãos, em regimes democráticos tradicionais, simplesmente não vai votar. Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos por menos de um quarto dos eleitores. Você tem insistido que é necessário construir outra concepção e outra prática de democracia. Pode nos explicar por quê?
Todas as pesquisas mostram, não só no Brasil mas no mundo ocidental, o descrédito na figura do político, principalmente dos parlamentares. O eleitorado não apenas está apático como revela um certo desprezo pelas instituições políticas. Em todo mundo discute-se os problemas da democracia representativa. A prática legislativa anda tão viciada que leva a um desgaste da própria idéia de representação. A apatia existe mesmo nos países em que a representação não tem vícios escancarados como no caso brasileiro.
Defendo, desde antes da Constituinte de 1986, o desenvolvimento de uma democracia que agrega formas de democracia direta à representação (o que os europeus chamam de democracia semidireta) e fui me aprofundando no tema. Nossa Constituição acolheu, já no preâmbulo, a idéia da democracia direta, quando o artigo primeiro diz que todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou através de representantes. O promissor advérbio "diretamente" abriu a porta para o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular legislativa, além de outros mecanismos ligados à área do Judiciário. Eles estão esperando regulamentação, como muitas coisas na Carta de 1988. Mas a porta foi aberta.
Essa discussão de formas de democracia direta tem ocorrido em todo o Ocidente. É prática corrente na Suíça e, embora de uso mais restrito, ocorre nos países escandinavos, na França, na Itália etc. Nos EUA é comum na maioria dos estados, com destaque para a Califórnia e o Oregon, onde o povo é chamado a opinar sobre as mais variadas questões. Por exemplo, sobre o destino de um terreno público vazio, se deve ser um parque, um shopping center, uma escola, um posto de saúde, um museu.
Em seu famoso livro, O futuro da democracia, que está debaixo das asas dos intelectuais tucanos, Bobbio afirma que hoje não existe no Ocidente democrático nenhum Estado estritamente parlamentar; todos têm alguma forma de democracia direta. Bobbio chega a questionar se não correríamos o risco de termos um "cidadão total", chamado a participar de tudo, o tempo todo. Creio que é um exagero da parte dele, quando conclui que "o excesso de democracia mata a democracia." Nunca existirá excesso de democracia, o que pode existir é democratismo e demagogia, mas democracia como a entendo é um processo sempre em construção.
Presenciamos, com as transformações recentes do capitalismo, a retirada do terreno da política de várias áreas de definições fundamentais, que passam a ser colocadas como tarefas do mercado. Pode-se dizer que assistimos a uma oligarquização, elitização ou esvaziamento dos regimes democráticos?
A globalização alimenta esse processo, sobretudo em relação às decisões econômicas e financeiras. Para ficarmos apenas no caso brasileiro, é evidente que hoje o Banco Central tem um papel decisivo em nosso processo político, tomando decisões fundamentais, muitas delas sigilosas e fora do controle do próprio Legislativo. O presidente do BC acaba mandando mais que o presidente da República e seu ministro da Fazenda. No Brasil tudo é pior porque somos um dos primos pobres da globalização. Quem está efetivamente controlando o poder são as grandes empresas transnacionais, que acabam deslocando a chamada "classe política". É verdade, então, que a política está se elitizando no sentido de que ela se confunde cada vez mais com o poder decisório do grande capital.
Mas, por outro lado, em termos da política voltada para o dia-a-dia do cidadão, outros espaços de participação estão se abrindo. É o caso, por exemplo, da experiência do orçamento participativo. Nas cidades brasileiras que o adotaram, o processo foi tão bem sucedido que até partidos como o PFL já estão colocando no seu programa o compromisso com o orçamento participativo. O cidadão está se interessando cada vez mais por participar da política no nível local.
Estamos, então, face a este paradoxo: enquanto no plano do Estado, da grande política econômica nacional e transnacional, temos cada vez mais concentração de poderes e interdependência, no cotidiano do cidadão vemos se multiplicarem os espaços de participação. E não apenas no caso dos estados norte-americanos e de países europeus, mas também em países da América Latina, com uma história social e política conturbada, como a Colômbia, a Venezuela, o Chile, o Uruguai, o Paraguai, que têm processos de consulta popular, tipo referendo ou plebiscito, para questões importantes. No Uruguai isso permitiu, por exemplo, o questionamento da política de desestatização.
A elitização da grande política e a aspiração cada vez maior dos cidadãos a interferirem nas questões que lhes dizem respeito mais diretamente podem ser consideradas expressões da crise das formas tradicionais de organização dos Estados nacionais, agora questionadas pela reestruturação do capitalismo?
Creio que sim. É visível o declínio do interesse pelos partidos e pelo Legislativo. Alterou-se, no mundo todo, o papel do Legislativo, que deixou de ser o órgão legislador por excelência para discutir políticas públicas. Hoje é o Executivo que lidera na apresentação de projetos de lei. Aqui, no governo de Fernando Henrique, temos uma concentração de poderes no Executivo como jamais houve na história do Brasil, a não ser nos períodos ditatoriais. Há medidas provisórias que já foram reeditadas mais de cinqüenta vezes.
Isso alterou o significado da identificação partidária. No Legislativo temos bancadas suprapartidárias mais importantes do que as dos partidos, bancadas dos ruralistas, das empreiteiras, dos meios de comunicação, dos evangélicos. Os que defendem a escola privada formam um lobby poderoso no Congresso, assim como a bancada da medicina privada, que aliás enfrenta a oposição ativa dos defensores da saúde pública. Mas o principal é a mudança de um papel que se restringia à atividade legislativa e de fiscalização do Executivo para um papel de, cada vez mais, propor e discutir políticas, no sentido mais abrangente do que um projeto de lei específico.
O desenvolvimento de formas de democracia participativa deveria ser visto também como um mecanismo de revitalização da democracia no plano do poder central?
Sim. Até mesmo porque identifico democracia como o regime da soberania popular. Sei que isso está fora de moda. Pouquíssimos cientistas políticos falam em soberania popular, talvez por temerem uma identificação com o chamado socialismo real ou os sovietes. O que é uma grande bobagem! Costumo dizer que o Muro de Berlim não caiu na minha cabeça, mas caiu na cabeça de muita gente que hoje tem que estar se explicando porque virou a casaca.
A democracia é o regime da soberania popular com o respeito integral aos direitos humanos. Trata-se de uma definição singela, mas que tem a vantagem de associar democracia política e democracia social. A soberania popular como direito de votar e participar é fundamental, mas insuficiente para garantir a democracia. Ao dizer que é um regime de pleno respeito aos direitos humanos estou incluindo a exigência de políticas sociais de amplo alcance para todos. Direitos humanos abrangem tudo aquilo que é indispensável para garantir a dignidade intrínseca de todo ser humano - educação, saúde, salário justo, direito ao emprego, à habitação, além das liberdades individuais, conquistas liberais que são o começo de qualquer idéia de direitos humanos.
Minha definição de democracia enfatiza a soberania popular, mas com clara definição de seus limites. Caso contrário, poderia ocorrer o que os liberais clássicos sempre temeram, a tirania da maioria. Porém, ao juntar as duas coisas, exijo soberania popular (e tenho, portanto, que levar em conta a lei da maioria), mas exijo também o reconhecimento e a garantia dos direitos humanos, o que me leva a defender também o direito das minorias. A lei da maioria não pode sufocar os direitos humanos. Não podemos aceitar que a maioria sempre tem razão. A maioria não tem razão, por exemplo, quando defende tortura e pena de morte, quando defende o linchamento, quando quer expulsar os nordestinos de São Paulo, todos casos de nítida violação de direitos humanos.
A democracia representativa continua indispensável. É evidente que nas sociedades complexas de hoje ninguém cometeria o desatino de defender exclusivamente assembléia e democracia direta. Isso funciona apenas em alguns cantões da Suíça, onde ainda hoje se reúnem na praça, levantam as mãos e contam os votos. No Brasil isso só é possível no nível do poder local, como é o caso do orçamento participativo, e mesmo assim de acordo com normas legislativas e do executivo municipal. Tenho procurado chamar a atenção para a importância da participação em várias instâncias - partido, sindicato, associação de bairro, movimentos populares, ONGs. Qualquer tipo de envolvimento do cidadão, visando o bem comum e não apenas o seu interesse particular, é um processo que chamo de cidadania ativa.
Você procura responder uma tensão entre o que poderíamos chamar de um pólo de preocupações do pensamento liberal, de um lado, e do pensamento rosseauniano, de outro, articulando a defesa da soberania popular com a garantia do que para os liberais eram os direitos civis, que você estende para direitos humanos...
As conquistas liberais são fundamentais e indispensáveis. Precisamos do liberalismo para chegarmos à democracia. Mas se a democracia não pode existir sem liberalismo, o liberalismo pode existir sem a democracia. Ser democrata significa também ser liberal, no sentido da defesa das liberdades individuais, das conquistas das revoluções burguesas, do pensamento liberal mais radical etc.
Porém esse conjunto de conquistas liberais corresponde apenas a um dos pilares sobre o qual se assenta a democracia. O outro é o da igualdade. Para os liberais a única igualdade que realmente conta é a igualdade perante a lei. É evidente que isso não é suficiente para se enfrentar as brutais desigualdades sociais. A defesa dos direitos humanos parte do entrelaçamento indispensável entre liberdades civis e igualdade em termos do acesso aos bens e serviços essenciais para uma vida com dignidade.
Os norte-americanos usam predominantemente a expressão direitos civis, porque até hoje têm dificuldade em aceitar os direitos sociais como parte essencial dos direitos humanos. Mas não podemos falar que existem direitos humanos quando os direitos sociais não são garantidos.
Acho que nos beneficiamos tanto da tradição anglo-saxã, como daquela originária da Revolução Francesa. Gosto muito, por exemplo, de acompanhar a história dos direitos humanos nos Estados Unidos - da Declaração de Virgínia até hoje, passando pela idéia de liberdade, pela ambigüidade na convivência entre liberalismo e escravidão, a supremacia da liberdade de expressão, e algo que sempre achei sensacional: o direito à busca da felicidade. Tudo isso me interessa muito, mas seria insuficiente sem nossa herança da tradição revolucionária francesa sobre a igualdade.
Minha definição de democracia abrange de uma maneira rigorosa um compromisso com o reconhecimento da liberdade que é algo que depende de uma não-ação do outro. Basta, então, que não haja agressão, repressão, intervenção do Estado ou de outrem. Mas no caso da igualdade, o compromisso é mais difícil e radical, pois é preciso uma intervenção positiva, do Estado e da sociedade, para garanti-la.
Para que essas duas dimensões se articulem e se tornem prática política cotidiana, tem que existir um processo de construção de cidadãos capazes de exercerem de fato seus direitos, serem membros ativos da comunidade, interferirem na condução das coisas públicas. A democracia tem de ter uma dimensão pedagógica de construção da prática democrática...
No Brasil, ainda é baixíssimo o nível de consciência política. A grande tarefa de todos que se sentem responsáveis em relação à sociedade é participar desse processo pedagógico de formação de cidadãos ativos, que é lento, complexo e de longo prazo.
Muitas vezes quando estou discutindo formas de democracia direta enfrento argumentos do tipo: "mas isso existe nos países que já têm uma tradição de cidadania, já resolveram grande parte de seus problemas sociais, mas aqui no Brasil não daria certo". É verdade que quanto maior o nível de instrução, o nível socioeconômico, quanto mais existir uma classe média homogênea, maiores serão as chances das pessoas participarem politicamente - embora, paradoxalmente, quanto mais satisfeita estiver a pessoa com seu padrão de vida, menos vai se interessar pelo bem público. O processo de educação política se confronta, então, tanto com as pessoas que não se interessam porque não conseguem superar o nível de sobrevivência, quanto com aquelas que vivem no mundo da fartura e podem se sentir desmotivadas.
É por isso que a idéia da solidariedade ativa é crucial. Direitos humanos têm as três exigências muito evidentes: a liberdade, a igualdade, a solidariedade. Ou seja, duzentos anos depois voltamos ao lema da Revolução Francesa. O que levaria as pessoas que estão no mundo da abundância a se envolverem com o bem comum, se não existir a consciência de que a solidariedade é uma virtude política, não é a virtude privada da caridade, não é assistencialismo. Isto é, você pode escolher ou não ser caridoso, mas através da solidariedade você compreende que o desenvolvimento do seu país depende da interdependência entre os vários grupos sociais, no sentido de se corrigir os desequilíbrios e as desigualdades entre os que têm tudo e os que pouco ou nada têm.
O que existe de mais chocante na globalização atual é a erosão de qualquer idéia de solidariedade social. Vou dar um exemplo. O presidente Fernando Henrique fez um discurso, em 1997, sobre a globalização. Lá pelas tantas, ele disse que não gosta da globalização, mas ela é inevitável e para o Brasil entrar no Primeiro Mundo esse modelo econômico é indispensável, embora o preço seja alto, pois significa manter na marginalidade um terço da população. Essa frase ficou na minha cabeça: "vai significar a marginalidade de um terço". Mas o que é isso, concretamente? É condenar à morte precoce um terço das pessoas de carne e osso do país, que não são números nem estatísticas.
Se um governante de um país europeu viesse a público dizer uma barbaridade dessas, "a França tem de entrar na Comunidade Européia, com moeda única, comércio sem fronteiras etc., mas, infelizmente, de cada quatro franceses um vai ter de pagar a conta, vai ter de morrer...", o governo não duraria cinco minutos. A tradição de igualdade no respeito aos direitos do cidadão na França é muito arraigada, tornando impossível a política de jogar uma parte do povo na marginalidade para que os outros sejam bem-sucedidos.
Todo o egoísmo implícito no capitalismo do Primeiro Mundo não destrói completamente a idéia da solidariedade social. Ela está ligada ao pagamento de altos impostos, mas o cidadão tem um retorno do Estado em bens e serviços públicos iguais para todos. O cidadão está ciente de que o vizinho, o patrão, todos são contribuintes. Seria uma bomba na França se houvesse a sonegação bárbara que temos no Brasil, inclusive com a impunidade dos ricos.
A idéia da solidariedade existe justamente nos países que têm uma cidadania mais ativa, insisto, porque é uma virtude política. Se quero desenvolvimento com democracia, tenho de querer também um sistema de solidariedade social. É condição inarredável para a existência de uma república democrática.
Estudei em escolas católicas durante muitos anos, e algo que me marcou foi justamente essa idéia do social visto pelos olhos exclusivos da caridade: temos de ajudar os pobres, eles são filhos de Deus. Já a solidariedade como virtude política é uma exigência democrática: os mais fortes, economicamente, têm que contribuir, de uma forma institucional, para os mais fracos. É assim que se forma uma sociedade democrática.
Insisto nessa questão da solidariedade também como um valor pessoal porque, embora tenha sido sempre militante de esquerda, não percorri o caminho de muitos companheiros. Nunca fui de partidos comunistas (e também nunca fui anticomunista); o grupo mais avançado a que pertenci foi a Ação Popular, logo no começo, pois em fevereiro de 64 fui morar na França. Meu envolvimento social começara ainda no ginásio, nos movimentos estudantis apoiados pela ala progressista da Igreja Católica, identificada com o que seria depois a Teologia da Libertação. Afirmo a solidariedade como conseqüência natural do Evangelho, mas não só por isso, porque sempre me identifiquei com o vigor dos valores socialistas.
Mas a solidariedade tem dois veios, o cristão e o socialista...
Justamente. Eu diria que minhas maiores influências vieram de mulheres, como Rosa Luxemburgo e Simone Weil, ambas muito admiradas por minha mãe. Elas me impressionaram muitíssimo pela absoluta solidariedade e por colocarem os valores democráticos e socialistas - e não as exigências da tática política - em primeiro plano. Mas a figura histórica de Jesus Cristo continua importante até hoje. Vindo de uma família tradicional e chegar onde cheguei é um caminho comum a muitos companheiros do PT. Minha mãe, se fosse viva, seria uma petista enragée.
Falta-nos, no Brasil, essa tradição de solidariedade e de construção de uma esfera pública, o que dificulta a formação de uma concepção de democracia baseada não só na liberdade mas também na igualdade e na fraternidade. Nossa origem histórica é marcada pela autocracia, pela barbárie...
Costumo dizer que vamos celebrar 500 anos de Brasil com 400 de escravidão. Nenhum país passa impunemente pela escravidão. Não precisa ir muito longe: meu pai nasceu pouco antes da Lei Áurea e na fazenda de meus avós havia centenas de escravos. Sabemos que ainda hoje existe trabalho escravo, mas é prática clandestina. Durante cerca de 400 anos foi o motor da riqueza brasileira; Gilberto Freyre tem aquela frase tenebrosa: "o Brasil se fez com o açúcar, o braço e o sangue do negro africano".
Um país que tem essa herança tão pesada e recente tem grande dificuldade para acreditar no pressuposto da igualdade. O país foi construído em cima da pior desigualdade, na qual algumas pessoas são proprietárias de outras, tidas como bens patrimoniais. Um escravo não tem sequer o direito à vida, que pertence a seu dono.
Essa tragédia formou nossa sociedade com raízes autoritárias, patriarcais, cruéis, cujos herdeiros mais vistosos estão todos aí no governo de Fernando Henrique: Antônio Carlos Magalhães, os coronéis do Nordeste, do Centro-Oeste, do Norte, do Sul, os "coronéis urbanos" do Sudeste, todos aqueles que realmente não aceitam a idéia da igualdade entre os seres humanos. E isso aparece em momentos concretos da política, como quando se discute, por exemplo, a reforma da Previdência Social e se adotam regras que vão aprofundar a desigualdade.
A posição do governo em relação à Previdência Social é típica da "casa grande", como o é a posição do ministro do Trabalho em relação ao desemprego. No caso do ministro Amadeo, só dou um desconto porque acho que raramente vi uma pessoa pública tão limitada intelectualmente. As entrevistas dele revelam uma burrice constrangedora. Por exemplo, afirmar que no Brasil o desemprego não é grave porque o pobre é criativo: quando há engarrafamento, vai para a estrada vender garrafinha com água, portanto não conta como desempregado, pois tem renda. Isso, além de um insulto à inteligência de qualquer pessoa, é de uma grande crueldade. E como as elites são cordiais, bem educadas, essa crueldade só pode ser explicada por uma mentalidade muito arraigada, algo que é tão natural que não passa por um filtro inicial de civilização, que é o que nos distingue da barbárie. Esse ministro se orgulha de ter uma empregada, que diz "fazer parte da família", mas afirma com orgulho que lhe paga dois salários mínimos, quando ele provavelmente sequer se levantaria da cama para ganhar essa miséria. Nossas elites são tão ciosas de seu cosmopolitismo, mas ainda são muito, muito atrasadas em relação a um padrão mínimo de civilização.
O que a levou a se dedicar ao estudo da história política do Brasil, particularmente ao período de 1945 a 1964?
Eu tinha que apresentar um projeto na área de sociologia política, e a política brasileira sempre me interessou muito. Eu cresci em um ambiente onde se discutia muito política. Minha mãe, nascida em 1901, embora muito marcada por uma educação européia, era apaixonada pelo Brasil e mais ainda pela justiça social. Meu irmão mais velho, que não cheguei a conhecer, foi um dos voluntários da FEB e morreu em batalha na Itália (daí vem a escolha de meu nome). Em 1933, quando as mulheres tinham acabado de receber o direito de voto, minha mãe foi candidata, derrotada, às eleições municipais - por um partido tradicional, é claro, mas sua vocação para a esquerda evoluiu rapidamente. Lembro-me de vivas discussões em casa, para o plebiscito de 1963, entre minha mãe e minha avó, duas aristocratas, uma parlamentarista e a outra presidencialista. Quando do golpe de 1964, eu já morava na França, mas por conta de meus amigos, irmãos e irmãs, minha casa hospedou durante meses estudantes ligados à UNE, vindos até de outros estados, perseguidos pela polícia. Minha mãe não os conhecia (nas cartas ela me falava "dos parentes do interior"). Eles vinham com códigos, mandados por não sei quem, mas nossa casa era grande e insuspeita, porque era de uma família tradicionalíssima.
Eu sabia que queria trabalhar com política. Não queria fazer uma pesquisa rigorosamente histórica, baseada em arquivos. Então, por incrível que pareça, a sugestão do tema do mestrado foi dada por meu marido, que é professor de astronomia na USP. Ele me sugeriu: "por que você não estuda o governo Kubitschek, para explicar aquela relativa estabilidade de um período espremido entre o suicídio de um presidente e a renúncia de outro?" Gostei muito de conhecer a história política brasileira mais recente, a partir de Getúlio. Acho que nos ajuda a entender muita coisa.
Hoje, por exemplo, vejo parte da velha UDN no governo FHC, através do que era paradoxalmente a ala mais arejada, chamada "bossa nova", com Antônio Carlos Magalhães e José Sarney. Tivemos, até recentemente, o velho PSD com Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. O próprio Fernando Henrique, por ligações e gosto político, é próximo do PSD e da UDN, embora o pai fosse ligado aos militares comunistas. Mas ele é um homem da conciliação, dos acordos, e se aproximou muito do velho PSD, na formação do MDB.
A escolha da UDN como tema do meu doutorado foi mais ou menos automática a partir do trabalho sobre o governo Kubitschek e o PSD. A UDN era o outro lado. Meu interesse por ela veio também por procurar entender que liberais, afinal, eram esses que se intitulavam "da eterna vigilância". Daí o subtítulo do livro: ambigüidades do liberalismo brasileiro. O partido que nascera contra o Estado Novo, em nome das bandeiras liberais, torna-se vivandeira de quartel, radicalmente antipopular - se dizia antipopulista, mas era acima de tudo antipopular - e encarna a perna civil do golpe. Por que esses liberais, que tinham como alter ego o jornal O Estado de S. Paulo, eram golpistas?
Nossos liberais não conseguiram juntar o liberalismo econômico com o liberalismo político. Eles aceitavam parte do liberalismo político, contanto que não se abalassem as estruturas de poder. Eram liberais que, quando perdiam eleições, insistiam em manobras golpistas, como a maioria absoluta, revisão de certas regras... E seu liberalismo econômico vai até um certo ponto, dependendo dos interesses em jogo.
Isso também decorre do papel desempenhado pelo Estado na formação do Brasil moderno, entre as décadas de 30 e 80, e da extrema personalização da política, que leva inclusive ao enfraquecimento dos partidos. Temos grandes personagens, mas os partidos acabam sendo pouco representativos de correntes de opinião. O que diz algo do nosso subdesenvolvimento político.
É interessante que Fernando Henrique queira passar à história não apenas como o presidente que debelou a inflação, mas que também derrotou a era Vargas. Sua ambição é ser um novo Getúlio, realmente a grande figura da República. Ele gostaria de ser "o bom Getúlio", sem a mancha do Estado Novo, da excessiva regulamentação etc. Mas ele não consegue ser nem o bom, nem o mau Getúlio, e vai acabar sendo apenas o ruim da UDN. Fernando Henrique acaba defendendo a mínima intervenção do Estado, favorável aos grandes grupos no poder e, muito ao estilo da UDN, renunciando ao que o populismo tinha de bom, que era o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores. Essa escolha de FHC é a pior mistura possível.
A ausência de uma tradição liberal no Brasil, a personalização da política, o entrelaçamento entre as velhas classes dominantes rurais e a burguesia industrial em ascensão, o populismo, tudo isso vai acumulando um conjunto de vícios...
Vão acumulando e se entrelaçando de uma maneira muito forte porque essa tradição autoritária vem da direita e da esquerda, por falta de compreensão da própria idéia de democracia. Pelo lado da direita, Sérgio Buarque de Holanda escreveu que a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal- entendido, uma fachada retórica. E digo mais, essa retórica da direita é uma empulhação, incluindo a defesa de idéias liberais. A nossa esquerda tem uma tradição estatizante e autoritária, e é por isso que depois dos anos 70 saudamos a novidade de um partido como o PT. Ele nasce em oposição ao velho trabalhismo, caracterizado pelo atrelamento ao Estado e pela ojeriza à organização autônoma pela base, mas também veio junto com os movimentos sociais, o novo sindicalismo, um novo tipo de participação política, colocando sempre em primeiro plano a defesa da democracia fundada em valores socialistas.
Nessa trajetória da esquerda, vejo como um ponto de inflexão importante a intervenção de Carlos Nelson Coutinho, com o seu texto A democracia como valor universal. Esse salto foi decisivo para a esquerda reconhecer o valor da democracia no terreno político strictu sensu, e também no sentido dos direitos humanos. Isso nunca foi uma preocupação da direita, é óbvio, mas passou a ser uma prioridade da esquerda a partir da repressão pelo regime militar. Essa associação da esquerda com a idéia democrática e com o respeito aos direitos humanos é um avanço considerável no Brasil.
É por isso que, para um partido como o PT, qualquer discussão que diga respeito a democracia interna, como por exemplo o episódio da aliança recente no Rio de Janeiro, a questão das prévias, da transparência, das quotas para mulheres, provoca um barulho danado. Há uma exigência muito grande, tanto dos que estão no PT como dos que cobram do PT, em relação a esse compromisso com a democracia como princípio partidário. Embora muito identificada com o partido, não consigo aceitar nada nele que contrarie uma visão radical de democracia no campo político, no campo das subjetividades, dos movimentos sociais, das minorias, na questão dos direitos humanos. Essa é a grande novidade do PT na política brasileira, colocar a democracia realmente em primeiro plano.
Quem foram seus interlocutores intelectuais nesses estudos sobre a história do Brasil?
Nos meus três trabalhos centrados no período dito populista (JK, UDN e PTB) a influência maior foi de autores brasileiros, intérpretes da época. Eu não tinha uma orientação teórica muito clara, como tenho hoje ao discutir democracia e direitos humanos. A minha preocupação era muito mais entender como, numa situação concreta, os atores políticos se comportavam e por quê.
Na pesquisa sobre o governo JK, as influências foram majoritariamente no campo liberal, principalmente do Celso Lafer. Ele tinha feito sua tese de doutorado sobre tema afim, e me impressionou muito seu arranjo metodológico, que me pareceu rigoroso e eficaz. Ele estudou o Programa de Metas e eu procurei reunir, no estudo de um governo, a atuação dos partidos, dos militares e de uma política econômica planejada.
No caso da UDN, uma influência importante no campo teórico foi Gramsci, para a discussão da hegemonia e do papel cultural de um partido, ou o papel político de um jornal. Juntando a auto-imagem que a UDN tinha de si própria, a de um "estado de espírito", com as idéias de Gramsci sobre o poder com fortes raízes na cultura e sobre o papel articulador que pode ter um jornal, pude entender como aspectos de nossa cultura política podem explicar tanta coisa quando estudamos um governo e a participação de atores diferenciados. Minha grande preocupação era entender o golpe de 64 pelo seu lado civil, que mentalidades eram aquelas que estavam por trás dos militares.
Claro que os autores que estudaram o período também foram muito importantes. Tive um olhar muito abrangente: no livro de Juscelino, por exemplo, estão juntinhos Florestan Fernandes e Hélio Jaguaribe, Afonso Arinos e Nelson Werneck Sodré.
Na idéia geral de Brasil, Os donos do poder, de Raimundo Faoro, é uma referência obrigatória. Considero-me uma leitora rigorosa desse livro difícil e complexo, mas que me deu muita clareza sobre a história social e política brasileira. Tenho afinidade com o pensamento de Raimundo Faoro, de quem sou aliás amiga pessoal; além do grande historiador, gosto muito do seu senso de humor, de seu senso crítico.
E quanto à orientação intelectual e ética no campo mais amplo, eu me identificaria 100% com nosso querido mestre Antonio Candido. Um de seus textos que mais me impressionou foi Direitos humanos e literatura. Foi uma revelação imaginar a literatura como um direito fundamental da pessoa humana. Foi um texto luminoso e se tivesse que destacar uma contribuição importante em toda a minha reflexão sobre direitos humanos, citaria esse texto. Quando pensamos em direitos humanos, pensamos obviamente na violência da tortura, na negação de saúde, de educação, de habitação, de salário justo. Aí vem Antonio Candido, com um compromisso socialista fortíssimo, e diz que a literatura é também um direito humano fundamental. Isso significou uma abertura enorme para mim, entender que a fruição da literatura humaniza as pessoas ao passar sentimentos e valores que reputamos essenciais, como o belo, o bom, o justo, o engraçado, a capacidade de crítica.
E na discussão sobre a democracia participativa e direitos humanos, a influência de Fabio Konder Comparato é enorme. Certamente não teria me envolvido tanto com a minha tese de livre-docência, A cidadania ativa, se não tivesse com ele um diálogo constante, toda uma discussão sobre a própria definição de democracia como soberania popular com pleno respeito aos direitos humanos.
Seu interesse pelo tema direitos humanos já vem de antes, não? Você tem um livro de 1983 intitulado Violência, povo e política.
O prefácio é do Fabio Comparato. Eu comecei a trabalhar na USP muito tarde, com 43 anos; tenho colegas que com essa idade já estão pensando em aposentadoria. Antes trabalhava no Cedec, onde desenvolvi essa primeira pesquisa, parte de um projeto mais amplo sobre cidadania. Na época também tinha militância ativa na Comissão Justiça e Paz. Até então o tema era considerado pouco "nobre", para cientistas sociais. Antes eu já fizera a primeira pesquisa sobre linchamento no Brasil, tema que depois passou a ser estudado por vários colegas. Nessa primeira pesquisa não encontrei bibliografia no Brasil, tive que procurar em jornais e na bibliografia estrangeira. Gosto desses desafios.
Nos últimos anos você tem escrito vários artigos em que estende suas reflexões sobre direitos humanos à temática da educação para a democracia. Você poderia nos falar um pouco sobre ela?
Em primeiro lugar, quero salientar que minha atuação na fundação e direção da Escola de Governo (em São Paulo e com cinco "filiais" no país) decorre desse meu compromisso. Quanto aos estudos, terminei A cidadania ativa afirmando a associação indispensável entre democracia participativa e educação política do cidadão, o que chamo de educação para a democracia, que compreende a formação para valores republicanos (respeito às leis e ao bem público, sentido de responsabilidade no exercício do poder) e democráticos (a virtude do amor à igualdade, o respeito integral aos direitos humanos, o acatamento da vontade da maioria, o respeito dos direitos das minorias). É também a formação para a tomada de decisões políticas em todos os níveis, pois numa sociedade verdadeiramente democrática ninguém nasce governante ou governado, mas pode vir a ser, alternativamente, e mais de uma vez no curso da vida, um ou outro.
Isso pressupõe três elementos interdependentes: a formação intelectual e a informação, já que ninguém pode decidir sem ter informações e ser capaz de utilizá-las; a educação moral, vinculada a uma didática dos valores republicanos e democráticos, apreendidos tanto no terreno dos sentimentos quanto no da razão; e a educação do comportamento, no sentido de enraizar desde cedo o hábito da tolerância, da cooperação e da subordinação do interesse pessoal ao bem comum. A educação literária tem aí, como destaca Antonio Candido, um papel importante.
Isso tudo corresponde a um esforço amplo e difícil de civilizar o Brasil, de enraizar a democracia em nosso país, de formar as novas gerações. Como dizia Rousseau, para ter cidadãos adultos virtuosos, é preciso educá-los desde crianças.
José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação de TD.