Cultura

Nos dias 12, 13 e 14 de agosto de 1998, em São Paulo, a Fundação Perseu Abramo, a USP, a Unicamp e a Unesp promoveram o seminário "Antonio Candido: Pensamento e militância" que, ao analisar a obra e a atuação política de um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros de todos os tempos, prestou também devida homenagem aos seus 80 anos, completos no último mês de julho. Na jornada de abertura, o professor Decio de Almeida Prado, talvez o maior crítico de teatro do país, proferiu o "depoimento" que publicamos a seguir, e que constará, bem como o conjunto das intervenções realizadas naquele evento, de livro a ser publicado brevemente. Em seu depoimento, ao enfocar o grupo de jovens que entre 1941 e 44 editou a revista Clima, Decio de Almeida Prado nos retrata com seu costumeiro brilho uma época de grande efervescência cultural e que produziu alguns dos mais importantes nomes da cultura brasileira.

Pois é, meu caro Antonio Candido, aqui estamos nós, não vinte anos depois, como em Alexandre Dumas, mas quase sessenta anos depois, numa situação um tanto embaraçosa: você como homenageado, eu como homenageante. Mas fique tranqüilo, não me excederei.

Encontramo-nos pela primeira vez, posso reconstituir pela memória ainda viva apesar da passagem do tempo, em 1939, quando um pequeno grupo de amigos que se formara à sombra da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, viu-se de repente reforçado pelo ingresso de todo um conjunto de novos alunos, capitaneados, não oficialmente, por você e Ruy Coelho. Naquele mesmo ano aproximara-se de nós duas pessoas destinadas a desempenhar papel relevante: Alfredo Mesquita chegou por intermédio do teatro, em sua fase amadora, quase de festa social, e Paulo Emilio Salles Gomes, meu companheiro de ginásio, vinha da França, onde permanecera por mais de dois anos, fazendo lá a sua formação básica, como nós a fizéramos ou estávamos fazendo na faculdade, nas seções de Filosofia ou de Ciências Sociais.

Constituiu-se então, em 1940, o que chamávamos com alegria e até uma ponta de orgulho, de turma ou, segundo você, na boca de alguns, "tiurma". Estávamos encerrando uma prolongada adolescência, naquele período mais ou menos livre, entre o término dos estudos e o começo da vida profissional, em que a personalidade se expande e se estende em várias direções, à procura da definitiva, se não da verdadeira, que nem sempre é a que se imagina. Eu não sabia que seria crítico de teatro e em você apenas adivinhávamos o futuro crítico e historiador da literatura brasileira.

Tínhamos a nosso dispor, no entanto, como prêmio à nossa juventude, uma rua inteira, é verdade que pequena, a Barão de Itapetininga. De tarde, especialmente em dias de aulas de filosofia, dadas por Jean Maugüé, nosso mentor intelectual, passávamos pela faculdade, situada na Praça da República. De noite, aparecíamos com freqüência no Teatro Municipal, que recebia, além de espetáculos de música e de ópera, inúmeras companhias européias, de teatro e de balé, desviadas pela Segunda Grande Guerra para longas temporadas na América do Sul. Abusando um pouco da imaginação poética, sem a qual não saberíamos viver, eu diria que numa extremidade da nossa rua aspirávamos saber e na outra extremidade respirávamos arte. Entre as duas, na própria Barão de Itapetininga, desfrutávamos as nossas horas de lazer na Confeitaria Vienense, com muito chá, muito chocolate, muita conversa e muita risada. Cantávamos também em coro, de vez em quando. Carlos Vergueiro, que ocasionalmente sentava-se conosco, contaria mais tarde que a novidade presenciada por ele é que as moças do grupo sempre pagavam as suas despesas, em pé de igualdade com os rapazes. Talvez fosse a nossa maneira de acolher a onda feminista que já se aproximava, com a ocupação em massa, pelas mulheres, das escolas superiores.

Contados com rigor éramos dezessete jovens: dez homens - somente três estão vivos -, sete mulheres, felizmente menos idosas ou mais longevas. Não havendo, contudo, qualquer formalismo, não sendo os encontros marcados de antemão a não ser nas grandes ocasiões, esse número podia descer a seis, a cinco, ou subir, com amigos extras e visitantes, a vinte, vinte e cinco, até mesmo trinta pessoas, nas noitadas de grande esplendor social, após um espetáculo que não se podia deixar de comentar em público. Está claro que não havia hierarquias, nem lideranças. Uns eram mais centrais, outros menos, mas sem que se percebesse, no convívio, diferenças marcantes entre eles. Não se falava mal dos ausentes - a maledicência, aliás, não era fonte obrigatória da comicidade -, não se disputavam ouvintes, não se exibia erudição, não se formavam panelinhas, embora existissem predileções e simpatias pessoais, até namoros, que naqueles momentos se dissolviam na conversa geral. Falava-se de tudo, sem programação, sem ordem - ninguém pedia a palavra pela ordem -, buscando-se, mais do que a gravidade do tom ou a profundidade de pensamento, a comunicação fácil e afetiva, a palavra alegre, se possível espirituosa. Devido à convivência, as alusões divertidas eram soltas e pegas no ar. Ria-se muito e aprendia-se quase tanto, porque se somavam vários saberes individuais. Predominava o que poderíamos chamar de conversa continuada, a que reata todos os dias, partindo do ponto em que fora interrompida na véspera, jamais esquecendo o que ficara para trás, que podia ser uma idéia, um livro, um filme, uma personalidade, um incidente, uma gafe, um caso curioso, uma tirada polêmica de alguém.

Não sei se a minha memória está embelezando a realidade, mas posso afirmar com certeza que, não me julgando saudosista, é com imensa saudade que me recordo desses tempos de disponibilidade e confraternização, em que fiz amizades que me acompanham até hoje. Ocorre-me, a propósito, uma frase de Alexandre Dumas, na sua saga sobre os mosqueteiros, que Antonio Candido guardou consigo e sobre a qual já conversamos. D'Artagnan, ao morrer, despedindo-se da vida, menciona os nomes de seus companheiros queridos, dois já mortos. Diz ele (cito de memória e em português, como li): "Athos, Porthos, até já. Aramis até sempre". É o meu sentimento - até sempre - neste instante e se o que eu disse não valer como fato, valerá certamente como expressão do que possuímos porventura de mais pessoal, o fundo afetivo, de onde nascem o amor e a amizade.

No ano seguinte, continuando esta cronologia que se deterá a seu tempo, aconteceu o que considero o fato capital de nossos percursos literários. Publicamos, por sugestão de Alfredo Mesquita e sob a direção inicial de Lourival Gomes Machado, a revista Clima, que, em vez de morrer do mal de sete números, que diziam ser fatal às revistas de jovens, durou mais que o dobro, dezesseis números, editados precaria e valentemente de 1941 a 1944. Como conseguimos sobreviver por tanto tempo, com tão pouco dinheiro, nunca entendi direito. Somente uma tese universitária especializada nas intrincadas e frágeis relações existentes entre economia e cultura no Brasil, saberá talvez explicar. A meu ver, nada compreenderemos sobre Clima sem levar em consideração que o Brasil era ainda muito amadorístico, se comparado ao país atual, profissionalizado ou em via de profissionalização. Fazíamos toda a parte braçal, arranjar anúncios, pegar originais, levá-los à gráfica, corrigir provas, enviar os exemplares ao correio, distribuí-los em livrarias e bancas de jornal, graças à boa vontade de meia dúzia de abnegados, não mais, que eram ao mesmo tempo patrões e empregados de si mesmos.

De qualquer modo, chegara, aos vinte e poucos anos, o momento da decisão, em que teríamos de optar entre ciência e arte. Deu-se então o que poderia surpreender mas a nós pareceu natural. Havíamos cursado, na faculdade, filosofia e sociologia. Terminados os estudos, empreendemos a carreira de professor, fizemos teses, prestamos concursos, nunca deixando de dar aulas com o maior prazer. Mas, lateralmente, na hora de escrever por conta própria, a título criador, ficamos com a literatura, as artes plásticas, o cinema, o teatro, entregues, respectivamente, a Antonio Candido, Lourival, Paulo Emílio Salles Gomes e a mim. Das matérias estudadas na faculdade apenas a economia figurou entre as seções fixas, cabendo esta a Roberto Pinto de Souza. Quanto à música, recorremos a um estudante de medicina, Antonio Branco Lefèvre, logo incorporado ao grupo. Houve também uma diversificação, referente ao sexo: dos dez homens da turma, só três não colaboraram no Clima, e das sete mulheres, só uma colaborou. A onda feminista, provavelmente, não havia alcançado a hora de rebentação, porque não me parece ter havido discriminações. Quem queria escrever, escreveu. Os outros, preferiram permanecer na condição de leitores, certamente a mais agradável. O perfil do Clima não estaria completo sem dizer que três pessoas, não ligadas às seções fixas, desempenharam na revista funções de primeiro plano, seja nas discussões teóricas, seja nas tarefas práticas. Refiro-me a Cícero Christiano de Sousa, e, sobretudo, a Gilda de Morais Rocha (depois Gilda de Mello e Souza) e a Ruy Coelho. Os três, de resto, participaram do primeiro número, Gilda e Ruy, por coincidência os dois caçulas, apresentando os textos mais extensos e elaborados.

Entramos no campo literário paulista - e por extensão brasileiro - vinte anos após a Semana de 1922, que dividira o Brasil artístico entre passadistas e modernistas, confundidos, estes últimos, no imaginário popular, com os futuristas italianos, encarnados na personalidade ruidosa e exibicionista de Marinetti. Quanto a nós, inscrevemo-nos ao lado de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que admirávamos e de quem nos tornamos amigos. Mantendo, porém, em relação aos mais velhos, certas diferenças de estilo e de pensamento. A nossa maneira de escrever era menos aventurosa, porque estávamos numa década em que os "ismos" estéticos tinham sido suplantados pelos "ismos" políticos, de direita e de esquerda, muito mais sóbrios e compenetrados. Dedicávamo-nos de preferência à crítica, não à criação, embora Gilda, Lourival e Paulo Emílio se deixassem tentar, em épocas diversas, pela ficção. Havíamos herdado, da Faculdade de Filosofia, menos um saber acabado - e este nunca o é - do que uma técnica de pensar e produzir, baseada na pesquisa de fontes primárias, na leitura dos autores seminais, não em comentários de terceiros, no raciocínio cerrado, que não permitia excesso de fantasias ou de interpretações pessoais. O progresso mental nos viera não do número de leituras, mas da natureza destas, muitas vezes abstratas, de difícil apreensão, requerendo um esforço redobrado da atenção e da inteligência. O traço nosso mais distintivo, no entanto, estava na idéia, bem universitária, de especialização, de divisão do conhecimento em várias áreas, para poder aprofundá-lo tanto quanto possível. Tendíamos a ser monógrafos, em substituição aos polígrafos que nos antecederam. Não sei se por essa circunstância ou se pela presciência dos que imaginaram a feição peculiar de Clima, tentando adivinhar pelo presente o futuro, o certo é que nós todos, encarregados das seções fixas, agarramo-nos a elas, ao que nos fora prescrito, como se constituíssem o nosso dever perante o mundo e perante nós mesmos.

Foi em conseqüência desse conjunto de características, que no Brasil de fim do século são comuns a centenas de professores e ensaístas mas há cinqüenta anos causavam surpresa, que ganhamos a fama de jovens sérios demais, "chato-boys" na frase como sempre mordente e engraçada de Oswald de Andrade, logo nós, que, na intimidade, nas relações de amizade, mostrávamo-nos tão propensos ao riso, às conversas descompromissadas noite adentro.

Farei outra confissão: a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema não nos metiam medo, já que, desde crianças, habitávamos esse universo meio de fantasia, paralelo e freqüentemente mais vivo que o real. Quem é que, na infância, não leu um livro, não viu um quadro, não assistiu a um filme ou a uma peça de teatro? Ao passarmos das ciências humanas para artes igualmente humanas, ainda que alguns desejem arrancar esta raiz, sonhando com artes sobre-humanas, não ingressávamos em território novo, desconhecido, antes, pelo contrário, voltávamos mais fortalecidos às nossas preocupações de juventude, aos devaneios da adolescência, até mesmo às reuniões alegres da Confeitaria Vienense, nas quais a arte figurava como prazer, não como obrigação. Ao mesmo tempo, sem que planejássemos, ampliávamos os nossos círculos de leitores, ao colocar a colaboração em revista antes das teses, dos trabalhos universitários, que por sua complexidade, demandam um longo período de aprendizagem e amadurecimento. Começamos a escrever em prosa literária, só um pouco mais rigorosa, destinada ao leitor culto em geral, e raramente chegamos ao esoterismo característico dos iniciados, suscetível de existir tanto na ciência quanto na literatura.

Não se escolhe a época em que se vive, nem o papel histórico que se deve representar. O nosso, o dos encarregados das seções fixas do Clima, que davam à revista o seu colorido próprio, consistiu em apoiar criticamente a reforma estética empreendida pela Semana de Arte Moderna, reforçando-a nos setores em que já penetrara e abrindo caminho nas artes até então refratárias ao novo espírito.

O teatro constituía-se, neste sentido, no terreno mais fértil porque o menos explorado. Em termos modernos, tudo nele estava por fazer. Tive a sorte de pertencer à geração que efetuou essa mudança, trazendo o palco nacional para o século XX, ele que nada fizera senão remoer os últimos restos do século XIX, tendo como modelos a comédia de costumes e a peça de tese. Saudei nas páginas de Clima, entre 1941 e 1944, as temporadas realizadas por Louis Jouvet, considerado por muitos o maior homem de teatro francês surgido entre as duas Grandes Guerras. Discípulo de Jacques Copeau, tornou-se por sua vez, durante muitos anos, o meu mestre em teoria teatral. Víamos no Brasil, pela primeira vez em toda a sua plenitude, essa coisa essencialmente moderna e um tanto misteriosa que chamávamos de mise-en-scène, antes de traduzi-la por encenação. Saudei também, com entusiasmo artístico e patriótico - e não recordo essas minhas façanhas sem uma ponta de orgulho histórico - o verdadeiro milagre que foi para nós a montagem de Vestido de noiva, texto do brasileiro Nelson Rodrigues e versão cênica do polonês Ziembinski. Ambos fugiam ao realismo vulgar, ambos usavam a imaginação para despertar o público nacional de sua costumeira morosidade. De minha parte, como antigo aluno dos professores franceses da Faculdade de Filosofia, em nada me assustou esse empréstimo feito à rica experiência vanguardista européia. O teatro brasileiro moderno começava a andar, auxiliado em seus passos iniciais por poloneses, alemães, italianos, belgas, e eu segui a minha carreira, com a inclinação teatral dada a ela pelo Clima.

O problema do cinema apresentava-se de modo diferente para Paulo Emílio. Por um lado, ele não podia influir sobre os cineastas estrangeiros, e, por outro, não se achava perante um deserto crítico semelhante ao do teatro. O que ele fez, com a sua inconfundível personalidade, foi deslocar o eixo de apreciação do filme, que até aquele momento, no Brasil, girava em torno do enredo ou dos atores, os famosos astros de Hollywood , cujos contornos míticos eram cultivados cuidadosamente pelos grandes estúdios americanos. Paulo Emílio, em suas longas e detalhadas críticas, focalizava de preferência o trabalho do diretor, pouco percebido pelo público e pouco comentado pelos cronistas nacionais, alguns sem dúvida habilidosos em suas relações com o público, como Guilherme de Almeida em São Paulo. Paulo Emílio, ao contrário dele, não se interessava pela produção comercial vigente, tomando como ponto de referência a totalidade da história descrita pelo cinema, definida por seus picos mais altos, muitos atingidos ainda na época do cinema mudo, que ele conhecera de perto durante a sua estada na França. Estava habilitado, portanto, a perceber o lado plástico do cinema, da Sétima Arte como se dizia então, aquela que contava uma história e emocionava recorrendo pouco à palavra escrita - somente os letreiros - e nada, absolutamente nada, à palavra falada, contrapondo-se, dessa forma, ao romance e ao teatro. Paulo Emílio firmava a atenção e estabelecia seu julgamento baseado no uso da luz, no movimento da câmara, no encadeamento das cenas, no jogo das imagens, no enquadramento físico e metafórico das personagens - em suma, em algo que tinha pontos de contato com o conceito teatral de encenação, por se interessar não só pelos fatos mas também pela forma como são mostrados. A figura do diretor, assim destacado, prenunciava o aparecimento dos filmes de autor, gerados e amadurecidos por um só cineasta, produtos cinematográficos que dominariam artisticamente as décadas seguintes. Por essa série de motivos, que, somados, propunham uma nova visão do cinema e pressupunham a existência de pelo menos uma cinemateca, Paulo Emílio merece o título, que lhe tem sido com freqüência outorgado, de criador da crítica de cinema no Brasil.

Nas artes plásticas o modernismo irrompera no Brasil antes mesmo de 1922, causando como se sabe a impressão de impostura, na melhor das hipóteses, ou de loucura, na pior. Um quadro, entendido à maneira ainda corrente no início do século, dizia respeito a aquilo que se vê, estando ao alcance dos olhos de todo mundo, mesmo dos ignorantes. Se as linhas do nosso horizonte cotidiano são tão claras, tão nítidas, porque esmaecê-las até a deliqüescência ou distorcê-las até a monstruosidade? O impressionismo francês passara levemente por nossas terras, o expressionismo alemão acabara de chegar, e eis que pintores ousados e extravagantes como Picasso, sem abandonar de todo a realidade, transfiguravam-na em cubos e cones imaginários. O modernismo estabelecera-se de vez por aqui, mas não convencia a não ser alguns poucos vanguardistas, entre os quais Oswald, que asseverava constituir-se o cubismo no serviço militar obrigatório da pintura moderna.

Quando Clima aparece, em 1941, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Lasar Segall, todos da geração de nossos pais, já haviam produzido a porção primordial de suas obras. Porém, na verdade, vendiam pouco. Portinari, o último a surgir, era mais bem aceito pelo público, porque ninguém negaria que ele se revelava muito competente também como pintor acadêmico. Quanto à crítica, lia-se, em São Paulo, Sergio Milliet, Luís Martins, marido de Tarsila, eventualmente Geraldo Ferraz, marido de Pagu, sem falar em Mário de Andrade, homem dos sete instrumentos, o único a se mostrar virtuose em todos eles.

Lourival Gomes Machado, portanto, entrava na liça do modernismo não só com maior número de competidores como num meio propenso às discordâncias e polêmicas exacerbadas. O gênio dele, por seu lado, era esse mesmo, amigável, até muito sociável, porém, quando desafiado, pronto a revidar, amparado, na argumentação, pela inteligência, e quanto ao tom, por uma boa dose de ironia e sarcasmo. Como escrita, talvez por já ter dois anos de Direito ao ingressar nas Ciências Sociais, movia-se através de períodos longos, bem concatenados, com cláusulas e subcláusulas, sem nunca, entretanto, perder o fio da palavra ou do raciocínio. Falava e escrevia com grande facilidade. Ao dar aulas, excelente professor que era, modulava a frase, separava o principal do acessório, marcava com a voz os parênteses e colchetes, como os atores franceses faziam nas tiradas clássicas, e o que, lido, parecia difícil, pesado, adquiria fluência e transparência.

Lourival comentou comigo, certa vez, que dispunha de dois registros de pensamento bem distintos: o abstrato, forma pura da inteligência, transcendente aos fatos sobre os quais foi elaborado, e o concreto, particular às artes plásticas, atendo-se na pintura, por exemplo, à espessura da camada de tinta sobreposta à tela, ao trajeto da pincelada, e, na escultura, ao contorno, à pura forma da matéria, à rudeza ou maciez da pedra, que ele gostava de tocar com as mãos, pondo em funcionamento a sua sensibilidade tátil. Não possuo, todavia, concluiu ele, o meio-termo entre o abstrato e o concreto que caracterizaria outros integrantes do Clima.

Já que estou em maré de confidências, entre amigos, acrescentarei que devo a ele o primeiro cargo de magistério que ocupei, em 1940, como professor de lógica no Colégio Universitário da Faculdade de Filosofia. A generosidade, o empenho em servir aos amigos e amparar os carentes de afetividade, bem como o tino administrativo e o amor ao comando, eram, de resto, alguns dos traços essenciais do seu temperamento de chefe.

Lourival Gomes Machado, da nossa antiga turma, foi o primeiro em tudo: a dar aulas, a casar, a engordar, a trabalhar em jornal, a defender tese, a publicar livro, a ser professor titular e a dirigir uma das faculdades da USP. Infelizmente, foi também o primeiro a nos deixar, com somente cinqüenta anos de idade. Morreu na Itália, em viagem a serviço da Unesco, onde trabalhava, numa estação de estrada de ferro, cercado de gente, mas talvez sozinho, fechado no fundo de si mesmo, como de certo modo sempre esteve, apesar dos amigos e do seu ar freqüentemente brincalhão. Creio que a parte mais importante do seu trabalho sobre as artes plásticas foi executada depois e fora de Clima, no qual se exercitou e ganhou prestígio, impondo-se como crítico, aperfeiçoando-se nessa árdua empresa que é traduzir em palavras, com ordem lógica e alcance universal, o que de início são sensações corporais, não conceitos.

A literatura representava no Brasil o papel central do modernismo, o foco poético que se irradiou a partir de 1922 às demais artes. Tanto é assim que antes de 1940 ela já conhecera dois grandes surtos criativos modernos, em épocas e lugares diversos e com programas estéticos diferentes. O primeiro, ninguém ignora, ocorreu em São Paulo, com extensões ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais. Florescendo sobretudo à volta da poesia, comportou vários manifestos artísticos subversivos. De modo geral, permaneceu à margem do grande público, só sendo reconhecido plenamente muitos anos mais tarde, depois que análises críticas e espetáculos de teatro revelaram a juventude perene de obras como Macunaíma e O rei da vela. O segundo modernismo, também todos sabem, desenvolveu-se no Nordeste sob a forma de romance social, tendo como protagonista o povo, personagem ausente no ciclo paulista, a não ser em concepções míticas, a exemplo de Cobra Norato. Menos radical esteticamente e de tendência esquerdista, aproveitou muito bem a liberdade de escrita, não mais presa a moldes portugueses, que os novos tempos, posteriores a 1930, proporcionavam. Esta fase chegou diretamente ao leitor, desde o primeiro momento, porque, de fácil compreensão, dispensava o auxílio de ensaios interpretativos.

Decorre desse quadro que o posto mais avançado e mais sujeito a objeções do Clima era o do responsável pela literatura, não porque esta não tivesse tradição crítica, mas pelo motivo oposto, porque a tinha em excelente qualidade e razoável quantidade, desde Silvio Romero e José Veríssimo até Tristão de Ataíde, no primeiro modernismo, e Álvaro Lins, no segundo.

A salvação do Clima foi que ele contava em suas fileiras com um jovem da estatura de Antonio Candido, o mais bem preparado entre todos os donos de seções fixas, o único que desde o início já tinha relativo domínio de sua matéria, embora ele, num de seus rompantes de autocrítica, tenha-me dito que naquela ocasião era um perfeito analfabeto. Não foi o que me revelou a releitura que fiz da sua colaboração em nossa revista, na qual compareceu com o próprio nome e também com mais de um pseudônimo, inventados seja para dar vazão à fantasia, que não lhe faltava, seja para exprimir pontos de vista sobre os quais não tinha certeza, seja ainda pelo prazer de assumir individualidades ficcionais e até pelo simples gosto da mistificação, que nele existia como em Paulo Emílio. Num desses pseudônimos, Antonio Candido apresentou-se como conhecedor do russo, comentando alguns vocábulos, e não conteve o riso quando um leitor, em carta endereçada à redação, elogiou-lhe a competência lingüística. A sua personalidade, autenticamente simples por fora, no trato com amigos e conhecidos, por dentro é das mais ricas e complexas. Se pensássemos em esgotar as suas possibilidades humanas, teríamos de chegar não a simples pseudônimos mas a verdadeiros heterônimos, como os de Fernando Pessoa, poeta cuja fama ele ajudou a disseminar nas páginas de Clima. Entre os seus heterônimos haveria lugar para um cético, sujeito como Machado de Assis a ouvir o "cochicho do nada", e para um crente ardoroso nos valores morais e sociais.

O triunfo do modernismo nas letras, já incontestável, permitia-lhe evitar controvérsias, ataques ao passado, inflamadas profissões de fé, bem como a opção entre o primeiro e o segundo modernismo. Antonio Candido admitia tanto um quanto outro, com preferência, contudo, se não estou enganado, pela década de 20, mais ousada, mais contestadora, qualidades que admirava. Aceitava a produção nacional como um fato que se coloca entre nós, merecendo ser examinado como tal, sem esconder de todo o anseio por uma literatura mais forte e empenhada, que subisse às alturas, ou, então, que descesse sem medo ao grotesco, ao ilógico, categorias literárias que, segundo ele, possuíam também velhas tradições. A mediania de propósitos é que não o entusiasmava. Creio, sem ter provas, que já por aí se percebiam os germes do seu interesse posterior pelo romantismo alemão, com o qual compartilhava a espiritualidade, se bem que, no seu caso, encarada pelo ângulo literário, como criação do homem, não como fundamento filosófico, em que sempre se manteve fiel ao racionalismo e ao materialismo, ambos não dogmáticos, no sentido de não excluir preliminarmente as posições contrárias, antes tentando compreendê-las.

A cultura germânica, aliás, parecia fasciná-lo, não menos, entre as estrangeiras, do que a francesa, a inglesa e a italiana. Foi ele que me propôs ter aulas de alemão, em companhia de Ruy Coelho e Lívio Xavier, quando verifiquei, não sem certa satisfação, que os meus três companheiros de estudo, pessoas de grande erudição, eram como alunos tão relapsos quanto eu, jamais fazendo decentemente a lição de casa. Antonio Candido era o que mais faltava e foi o único que aprendeu alguma coisa, não sei se chegando a ler correntemente o alemão, sem o auxílio de textos bilíngües, como procedia no tempo do Clima, em poemas de Rilke e Stefan George.

O seu primeiro artigo na revista não continha declarações de princípios, exceto quanto à crítica, cuja base teórica começou a perquirir. Já o intrigava a relação entre a obra literária, de natureza individual, devendo ser lida por sua singularidade, e o quadro social em que se inscreve, relação esquiva, difícil de detectar, que seria amplamente discutida e elucidada na Formação da Literatura Brasileira. Fez Antonio Candido, todavia, desde logo, uma declaração a favor da verdade, por intermédio de uma citação em francês, introduzida à mão e na última hora. Ei-la, traduzida: "Dizer a verdade é uma coisa boa, tanto por causa do prazer que nos dá ao desafogar o coração, quanto por causa da raridade do fato". Quem profere tal frase é D'Artagnan, que volta ao meu texto, porque, anedótico e destemido como só um gascão ficcional pode ser, foi um dos heróis da meninice de Antonio Candido, como da minha. Essa inesperada citação era e não era uma brincadeira. A sua entrada em cena quebrava de propósito a possível solenidade do momento, mas, por outro lado, estaríamos nós todos aqui reunidos, em torno do nosso homenageado, se ele não tivesse tido a coragem de sempre dizer a verdade, em todas as circunstâncias, algumas adversas, pelas quais passou?

A seção de Antonio Candido intitulava-se "Livros", não "Literatura". De fato, ele criticou não apenas poesia e romance, os gêneros mais publicados, como também estudos sociais, que ele distinguia da sociologia propriamente dita, ciência então nascente, com não mais do que vinte anos, "se tanto", em suas palavras.

Na opulenta safra poética do ano de 1940, que se encerrara, ele saudou alguns modernistas de primeira geração, entre os quais, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, os dois, dentro de certos limites, já consagrados. Menos consagrado, como poeta, seria Mário de Andrade, a quem dedicou uma crítica inteira, considerando-o "poeta complexo, profundo, extremamente pessoal". Ao lado de merecidos e bem distribuídos elogios desenhou algumas caracterizações psicológicas exatas e engraçadas. Drummond, por exemplo, incluir-se-ia entre os "acanhados-superiores". Seria um "acanhado, que primeiro teve vergonha dele mesmo, e depois do que viu em torno de si". Ao ler essa descrição lembrei-me de uma entrevista de João Cabral, em que ele disse preferir o Drummond de "língua presa" dos primeiros tempos ao poeta de "língua solta" dos últimos anos. Já Mário de Andrade, segundo Antonio Candido, "gosta (...) de falar alto, através de seus modismos de expressão e de ser".

Em relação ao romance, em crítica posterior, não o imagina como cópia da realidade cotidiana: "a vida se basta a si mesma, e a nossa função é vivê-la, não imitá-la". Quanto à crítica, voltando a ela por causa de um livro de Álvaro Lins, escreve que ela pode também ser entendida como "metacrítica", pedindo às senhoras perdão pela palavra, talvez por ser ela, metacrítica, tão abstrata, tão distante da experiência vivida pelo escritor e pelo leitor. A teoria não havia ainda invadido a seara das letras, com os seus resultados atuais, ora ótimos, ora péssimos.

O seu giro de leituras, composto por autores mencionados de passagem e por outros citados textualmente, parece-me o mais vasto do grupo de Clima, com exceção possivelmente para a curiosidade enciclopédica de Ruy Coelho, capaz de substituir os companheiros, o que fez com freqüência, nas seções de literatura, música, cinema e teatro. Regressando a Antonio Candido, o levantamento dos nomes que estavam todo o tempo em sua cabeça e que pôs no papel como pontos de referência de validade universal, serve para dar idéia do mapa literário, cheio de altos picos, dentro do qual ele se movia com desembaraço. Stendhal, Tolstoi, Eça de Queirós e Machado de Assis, na área do romance, convivem com Mallarmé, Apollinaire e Cendrars, entre os poetas, e pensadores do porte de Valéry, Unamuno e Nietzsche, filósofo admirado por seu pai e que naquela época de guerra fora colocado de quarentena, por sua suposta influência sobre o nascimento do nazismo. Nenhum desses escritores, escolhidos por mim entre muitos outros, vem à tona gratuitamente, aparecendo sempre como exemplos que ajudam a esclarecer o significado das palavras.

Traçando este breve retrato do crítico quando jovem, não pretendo dizer que ele nasceu pronto e acabado. Antonio Candido, de resto, nunca deixou de modificar a sua escritura, impondo-lhe cada vez mais disciplina, até chegar à forma lúcida e translúcida de suas últimas publicações, nas quais parecemos ver, sem intermediários, o fio do pensamento desenrolando-se ante os nossos olhos, em seu caminhar encadeado, sutil, seguro e envolvente. Desde o início, no entanto, já se percebia nele o grande crítico, com as vantagens e desvantagens da juventude, não tão contido quanto na maturidade, não só mais solto como até exuberante, por instantes ainda próximo da improvisação da palavra falada, como mestre da oralidade que sempre foi. Mas no último número da revista, passados dois anos e meio do primeiro, já alcançara o total equilíbrio entre a inspiração e o desempenho. Na crônica de 1944, "Ordem e Progresso na Poesia", prevê com sagacidade a chegada da geração de 45, salientando a "estabilização do modernismo a que vimos assistindo". Os poetas estreantes não escandalizavam mais, como Oswald, Mário, o Manuel Bandeira de "Os Sapos", poema lido como provocação na Semana de 22, e o Drummond da pedra no meio do caminho. Escreveu Antonio Candido: "O tempo correu, e hoje já começa a haver uma certa estilística da poesia moderna, os moços podendo novamente, como no Parnaso, assimilar processos e repousar numa doce virtuosidade". Em verdade, pouca distância temporal havia entre o Clima, de 1941, e esses jovens que se anunciariam como sendo de 1945. A motivação estética e social é que se mostrava outra. Nós, enquanto críticos, mantínhamo-nos fiéis às rupturas introduzidas pelo primeiro e segundo modernismo. Já os poetas de 45 não revelavam interesse pelo social e, quanto às palavras, desejavam regressar a uma dicção poética nobre e refinada, sem os desafios e molecagens de 1920. Continuava, de qualquer modo, o modernismo, vocábulo que, por sua indeterminação ideológica, não só não se restringiria no tempo, como, ao contrário, expandir-se-ia ao início do século, no assim chamado pré-modernismo, e projetar-se-ia sobre este final de século, no que dizem ser o pós-modernismo. Em suma, no século XX, queiram ou não, todos são de alguma maneira modernistas no Brasil, exceto, por definição, os passadistas e os futuristas.

Em 1944, sem perder os laços estabelecidos com a revista, antes reforçando-os através de modificações estruturais sugeridas por ele, Antonio Candido já fora absorvido pela imprensa diária, encarregando-se de escrever o rodapé semanal da Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo. Não sei se as novas gerações percebem em toda sua extensão o alcance dessa palavra, rodapé, herdada do século XIX. Não se tratava de artigos sobre livros que despertavam o nosso ânimo combativo, a favor ou contra. Tinha-se de acompanhar as publicações nacionais, selecionando as apropriadas para um comentário público. Era como se o jornal falasse aos seus leitores, guiando-lhes as leituras, travando, ao mesmo tempo, um diálogo menos ou mais amistoso com o autor do livro. O rodapé devia influir sobre toda a literatura produzida no Brasil, desde o nascedouro, na cabeça dos escritores, até o desaguadouro, na recepção por parte das camadas intelectuais às quais o jornal se dirigia.

Antonio Candido, em vez de intimidar-se com a responsabilidade, assumiu-a por inteiro, tornando-se, nesse processo, um crítico de projeção nacional. Foi então que escreveu os ensaios coligidos pela primeira vez em livro. O seu nome Brigada Ligeira prometia para o futuro títulos de maior peso, que de fato vieram. Mas já era, em si mesmo, uma belíssima obra, que se agregou para sempre à nossa bibliografia. A produção de 1943, recolhida em parte por ela, foi propícia à literatura, permitindo a Antonio Candido examinar três fases do desenvolvimento literário brasileiro. Ele acertou contas com Oswald de Andrade, desarmando-o, não pelo contestação violenta a que ele estava acostumado, mas, em sentido inverso, pela serenidade e seriedade que dedicou a um escritor mais apreciado, na época, pelo humor ferino. Isso quanto ao primeiro modernismo. Quanto ao segundo, teve a sorte de ver publicados romances que marcaram a maturidade de dois escritores do ciclo nordestino, Terras do sem fim e Fogo morto. Antonio Candido aproveitou a oportunidade para fazer um balanço geral da obra tanto de um quanto de outro. Sobre Jorge Amado escreveu: "Se encararmos em conjunto a sua obra, veremos que ela se desdobra segundo uma dialética de poesia e documento, este tentando levar o autor para o romance social, o romance proletário, que ele quis fazer entre nós, a primeira arrastando-o para um tratamento por assim dizer intemporal dos homens e das coisas". Com relação a Fogo morto, definiu o autor na primeira linha: "O sr. José Lins do Rego tem a vocação das situações anormais e dos personagens em desorganização". Mas o autor de rodapés não se afirma só pela reavaliação do passado. Há também a avaliação do presente, feita na hora, sem saber o que virá depois. Antonio Candido realizou essa leitura imediata, tendo como objeto o romance Perto do coração selvagem. Eis alguns trechos do que publicou em Brigada Ligeira, em 1943: "A autora - ao que parece uma jovem estreante - colocou seriamente o problema do estilo e da expressão.(...) A sra. Clarice Lispector aceita a provocação das coisas à sua sensibilidade, e procura recriar um mundo partindo de suas próprias emoções, de sua própria capacidade de interpretação. Para ela, como para os outros, a meta é, evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o homem. Como os outros, ela nada consegue, a não ser esse timbre que revela as obras de exceção e que é a melhor marca do espírito sobre a resistência das coisas".

Nada mau para um diagnóstico feito na hora sobre uma desconhecida. Antonio Candido, contudo, espírito de extraordinária exigência consigo mesmo, não estava satisfeito com o rodapé, que podia expressar entusiasmos ou decepções passageiros, dependendo para se confirmar de uma reflexão mais demorada. No prefácio de Brigada ligeira manifestou a esperança de, no futuro, "poder alinhar os couraceiros duma crítica mais trabalhada e profunda, liberta das limitações de rodapé". Seríamos tentados a discordar desta opinião, a desejar que ele permanecesse no jornal, se não soubéssemos tudo que escreveu a seguir, de forma que a mim se afigura definitiva.

Não pretendo, neste depoimento de caráter pessoal, passar de 1944. Ficando nos limites do Clima, permanecerei no período de juventude de Antonio Candido, sobre o qual poucos poderão dar um testemunho. Mas existe em nossa atividade daquela época uma nota em que ainda não toquei. Até o nosso décimo número, meados de 1942, nada tínhamos escrito sobre a nossa posição política. Havia dois motivos para tal. O primeiro, interno, era a duríssima censura sob a qual vivíamos durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Para dar um exemplo, no Diário Oficial em que foi deferido o pedido para a publicação de Clima, graças à interferência de um primo de Antonio Candido residente no Rio de Janeiro, dezenas de revistas e jornais, de títulos inocentes como Paraná Mercantil, Panificadora Paulista e Gazeta das Farmácias, viram indeferidos os seus requerimentos. O fechamento constituía a regra, não a exceção, inclusive em relação ao funcionamento do primeiro clube de cinema de São Paulo, fundado por Paulo Emílio.

O segundo motivo para o nosso silêncio, de origem externa, era a sensação de instabilidade gerada pela Segunda Guerra Mundial, onde iria decidir-se o nosso destino político, se de direita, de centro ou de esquerda. Em 1942, já com a vitória desenhada para os aliados, o Brasil entrara finalmente na guerra. Aproveitamos logo essa fenda aberta na carapaça da censura, essa brisa liberal soprando levemente apesar dos esforços contrários do governo, para externar o nosso pensamento, através de uma declaração formal, assinada por todos os integrantes da revista. A escolha que se anunciava, com a derrota do fascismo, estava entre a democracia e o comunismo. Colocamo-nos entre os dois, postulando, a um só tempo, a liberdade política e a igualdade econômica. Talvez fosse um gesto utópico, como tantos outros, mas, para os tempos pós-guerra que imaginávamos inaugurais, não queríamos abdicar de nenhum de nossos mais altos propósitos. Alguns, entre nós, filiaram-se à Esquerda Democrática, depois transformada em Partido Socialista Brasileiro. Nós dois, Antonio Candido e eu, fomos candidatos a deputado estadual, trabalhamos juntos pregando cartazes pelas ruas e distribuindo votos no dia da eleição, tarefa que cabia então aos partidos. Seria longo, e não faz parte de minhas intenções, contar essa história. Não desejo mais que destacar, como fecho, as conseqüências secundárias que essa decisão teve em nossas vidas. Ignoro se como causa ou como efeito, a verdade é que a opção pelo coletivo, não pelo individual, deu-nos um senso um pouco mais agudo de nossas obrigações sociais. Para exemplificar, talvez tenha sido isso que levou Lourival a participar das Bienais paulistas, como foi isso com certeza que induziu Paulo Emilio a lutar pela criação e manutenção da Cinemateca Brasileira.

Antonio Candido agiu por outros meios, porém incessantemente. A influência que exerceu sobre as universidades paulistas foi imensa, fazendo-se sentir sobretudo em São Paulo e Campinas. Encaminhou em direção ao ensino superior, entre muitos e muitos outros, Paulo Emilio e eu, que pudemos ministrar cursos, na Faculdade de Filosofia, sobre cinema e teatro, matérias que nunca havíamos estudado oficialmente. Antes, mudara o seu percurso de professor, trocando a sociologia pela literatura, embora a sua situação acadêmica fosse correta e confortável. O professor da cadeira, Fernando de Azevedo, aconselhou-lhe mesmo, em tom de brincadeira, que mantivesse a sociologia como esposa, tomando a literatura para amante. Se ele procedesse dessa forma, como outros fizeram em casos similares, ninguém o acusaria de adultério ideológico. Mas a sua consciência moral e social, que tolerara até então essa duplicidade, porque, na realidade, ele amava as duas, exigia agora uma definição clara em um ou outro sentido. E ele optou pela amante, a literatura. Não desejando, segundo me disse, sair por uma porta e entrar por outra no mesmo edifício, obrigou-se a um estágio numa faculdade iniciante, a de Assis, onde - acrescentou - teria tempo e tranqüilidade para repensar seriamente as bases teóricas de sua formação literária, como se esta já não fosse das melhores. Quer isto dizer que Antonio Candido, depois de refazer a sua carreira universitária, ajudou-nos, a mim e Paulo Emilio, a construir as nossas, confirmando-nos, todos os três, como legatários para sempre do Clima.

Antes ainda, em 1956, havia planejado o "Suplemento Literário" de O Estado de S. Paulo, que por sua indicação dirigi durante dez anos, imprimindo-lhe uma forte dose de responsabilidade face ao Brasil, sem ser nacionalista no sentido estreito. Tínhamos, por exemplo, seções dedicadas às literaturas de língua francesa, inglesa, alemã, italiana, espanhola e russa, entre outras mais esporádicas, porém redigidas por brasileiros ou escritores radicados entre nós. Os únicos colaboradores europeus eram os portugueses, que não nos são propriamente estrangeiros. O alvo do "Suplemento" era mais o autor nacional do que o leitor nacional. O jornalismo servia assim à literatura pela ação direta.

Esta militância, a intelectual, desenhada aqui em traços ligeiros, é a que conheço bem. Quanto à outra, a militância política, só posso dizer que acompanhei de longe o seu trabalho à frente da Adusp e que sei o que significa para ele o Partido dos Trabalhadores, de que foi membro fundador. A nossa velha Esquerda Democrática, simpática quanto aos objetivos, pecava por possuir escritores a mais e operários a menos. Vem daí, quero crer, o entusiasmo de Antonio Candido perante o surgimento de um partido no qual, dentro da hierarquia econômica de nossa sociedade, o trânsito de idéias e ações cumpre-se nas duas direções, de alto para baixo e de baixo para alto. O trabalhador já não entrava apenas com o voto, como no populismo, mas com a sua inteligência, o seu saber profissional, a sua experiência de vida.

Como palavra final, quero agradecer por me ouvirem e por me darem a oportunidade de falar em público sobre o meu mais velho e querido amigo. Em particular não teria a coragem de tecer-lhe tantos elogios, pensados por quase sessenta anos, porém nunca proferidos de viva voz.

Decio de Almeida Prado é crítico de teatro. Foi um dos fundadores da revista Clima.