Internacional

Em muitos países da América do Sul, as garantias e direitos elementares das pessoas submetidas a pena supressiva de liberdade são somente formulações teóricas, sem o menor comprometimento do Estado e das autoridades penitenciárias responsáveis por sua implementação

Como membro da Comissão de Direitos Humanos do Parlamento Latino-Americano (Parlatino), representante do legislativo brasileiro, venho, desde 1997, integrando a subcomissão responsável pelas inspeções promovidas a estabelecimentos prisionais de todos os países do continente sul-americano.

Em todas as prisões visitadas constataram-se graves problemas humanos e gerenciais. As conclusões do inspecionamento apontam para a omissão ou ineficiência no tocante ao cumprimento da Resolução nº 2.858, de 1971, preceituada pela Assembléia Geral da ONU e reiterada pela Resolução nº 3.218, de 1974.

Na Venezuela, em visita à prisão de Tocoyito, localizada em Valência, terceira cidade do país, a subcomissão deparou-se com a mais estarrecedora situação. Tocoyito fica com o cetro de horror dos horrores. Suas dependências aglomeram 1,4 mil detentos impossibilitados dos mais elementares hábitos de higiene. Muitos apresentam-se com ferimentos expostos e manchas características de doenças de pele. Não dispõem de assistência médica, psicológica, farmacêutica e odontológica. São mal alimentados, vítimas de excessiva violência interna, tanto por parte dos carcereiros quanto pela truculência de presos rivais. Há denúncias de tortura e as punições administrativas são cruéis e degradantes. O terror, a barbárie e a insalubridade estão presentes em toda a extensão. Montanhas de lixo se acumulam há meses no interior do presídio; os esgotos correm a céu aberto, sujeitando todos ao cheiro fétido exalado. A exposição às doenças infecto-contagiosas é permanente. Aos presos sequer são fornecidos pratos para as refeições diárias.

Os suportes para se prover da comida são improvisados. Em lugar de colheres e pratos, os detentos recolhem dos lixos copos de plásticos, vasilhames usados de iogurte ou margarina, ou na ausência desses, alguns presos chegam a dobrar a própria camiseta para receber a alimentação de péssima qualidade.

Chegou-se, em Tocoyito, a um ponto indescritível de degradação humana. A negligência institucional é conivente com a absoluta liberdade mercantil no interior do presídio. Tudo é vendido: drogas, bebidas, comida, a dignidade e a integridade das pessoas. Os presos de maior periculosidade exploram e ameaçam permanentemente os novos reclusos. Inúmeras denúncias atestam que castigos corporais, punições cruéis, aviltantes e desumanas são quase rotineiras. Aos recém-chegados a este mundo de horror e desesperança, o imediato sentimento certamente deve se assemelhar à magistral descrição feita por Dante Alighieri em A divina comédia: "Deixai toda a esperança, vós que entrais".

Já o cárcere Bolívar, na capital Caracas, não é sequer controlado pelo Estado. O Poder Público simplesmente abandonou sua responsabilidade institucional pela administração, hoje dominada pela fratricida disputa de facções criminosas rivais que ali se encontram alojadas.

Na Bolívia, ainda que indiscutíveis progressos tenham sido observados, encontramos, no presídio de San Pedro, o anúncio da venda de celas. Em espaços cada vez mais exíguos, cada preso tem que construir sua própria cela ou então comprá-la. A dotação por preso/dia é insuficiente para garantir estes elementares direitos, estando estimada no valor de cinqüenta centavos.

Em toda a Bolívia, existem 1.563 crianças, inclusive 36 com idade inferior a um ano, que vivem dentro das prisões com seus pais, sem serem contempladas por garantias mínimas de atendimento em creche ou pré-escola.

Outro exemplo explícito de falta de comprometimento com os direitos humanos foi testemunhado em visita ao Presídio de Chonchocoro, premeditadamente construído a 3,8 mil metros de altitude, onde temperatura e pressão atmosférica são absolutamente hostis à sobrevivência humana. As celas apresentam flagrante risco à vida dos reclusos por problemas de superfície mínima, volume de ar e ventilação.

No Chile, ainda que, comparativamente aos demais países do continente, normas internacionais para funcionamento de estabelecimentos prisionais sejam contempladas de forma mais afirmativa, presos acusados de terrorismo registraram graves queixas de discriminação.

Visitamos em Valparaíso, cidade de 276 mil habitantes, um presídio onde os detentos são diariamente submetidos a rígidas regras disciplinares. Todas as manhãs os prisioneiros são compulsoriamente perfilados para recepcionarem as autoridades militares que trabalham no presídio.

De todos os países visitados pela comissão o Paraguai apresenta uma das mais reduzidas percentagens de presidiários em relação à população (4 mil presos para 5,1 milhões de habitantes). A maioridade penal é bastante baixa em relação aos outros países do continente: somente são i

Em Tacumbu - maior presídio do país -, o problema da superlotação é crônico e dramático. Por absoluta inexistência de espaço físico os presos vão ocupando todos os lugares disponíveis: a capela, a marcenaria, a cozinha, os escritórios administrativos e as dependências de assistência. São 1,5 mil pessoas aglomeradas, semelhante a um campo de refugiados. Esta grande concentração vem acarretando graves problemas de saúde e higiene. Não há incentivo ao trabalho penitenciário. Os telefones públicos disponíveis no presídio foram barbaramente destruídos para obrigar os reclusos a alugar aparelhos de telefonia celular daqueles que os possuem. Foram encontrados alguns presos provisórios entre os sentenciados. Um deles aguarda há oito anos decisão criminal. A estes, além da ausência de assistência judiciária, não são observadas as orientações normativas de separação dos condenados, oferecimento de oportunidade de trabalho e muitas vezes são proibidas as visitas familiares.

Próximo ao presídio de Tacumbu vistoriamos as instalações do Centro de Reabilitação Ilamada Panchito López, destinado a menores infratores, que abriga crianças e adolescentes de 14 a 18 anos. São trezentos reclusos divididos unicamente pelo critério de idade, o que expõe os menores a um risco potencial. Nem todas as celas estão em perfeito estado de conservação. O Centro de Reabilitação carece de investimentos para ensino educacional e profissionalizante aos jovens reclusos.

Ainda no Paraguai, o Cárcere Feminino Bom Pastor aloja 161 mulheres, sendo quarenta delas menores de 21 anos. Insólita foi a presença de uma criança de 13 anos entre as detentas, revelando inadmissível falha no controle administrativo e jurisdicional do sistema penitenciário.

No Paraguai registraram-se inúmeras queixas sobre a morosidade e a ausência de assistência pública judicial. Por fim, constatamos ainda a incrível existência de um presídio fantasma. Embora existam diretores designados e previsão orçamentária, as obras para conclusão do presídio encontram-se em completo estado de abandono e indiferença.

Na Argentina, há cerca de 30 mil reclusos, sendo que aproximadamente 6,1 mil pessoas cumprem pena em estabelecimentos federais em Buenos Aires. Ainda de acordo com os dados oficiais, apenas 20% da população carcerária argentina encontra-se contemplada pelo direito ao trabalho penitenciário. Além disto, entre 7 e 8% dos reclusos estariam infectados pelo vírus da Aids, número agravado pela grande incidência de outras doenças sexualmente transmissíveis.

No presídio federal Caseros, em plena Buenos Aires, centenas de presos condenados não têm onde tomar sol ou praticar esportes. Não há a menor perspectiva de trabalho num presídio parcialmente destruído pela última rebelião, ocorrida há alguns anos.

O melhor exemplo de administração prisional da Argentina foi observado em Olmos, próximo a La Plata. Lá se encontram 3.336 internos, dos quais 80% cumprem pena por condenação criminal. Embora a população carcerária seja superior à sua capacidade, Olmos apresenta alguns aspectos positivos: aos detentos são oferecidos serviços de ensino integrado à rede pública educacional. São 180 reclusos matriculados em curso primário e 220 em aulas de orientação secundária. Em todos os pavilhões são encontrados telefones públicos que permitem aos presos o contato livre com familiares e advogados. Um serviço comunitário de rádio opera internamente, ocupando parcialmente a população carcerária. É permitida a visita conjugal aos detentos, bem como a assistência religiosa.. Lá tivemos oportunidade de presenciar uma cerimônia pentecostal que reuniu cerca de oitocentos reclusos.

De forma duvidosa fomos apresentados a uma nova experiência de monitoramento eletrônico que começa a ser implementada na Argentina. São pulseiras de identificação criminal presas ao tornozelo dos detentos a fim de possibilitar sua imediata identificação fora do presídio. Mediante a utilização das pulseiras os presos são autorizados a trabalhar externamente, sem o menor risco de eventuais fugas. Afirmam as autoridades penitenciárias que a utilização deste sofisticado aparelho eletrônico não proporciona o menor risco de dano físico. Além disto, o custo operacional de uso "das pulseiras eletrônicas" representa a metade dos gastos de reclusa manutenção dos sentenciados.

No Uruguai - bastião do civismo, da melhor distribuição de renda e dos direitos sociais -, é o Ministério do Interior que reprime o crime e cuida do encarceramento, violando regra fundamental de incompatibilidade entre as duas funções.

Estivemos no Complexo Carcerário Santiago Vásquez, que aloja mais de 50% da população reclusa do país. Pudemos constatar o problema de superlotação, vez que, originariamente concebido para alojar oitocentos presos, hoje comporta 1,7 mil detentos. Há grande carência em matéria de trabalho, apesar de alguns convênios realizados com empresas privadas. Um problema essencial é a inexistência de um hospital penitenciário para atendimento médico e farmacêutico.

Quanto ao Brasil, embora tenha aprovado em 1994 - pelo esforço e comprometimento dos membros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - importante resolução disciplinar sobre Regras Mínimas para o Tratamento ao Preso, ainda prevalecem graves denúncias e massacres de presos. No Brasil, a subcomissão visitou o Complexo Carcerário do Carandiru, em São Paulo, e o Complexo Carcerário Bangu I, no Rio de Janeiro.

Bangu I é hoje um centro penitenciário de alta segurança. Lá encontram-se reclusos 48 presos de alta periculosidade e grande poder econômico. Todos os poderosos líderes de quadrilhas do tráfico de drogas do Rio presos lá cumprem pena. Como o calor intenso inviabiliza a presença no interior das celas, o pátio externo é o local preferido dos detentos, o que exige do serviço de segurança penitenciário vigilância permanentemente reforçada e atenta, sobretudo em dias de visitas públicas. Ainda que de forma insuficiente, há assistência judiciária, médica e sanitária.

Já o Complexo do Carandiru impressiona pela imensidão física e populacional. Para os parlamentares estrangeiros que integravam a delegação ainda era imediata a fatídica lembrança da noite de 2 de outubro de 1992, quando 111 presos foram cruelmente assassinados numa explosiva conjunção de ineficiência profissional, violência banalizada e despreparo policial, a pretexto de conter uma rebelião eminente. Na ocasião, laudos técnico-periciais, em desacordo com a versão oficialmente defendida de conflito corporal, comprovaram que a maioria das vítimas encontrava-se rendida quando foi executada a tiros.

Hoje, o Complexo do Carandiru abriga 6,5 mil detentos. Reclamações sobre o número excessivo ainda persistem. Entretanto, a pressão internacional decorrente da repercussão da tragédia de 1992 acelerou a assinatura de convênio entre o governo federal e o do estado de São Paulo para a desativação do complexo. Com o convênio, garante-se o repasse de verbas federais para a construção de seis novos presídios de segurança máxima, menores e mais modernos; dois presídios de segurança média e uma nova casa de detenção.

Há entre os detentos vários prisioneiros de outras nacionalidades. Destacadamente os uruguaios são incisivos ao denunciarem o abandono pátrio e a ausência de autoridades diplomáticas. Entre eles, havia um sentenciado que afirmou já haver cumprido dezoito anos de pena. Embora contemplado com uma declaração de expulsão do Brasil, para cumprimento do restante da pena no Uruguai, continuava recluso em São Paulo, graças à desídia protocolar das autoridades diplomáticas de seu país.

Cabe salientar que existem em São Paulo aproximadamente 15 mil reclusos alojados indevidamente em cadeias públicas, em condições impróprias para cumprimento de pena. A superlotação dos estabelecimentos prisionais inviabiliza a transferência de inúmeros sentenciados, que permanecem por infindável período ocupando as celas das delegacias. A situação dos distritos policiais de São Paulo revela incontestável falência do sistema penitenciário brasileiro. Em algumas cadeias encontramos os denominados "homens-morcegos" - presos que se amarram às grades para dormir -, tamanha a falta de espaço que impede a presença de redes e colchonetes.

Deve-se ainda destacar que, no estado de São Paulo, o índice de reclusos por habitantes é quase o dobro do registrado no Uruguai (1,9% contra 1% da população), o que representa quase 60 mil reclusos para uma população de 35 milhões de habitantes. Embora impressionantes estes índices são também inconclusos. Existem em São Paulo 200 mil ordens de prisão não cumpridas, muitas delas pela falta de estabelecimento prisional para o cumprimento de sentença condenatória.

Em todos os países visitados, há queixas amargas contra a lentidão dos julgamentos, o que ocasiona a presença de milhares de presos sem condenações criminal. Quase sempre as visitas conjugais só são permitidas aos homens, não como um direito do recluso, mas como premiação por bom comportamento. A corrupção é um elemento crônico: superfaturamento na compra de alimentos, facilitação à prostituição, inúmeras fugas e, ao mesmo tempo, insuficiência de recursos orçamentários destinados à manutenção dos presídios e construção de benfeitorias necessárias. É dramática a situação de estrangeiros abandonados pelos países de sua nacionalidade. Os presos são cada vez mais jovens. Sem perspectiva de emprego ingressam prematuramente no mundo da criminalidade, estimulados pelo ilusório sonho de enriquecimento rápido acalentado pelo tráfico de drogas. Em todos os países, é abismal a diferença entre a norma jurídica e a realidade encontrada nos cárceres.

No ano do cinqüentenário da belíssima Declaração Universal dos Direitos Humanos, a América Latina precisa urgentemente constituir uma visão do sistema penitenciário alicerçada nos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Durante o IV Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, realizada em Quioto, no Japão, em 1970, já se alertava para a importante implementação, por todos os países, de um corpo comum de princípios que orientasse a função punitiva do Estado, no qual a eficácia da pena estivesse sempre de comum acordo com as exigências constitucionais e resoluções internacionais de proteção à dignidade humana e à redenção do cidadão infrator.

Certamente não haverá solução para os presídios latino-americanos se o problema das superlotações carcerárias não for verdadeiramente enfrentado. O alargamento na aplicação de penas alternativas, restritivas de direito ou de prestação de serviços comunitários, deve substituir imediatamente a tradicional prática sentencial de nossos magistrados de penas supressivas de liberdade, que abarrotam indevidamente os presídios de condenados por delitos leves, de pequeno potencial ofensivo, e que não oferecem risco evidente ao convívio social. Os grandes complexos penitenciários devem ser paulatinamente substituídos por menores centros de detenção, onde o processo de ressocialização é mais propício e a administração prisional menos complexa e onerosa aos cofres públicos.

Quanto à ausência de trabalho, combustível para revoltas, conflitos internos e rebeliões periódicas, o incentivo de natureza fiscal a pessoas jurídicas que empreguem presos sentenciados, além de possibilitar a redução da pena mediante ocupação profissional, como já rege a legislação brasileira de execuções penais, ainda atenderia a justa reivindicação de detentos, sem prejuízo dos parcos orçamentos destinados ao gerenciamento dos estabelecimentos prisionais.

A moderna Ciência Penal deve sem dúvida punir o delinqüente, nos rígidos limites da lei, mas também possibilitar o pleno resgate do cidadão para a livre e regenerada convivência social. Neste sentido, o trabalho de vistoria a estabelecimentos prisionais feito pela Subcomissão de Direitos Humanos do Parlatino irá possibilitar a formulação de recomendações e a elaboração de regras comuns para o funcionamento de todos os presídios do continente.

Nilmário Miranda, deputado federal (PT-MG), é membro da Comissão de Direitos Humanos do Parlamento Latino-Americano.